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Relação com a existência cronológica

2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.1. A Relação de Anteu

2.1.1. Relação com a existência cronológica

Exemplo de poeta situado, isto é, com referências precisas a um conjunto de acontecimentos, Torga é ao mesmo tempo o exemplo de fuga à circunstancialidade, pela busca de perfeição contínua sobre si e pelo sentido de insatisfação sobre o valor dos acontecimentos. Não serão poucos os

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Não que isso o leve a suicidar-se, como outros o fizeram – além do mais porque não quer pactuar ou legitimar o absurdo com a sua morte. No Diário XV, 125, apela à luta pela vida, “para não lhe sancionarmos a nulidade”.

251 Diário VIII, 172. 252

exemplos do que simbolizam as parcas sete linhas com que o Diário anota uma data que lhe deveria servir para metáfora de um poema de liberdade, para estribilho de um discurso de vida, para mote de uma cantiga de escárnio aos opressores ou até para centelha de um sonho de ascender a um lugar de destaque merecido. Ora, nessas poucas linhas, embora não deixando de estar o presente, o porquê e a perspectiva, não sai mais do que a expressão sintética possível dos olhos e ouvidos cansados pela ditadura, a desconfiança ingénua que vê militares na tirania de cinquenta anos e no golpe militar e a esperança desconfiada de que não fique tudo na mesma:

"Coimbra, 25 de Abril de 1974 – Golpe militar. Assim eu acreditasse

nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada..." (Diário XII, 59).

Fazendo das circunstâncias motivo de reflexão e ponto de partida para uma nova exigência de aperfeiçoamento, Torga é mais propenso a ser inspirado pelas circunstâncias do que a tomar grandes decisões inesperadas, sobretudo se elas implicarem uma rede complexa de relações sociais ou se forem demasiado expositivas e lhe exigirem enfrentamento da multidão253. Sociofóbico – poderíamos dizer, resumindo as opiniões de todos os seus parcelares biógrafos – Torga não deixará de estar presente quando sentir que os que o procuram poderão despertar-lhe o sentido de utilidade ou quando reconhecer que um evento pode revelar o proveito que a sua obra teve no sentido de humanismo a que a destinou. Por isso, o enquadramento histórico que se apresenta em Anexo III, a par dos seus dados biográficos, para além de muito incompleto em datas que talvez devessem constar254, não deixa de referir eventos em que o autor é levado a participar ou em relação à ocorrência dos quais deveu sofrer consequências, ou, simplesmente, influências. Foi dado, por isso, a este enquadramento um âmbito biográfico a par de um

253 Diz de si mesmo que está "sempre disponível sem prioridades absolutas" (Diário XI, 198), mas também se

reconhece "penitentemente atento aos sinais fatídicos da época" (Diário XIII,180).

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Entre as poucas referências biográficas de muitos autores que sobre Torga escreveram, foi tentada uma síntese. Da cronologia histórica, foram retirados alguns dados ao mesmo tempo significativos em comparação com o Diário e com A Criação do Mundo, mas evitando o fastídio. Um estudo mais profundo exigiria comparar as anotações do

Diário com os jornais dessas datas – para que até essas anotações fossem mais compreendidas no pormenor, isto

resumo da cronologia histórica em que Torga se situa. Para o corpo do trabalho fica reservado um breve resumo que não é mais do que um roteiro desse anexo. O interesse da biografia no contexto do trabalho que se propõe não é demasiado: um possível leitor de um texto ou até de algumas obras de Torga há-de aproveitar delas na medida dos parâmetros estabelecidos no Capítulo I. Numa interpretação mais crítica, não deixará de ser confrontado algum do seu pensar com algum do seu agir conhecido. Mas, mesmo nestes casos, na impossibilidade de conhecer todas as circunstâncias de uma acção, o juízo é sempre cauteloso e a primazia é dada ao escrito, sobretudo quando se trata de um autor que 'suava' para encontrar a melhor forma de escrita e destruía a versão em que não se revia. Ele próprio diz que "o mealheiro do passado nunca se deve abrir" porque lá só se encontra o testemunho do que fomos e "era preciso o testemunho do que nos obrigou a ser"255.

E como também não é possível reconstruir toda a ambiência das circunstâncias que podem contribuir para explicar a ressonância aparente exagerada ou minimizada de um acontecimento no autor que a vive, ficaremos com as circunstâncias que os historiadores mais salientaram. Para além disso, as limitações que se impõem a uma tarefa destas são evidentes não só para quem a executa mas também por consideração em relação a quem quererá situar Torga mas ao mesmo tempo ser poupado de um enfado inútil.

Notemos, então, algumas referências.

Nas grandes circunstâncias pessoais estarão necessariamente o seu meio de origem e a mentalidade circundante: dureza das serras, pobreza de meios, convicções de resignação religiosa, esperança laboral, identidade pela honra e fim telúrico do degredo terreno. Em contraste, está uma certa visão de longo alcance que sempre afectou alguns membros destes meios rurais: os filhos que, por artes não se sabe bem de quê, tiveram a dita de fazer a escolaridade obrigatória256, e com um aproveitamento excepcional, são vistos com um tríplice sentimento: de esperança e de orgulho para engrandecimento da família e da terra; de admiração como por alguém predestinado a algo

255

Diário VIII, 16.

256 Que no tempo de Torga era de quatro anos, mas que virá a ser reduzida para três no Estado Novo e voltará depois

superior ao cabo da enxada ou à rabiça do arado; e de receio por uma ausência necessária aos estudos, mas que pode vir a ser definitiva. O pai de Torga manifesta expressamente o segundo257 e faz do orgulho sadio de ter um filho 'formado' bandeira hasteada mais alto do que a dos filhos da aldeia vizinha. A mãe vive intensamente esses sentimentos e o do receio de separação definitiva. Importa fazer aqui uma pequena paragem neste enquadramento e tentar avaliar esta atitude de alguns pais e as repercussões nos seus filhos. O desprendimento emocional que é preciso para os pais 'enxotarem' os filhos para longe à procura de uma vida melhor só é compreensível pela saturação das suas vidas 'presas à terra' e pela confiança simultânea na capacidade dos filhos em escolherem o melhor; a firmeza dos filhos só se explica porque a atitude dos pais é encarada como acto de amor e porque neles já se criou de algum modo a determinação pela procura da diferença, bem como a gratidão filial de um dia compensar os pais de tanta labuta, mesmo sem saber se essa diferença e melhoria poderão advir de um

serviço ou estudo258 numa cidade grande, no Seminário ou no Brasil.

Psicologicamente, no entanto, a separação familiar e esta necessidade de trabalho e decisão autónoma na idade da puberdade e ainda com o processo de identificação incompleto, vão acarretar esquizotimia de temperamento, rudeza de trato e exacerbação da vontade. Se a isto for acrescentada a vivacidade dos sentidos, a fineza da intuição e a maleabilidade da inteligência – dotes naturais ao pequeno Adolfo e correspondente directa da esquizotimia que parece advir da sua aparência asténica – teremos os ingredientes de um homem tenaz, não subserviente, eternamente dividido entre a devoção e a obrigação, mas sempre com necessidade de fazer algo com que se possa afirmar. O que faz de Torga um homem grande como poeta e pensador é a sorte de nele a obrigação ser cumprida com a força e a qualidade da devoção. No final, retomar-se-á brevemente este enquadramento para se explanar a sua adaptação a uma ética de dever.

Nas grandes circunstâncias pessoais estão ainda o braço amigo (e talvez desiludido!) do tio do Brasil, que não viu nas qualidades de Adolfo uma afronta

257 "A cavar aqui é que não fica. Bastou eu"; e "Aqui não te quero" (A Criação do Mundo, 34). 258

aos filhos da sua segunda mulher nem viu no sobrinho razões para os ressentimentos e injustiças da mulher259. E este foi mais um momento em que os conselhos de honestidade e de trabalho dados pelo pai se chocavam com a dureza da realidade, que não se compadecia com 'anjinhos' mas que ao mesmo tempo permitem a síntese de convicção e acção, que se pode considerar o segredo da vida e do sucesso de Torga: persistência no trabalho e vontade de superação por meios lícitos. Descansada com a consciência, a vontade poderia usar toda a energia para superar os obstáculos. Também desta forma peculiar de resolver um problema existencial sairá matéria de futura análise para uma perspectiva moral de bem pessoal e colectivo.

Uma terceira circunstância pessoal a que indirectamente alguns biógrafos aludem refere-se ao casamento. Torga já não casa novo, se atendermos às médias de idade 'normais', nessa época. Para além de razões que se prendem com o atraso na entrada para a Universidade (aos vinte e um anos) e a falta de estabilidade de um consultório que lhe pudesse dar para viver e pagar a publicação de algumas obras literárias, interessa salientar aqui o modelo de esposa que lhe interessaria e que teria as hipóteses de ser o que foi: mulher de Adolfo, interessada pela obra de Torga e amiga dos dois. Fútil ou adoradora, mimada ou possessiva, insegura ou leviana não seria mulher para um homem que precisava do dilema para lutar, da solidão para pensar e do amor para viver. Também no conceito de mulher estará muito do ideário educativo de Torga.

Se bem que as referências de carácter mais pessoal possam ser consideradas as determinantes na vida do poeta, ficaria injustificada a omissão de um enquadramento na situação político-social do tempo de Torga: após as lutas liberais e miguelistas dos finais do século XIX, dá-se o desenvolvimento do ideal republicano, que culmina com o final trágico da monarquia. Entretanto, a escola primária de Torga desenrola-se no tempo do primeiro conflito mundial. Ideais e condições reais entram em conflito e as soluções capitalistas e socialistas ganham contornos de grande oposição. Paralelamente, o ideal de

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De quem Torga diz que contribuiu para a sua infelicidade porque, para além de ter perdido a mãe muito cedo, teve uma tia que lhe pôs silvas no caminho em vez de lho aplanar. Convém, no entanto, dizer que esta passagem foi retirada aquando da revisão feita à segunda edição do III dia d'A Criação do Mundo – como parece ter acontecido a quase todas as passagens de carácter mais intimista.

nação ou de comunidade mundial vai-se delimitando e as soluções religiosas e ideológicas vão divergindo quanto a modelos económicos, políticos, sociais e até morais. Mas recomposto das consequências da guerra mundial, Portugal enfrenta convulsões internas e inicia-se a ditadura do Estado Novo. O progresso económico é notável, mas a transformação cultural é sacrificada, não só pelo controlo político mas também porque se geram dois sentimentos em relação aos movimentos de produção cultural: inutilidade para a satisfação de necessidades básicas mais importantes que eram a melhoria material e desconfiança quanto ao perigo para os bons usos e costumes da 'nação'.

A guerra civil espanhola traz a ameaça da fome, da peste e da guerra para junto dos nossas fronteiras e o conflito ideológico agrava-se mais ainda com aproveitamentos religiosos, classistas ou simplesmente de controlo do poder político, económico e financeiro. A segunda guerra volta a dar algum desafogo financeiro, mas a guerra fria desequilibra a questão colonial e inicia- se o período mais trágico da história portuguesa contemporânea: cultura militar, política bélica, arte rotulada, mortes com glória e sem honra, emigrantes com honra e sem glória, consciências dilaceradas pelo dilema do dever, do medo, da paixão e da solidão. O 25 de Abril e o sonho dos ingénuos, os cravos em jarras restauradas, o abuso por novas justificações, a cultura do antes proibido, o assalto às cadeiras e chefias, a solidão para a honra e a glória para os compadres, a dificuldade de estruturar novos critérios de validade humana, ...

Só mais uma nota sobre algo que não tem datas bem delimitadas nem perfis muito distintos, sobre os elogios e os vitupérios a que Torga se sujeitou. Dele houve quem dissesse mal porque o não entendeu, porque ele não correligionou ou porque fez sombra. Dele houve quem muito falou sem grandes fundamentos e, sobretudo, pegando pela rama das plantas que tanto custaram a enraizar e cujo tronco tem de ser visto alinhado por outras árvores do mesmo cultivador. Mas sobre ele brotaram sentimentos de gratidão humanista e de admiração estética que explicam tantas referências, colóquios, comemorações e até homenagens prestadas. E será no estudo profundo do que Torga viu, sentiu e desejou para Portugal e para o Homem que lhe prestaremos a maior homenagem, porque foi a um ideal de país e de homens que Torga dedicou o

esforço de aperfeiçoar a lava tosca e incandescente que lhe brotava do interior. E dentro desta observação não poderá deixar de se mencionar também não só a circunstância da quantidade da sua produção literária, mas também a intensidade do seu esforço para a retocar, reformular ou simplesmente reeditar. Sem contar com o acompanhamento que fazia das edições em língua castelhana, francesa, inglesa, alemã, romena, búlgara, japonesa, etc. e com pequenos textos de circunstância, Torga publicou, só em monografia, quarenta e cinco originais em primeira edição, sem contar com a edição compacta d'A

Criação do Mundo. O número de edições revistas e/ou aumentadas também é

grande: quarenta e seis, pelo menos260.

Para terminar, não poderia deixar de referir-se o seu duplo sentimento perante a vida: receoso do seu fim prematuro por razões de doença, acabou por agradecer a longevidade – lamentando só não poder acontecer que "caísse de pé, num desafio" e terminasse antes "ruína humana"261. E agradecia essa longevidade mas "não por ter chegado ( como havia porfiado – dirá ele no último poema escrito da sua vida), mas por ter acrescentado um palmo de ilusão ao meu tamanho" – diz no Pórtico do XVI volume do Diário.