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Relação com a existência profissional

2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.1. A Relação de Anteu

2.1.3. Relação com a existência profissional

De Hegel se diz que suportou a condição de pedagogo para poder ser filósofo. De Torga só não se poderá dizer que suportou a condição de médico para ser poeta por duas grandes razões: porque enquanto solicitado como médico não descurou o juramento de Hipócrates na luta pela vida. Se combateu um surto de febre tifóide, considera "esse triunfo, feito de solicitude e acaso", mais do que da sua especialização; e se fez de obstetra no parto da Deolinda, já em situação demasiado crítica, também não foi com mais força do que a de lutar pela vida272. Por outro lado, há testemunhos do empenho com que atendia os necessitados dos seus cuidados de especialista em "ouvidos, nariz e garganta", mesmo a desoras e até para alguém que, por si ou pelos familiares, não mereceria uma atenção tão empenhada e sem regateio. De

270 Diário IV, 84. 271 Diário XIV, 152. 272 A Criação do Mundo, 190.

toda a sua profissão diz Torga que fazia com o vigor da devoção o que era obrigação.

A segunda razão advém do aproveitamento da sua profissão. Para além da temática humana que a situação de doença, angústia e confiança fornecem, os conhecimentos de medicina sugerem-lhe um conjunto de opções metafóricas sobre as quais Torga constrói autênticos hinos à audição da natureza, ao olfacto pelo renascer das diversas primaveras e ao gosto pelo sabor da vida.

Paralelamente, há no exercício da profissão um sentido pedagógico de educação para os valores do civismo e honestidade que não permite qualquer menosprezo pelo Adolfo Rocha médico, apesar de aí não ter chegado à fama do Miguel Torga poeta. Pelo pitoresco imediato, recorde-se a história do Anastácio que consegue levar do médico cento e cinquenta mil reis para ir a Coimbra 'comprar' um atestado médico para o filho que faltou à junta de inspecção militar. O facto é espalhado de imediato pela aldeia e a troça não se fez esperar. Mas esta medalha tem dois lados sérios: esse dinheiro foi o que custou a Adolfo e a Torga não ter passado o atestado; e daí a uns tempos o Anastácio paga a dívida, fá-la acompanhar da mais-valia dos juros da admiração pela única pessoa que não se tinha deixado comprar; e apresenta o resumo do 'trabalho de casa': a primeira pessoa que até esse dia tinha confiado no Anastácio273.

Independentemente deste sentido humano da profissão e dos recursos temáticos e metafóricos que ela forneceu para a produção literária de Torga, o autor confessa claramente o peso da vertente financeira quando se decidiu tirar um curso superior e especificamente o de medicina: com maior ou menor facilidade, num juízo mais ou menos breve, e num local mais ou menos de eleição, seria possível conseguir um mínimo de independência económica para suportar a libertação das suas aspirações de conhecer e de conviver num meio culto e para garantir a própria independência intelectual. Não foi fácil começar logo com propósitos de honestidade e independência: mas manteve essa

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atitude pela vida fora, apesar dos dissabores. Atente-se rapidamente em algumas linhas do terceiro dia d' A Criação do Mundo, a propósito:

"Seguro da honestidade dos meus propósitos profissionais, e cada vez menos disposto a alienar a liberdade, começara a trabalhar sem pedir vénia a ninguém. Esquecera o beija-mão ao chefe político do concelho, a benção do administrador, a visita de submissão a outros potentados. E só compreendi a gravidade do crime cometido quando o Raimundo se pôs a mastigar as palavras274 diante de mim" ( A Criação do Mundo, 199).

A opção por otorrinolaringologia pode ser de menor interesse, mas convém acentuar o carácter individualizado da função médica nesta especialidade que não forçará tão violentamente a conversa entre médico e paciente, nem exigirá um trabalho em equipa. Se com alguns dos seus doentes Torga falava demorada e até abertamente, essa opção não lhe era imposta pela profissão em si. Por outro lado, ainda, dificilmente o otorrinolaringologista assistirá a casos extremos ou fases terminais de vida – o que se ajustará melhor a um temperamento cujo único receio que o acompanhou foi o da própria morte. E para quem não gostava de se vergar a nada, ter de suportar a derrota imposta pela morte várias vezes na semana e milhares de vezes na vida talvez fosse insuperável. A única morte que suportava e a que dava um grande sentido de festa e de futuro era a da caça.

Ao referir 'um mínimo de independência económica', a intenção foi mesmo a de significar um mínimo. Torga nunca parece ter ostentado riqueza, mesmo quando reconhece que o desafogo financeiro é suficiente e até tranquilizante. Para um lutador que não define um único adversário, que não o localiza no tempo e que nem o enfrenta só num espaço, o futuro não aparece com uma segurança que permita fazer como a cigarra. Também não se trata do interesse bem limitado da formiga: Torga quer ter o apoio financeiro para a independência mental sem prazo ou limite. Por outro lado, há um sentido de responsabilidade social que nunca é abandonado: não esquece os mais desfavorecidos e, por isso, não deixará de atender quem não pode pagar, tendo, por contrapartida, de guardar o que puder daquilo que alguém antes lhe pagou; também não se coaduna com o sentido de ostentação que

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Tratava-se de difamações sobre competência profissional, qualidade de escritor e simpatia política, que o médico de Fornos e o farmacêutico local faziam circular – e que foram silenciadas com ameaças físicas feitas directamente por Torga (A Criação do Mundo, 203).

menosprezaria os outros; e, talvez mais apaixonante ainda, é necessário pagar a edição das suas obras, de tal modo que o editor não seja sacrificado no pouco que já lucrava com o serviço prestado ao poeta, nem este deixe de o poder ser para os outros por não ter dinheiro para editar a obra.

Antes de terminar, convém constatar uma incongruência pelo menos aparente: se na profissão de médico não vivia obcecado pelos honorários, como poeta mostrava-se 'forreta', tal como acontecia em tudo o que se referisse a seu uso ou consumo próprio, incluindo a indumentária. A própria bata de médico exposta em São Martinho de Anta já tem ares de uns largos anos de uso acima da 'garantia'; e a sobriedade do consultório era notória a todos os que tiveram a dita de por ele serem recebidos mais como amigos do que como doentes – o que não impedia de ele reagir quando esse pormenor era usado como arma de menosprezo em rivalidades de sociedade ou de vizinhança, como aconteceu com o comentário da professora de Torno, ao ir consultá-lo em Sendim: "tem isto tão pobrinho!"275. Psicologicamente, pode aventar-se uma resposta com dois motivos para esta pelo menos aparente incongruência: confiante no que fazia como médico, não precisava do reconhecimento que os honorários representavam; insatisfeito sobre o que fazia como poeta, precisava que a compra das suas obras confirmasse o valor das mesmas, porque o esforço da compra poderia justificar por si o apreço pelo autor. Por outro lado, oferecer uma obra era ao mesmo tempo impor-se e expor-se por sua iniciativa; e, como no íntimo não deixa de ser sentido, era desvalorizar o que o seu ego não deixaria de considerar que merecia pelo menos o valor de capa estabelecido.

O salto de consultório em consultório não foi demasiado longo, como o revela a biografia, embora também não tenha tido no início da profissão um mar de rosas à sua mercê. Dois grandes momentos e razões parece terem orientado a escolha do local do consultório: por um lado, a dificuldade de ser profeta na sua terra e a dificuldade de se libertar dos condicionalismos de conhecimentos e intrigas, sobretudo com a sua posição ideológico-política; e, por outro, a necessidade de estar perto de um meio em que o acesso à leitura

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e a outras fontes culturais fosse mais fácil e actualizável. A produção literária e a participação em movimentos literários há-de ter pesado com a exigência de proximidade desses meios, dos grupos que levantavam esses projectos e das tertúlias que discutiam os problemas subjacentes ou decorrentes do panorama literário ou até literário-ideológico, na medida em que muitas das revistas literárias surgidas não tinham como objectivo primordial o debate de teorias literárias mas de ideais ou simples ideários político-sociais.

Não é possível, no entanto, imaginar o poeta Miguel a suprimir o médico Adolfo quando, nas vastas mas sempre sentidas como poucas vezes, se deslocava à terra natal e era solicitado para acudir a uma ou outra maleita que afligia um conterrâneo. Muitas vezes até, o poeta ajudava a reconfortar o doente para quem o médico não encontrava cura nem sequer lenitivo físico para a dor. Enquanto era a diversão da caça que o atirava por montes acima e além, havia ao mesmo tempo um médico que cuidava da agilidade do espírito: embora sempre difícil de assimilar o infinito da transcendência, era reconfortante o transpor do infinito da imanência.