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2. RELAÇÃO, CONDIÇÃO E OPÇÃO DE ANTEU

2.1. A Relação de Anteu

2.1.2. Relação com a existência política

Mais teimoso que exibido, os conflitos políticos que se geraram sobre Torga resultaram mais da sua insubmissão do que do seu proselitismo ou apostolado. Sem tentar já uma análise de antinomias ou, pelo menos, dilemas revelados na sua vida, não se poderá, no entanto, deixar de distinguir o que poderá ser a sua opção política profunda daquilo com que poderá ser conotado. Não há dúvida de que o seu apostolado político se fazia em círculos restritos de amigos e até as mais das vezes de modo indirecto, isto é, através das suas concepções sobre a liberdade e dignidade humanas, sobre as condições de acesso à cultura e até sobre o tipo de cultura desejável. No entanto, o seu proselitismo não foi tal que pudesse levá-lo a filiar-se em qualquer partido político. Estava inscrito na Ordem dos Médicos, mas não

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Quanto a reedições por repetição de títulos e conteúdos, o cálculo é mais difícl de fazer-se porque na própria referência bibliográfica do XVI volume do Diário há falhas, mas não foi determinado em que grau de extensão.

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estava sequer na Associação Portuguesa de Escritores. E se votou pelas listas do MUD, não se sentiu bem no papel de militante e orador de comícios partidários262. Claro que também não alinhou pelo contrário, isto é, por um regime de situação; e esta atitude não prosélita em relação ao antigo regime já era de si motivo para vir a ser preso, para a esposa sofrer as consequências e ser expulsa do ensino, para ter de adiar por muitos anos a publicação do quarto dia d'A Criação do Mundo, ou até para ser preterido num lugar de delegado de saúde em Sendim – para o que faltou uma cláusula importante: a garantia política da sua adesão ao regime ou, pelo menos, da não contestação263.

Demasiado severo consigo mesmo, não suportava facilmente que os que mandavam se pudessem arvorar em determinantes ou condicionantes de liberdade de quem suava e de quem queria como destino o engrandecimento da pátria, a honra da pessoa, a bondade da justiça e a beleza da amizade.

Não seria difícil (mas até seja irrelevante) provar até que ponto o não proselitismo político poderá ter contribuído para que o poder político instituído não usasse a diplomacia possível para o guindar a forte candidato ao prémio Nobel da Literatura. E se se refere o não proselitismo político tem de entender- se antes do 25 de Abril, quando o maior candidato apontado pelos ‘intelectuais’ contra o regime é Aquilino Ribeiro; mas tem também de pensar-se que no pós 25 de Abril a conjugação de vontades não foi maior. É aceitável que a influência dos mass media nos últimos vinte anos seja bem superior ao que era antes; e Torga foi ostensivamente alheio a uma difusão da sua obra que não fosse para quem sentisse necessidade de a ler. Mas também não parece ter havido por parte dos detentores do poder político e cultural vontade suficiente para que a obra deste autor tivesse chegado mais cedo às sacolas e às pastas dos alunos de todas as escolas. Ora, daquilo que não se conhece só se gosta por insatisfação ou, no máximo, por aspiração.

Se houve interferência de outros poderes, como o religioso, de momento bastará julgar que a questão estará mal perspectivada. Torga faz lembrar na nossa produção literária, e no âmbito específico da temática religiosa, o que

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Cf., como exemplo, as palavras sobre a sua disposição no comício do PS Coimbra, em 01/06/74; em Sabrosa, em 10/04/76; ou em Lisboa, em 24/04/75.

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Galileu fez no século XVII: parecia lutar contra a Igreja e a única coisa que ele queria era que ela se não metesse por caminhos onde pudesse vir a ser

desacreditada264, para além de querer desenvolver o que julgava ser dom

divino, que era o desenvolvimento do conhecimento das coisas e, talvez, do homem. Se dúvidas houvesse sobre a atitude profunda quanto especificamente à religião católica (ou até cristã, em geral), o seguinte registo poderia pelo menos evitar juízos radicais:

"Sim. Apesar da sedução que no meu espírito exercem outros credos, se tivesse de me converter, seria ao catolicismo. É, afinal, a única religião compatível com a minha natureza torrencial, terrosa, pecadora. Uma religião que sagra de tal modo o profano que nele se fazem agentes demiurgos a água, o sal, o azeite, o pão e o vinho (...)” (Diário XII, 62).

E com a não atribuição do Nobel a Torga perde mais o país e os outros poetas do que o próprio Torga. Os projectores do Nobel seriam uma iluminação para muitos outros poetas e não uma ofuscação: nem Torga se deixaria ofuscar nem pretenderia servir-se do prémio para ofuscar ninguém. Talvez tenha sempre havido outros mais alinhados para a política mas menos pelos postes desses projectores; ou até mais capazes de se curvarem do que de aguentarem servir de suportes de luz.

Partindo do princípio que esta questão foi essencialmente política e não de mesquinhez de sentimentos e de falta de sentido de visão ampla entre os "irmãos de ofício", importa, mesmo assim, fazer alguma justiça ao regime de censura, pelo benefício que, de forma cega e involuntária, trouxe à iluminação das metáfora poética. Tomemos neste julgamento uma argumentação dupla: positivamente, a censura obrigou a um maior disfarce e isso foi conseguido, diz Casais Monteiro, com muito mais sucesso na poesia do que na prosa, por razões evidentes do papel relevante desempenhado pela metáfora nas obras em verso. O exemplo do Novo Cancioneiro, saído em 1940, é uma amostra de subterfúgio nos moldes tradicionais de cancioneiro para mensagens de

carácter intervencionista social265. Negativamente, embora com resultados

idênticos, evitou-se uma poesia demasiado racionalizada ou até panfletária, do género de grande parte da versificação de Guerra Junqueiro, cujo alcance

264 É esta a bem fundada opinião de Stillman Drake in Galileu. Lisboa: Publicações D. Quixote, 1981. 265

temporal é reduzido porque a obra poética se limitou a descrever – tem uma dose grande de referencialidade. Ora, passadas as circunstâncias da mesma, perde-se a figuração do sentido e o que se pode chamar o alcance puro ou intemporal da poesia. Obrigada a exprimir e não simplesmente a descrever, a poesia aumenta a enigmaticidade e o compromisso do poeta e do leitor no que Michel chama a auto-contextualização. Ora, neste caso já não são as circunstâncias do mundo exterior que estão em questão, mas sim o conteúdo profundamente problemático e humano de resposta às questões que o homem se coloca, independentemente (ou quase!) de a circunstância ser esta ou aquela266. O próprio Torga terá no quarto dia d'A Criação do Mundo algum exemplo de literatura demasiado referencial que, com conotação directa à guerra civil espanhola e demasiada clareza na opção por um dos beligerantes, não permitiu que daí se retirasse a motivação superior que era o apelo à liberdade e até ao sentido comunitário da humanidade; e, em contrapartida, o regime político pudesse ter ficado pela denotação mesma e confundido o exemplo da opção do autor com a totalidade do ideal. E se bem que o regime político não estivesse em condições de apreciar e nem sequer de avaliar o ideal, o certo é que qualquer referência directa a uma opção político-partidária do escritor não permite liberdade ao leitor para não entrar em conflito aberto com as suas crenças ou ideologia, não se sentir culpado por traição ao poeta não concordando com ele nesse propósito, nem facilita o distanciamento fenoménico que um ideal requer para voar sobre pântanos, pairar nas alturas e apontar o horizonte.

Desdobrando este enquadramento da produção literária em tempo de censura política, não deixará de ser penoso e ao mesmo tempo lúcido e significativo o desabafo de Torga no que a si diz respeito, a propósito do quinto dia d'A Criação do Mundo, que nem sequer é comprado por aqueles que antes do 25 de Abril o comprariam pelo menos como camafeu ou credencial de rebeldia:

"O Quinto Dia da Criação do Mundo a secar nas montras.

Nesta pátria é assim: a apetência de leitura depende dos condimentos policiais. Se o livro tivesse aparecido quinze dias antes, talvez que muitos se felicitassem, não de o ler, mas de o ter nas mãos. Mas saiu uma

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semana depois do vinte e cinco de Abril, já quando ninguém precisava se exibir credenciais de rebeldia" (Diário XII, 60-61).

O resto do lamento, que bem traduz a nossa história literária, salvo talvez no período satírico e burlesco da poesia trovadoresca, comenta a nova situação político-social e termina:

"Nunca um escritor aqui teve direito à dignidade. À dignidade de assumir um unânime destino colectivo ou um solitário destino pessoal, sem que sirva de bandeira para uns e de espantalho para outros" (Idem, 61).

A relação de Torga com a política não pode ser perspectivada, no entanto, por ângulos de interesse pessoal. Nunca desejou o poder nem precisou dele para se afirmar. E não desejou o poder porque, resumida, lúcida e cruelmente o considera degradação: "todo o poder é violência, e quem violenta degrada-se" e "degrada tudo: quem o exerce e quem o suporta"267. E esta degradação chega a atingir os incorruptíveis, que se diminuem por necessidade de sobrevivência; e afecta o ideal de "comunitarismo espontâneo das minhas serras"268 – pelo que considera necessário um anarquismo que esvazie o poder manietador e permita um socialismo fraterno: "há em mim uma raiz anarquista que me não deixa tolerar o poder"269.

Esta última expressão directa da sua convicção política não deixa margem para considerarmos a sua atitude motivada por uma razão histórico- social. E é fácil encontrar críticas violentas à orientação do poder e aos detentores do poder após o 25 de Abril. São duríssimas e várias as expressões de desaprovação directa e de ataque à atitude dos políticos no poder. Sem contar com as referências às recusas que teve de fazer em relação a quem se queria servir dele como bandeira para interesses pessoais, vejam-se só quatro reflexões pós-25 de Abril – para além de outras já transcritas ou resumidas:

Coimbra, 19 de Março de 1975 – Apetece fugir, deixar de vez

esta pátria que mais ninguém sabe reconhecer gramatical, cívica e humanamente, e onde o capricho de um galoado qualquer, a má disposição da sua amante ou a qualidade da aguardente que bebe mudam o curso de uma revolução" (Diário XII, 100-101).

Coimbra, 7 de Abril de 1975 – (...) O espectáculo que damos

neste momento ao mundo não é o de um povo que se esforça por

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Diário X, 76 e Diário VIII, 73, respectivamente.

268 A Criação do Mundo, 497. 269

actualizar ousada e sensatamente a sua vida retrógrada. É o de um manicómio territorial onde enfermeiros improvisados e atrevidos submetem nove milhões de concidadãos a um electro-choque aberrante e desumano" (Idem, 105).

Coimbra, 15 de Maio de 1975 – (...) Fruto de frustrações

variadas, não é nos acessos aos altos segredos das governação, nem na expressão oficial do Diário do Governo que se pode descortinar o seu perfil... É o espanto, o deslumbramento, o aplauso, o despeito ou o pavor do vizinho, da amante, do camarada, do amigo ou do inimigo que cada decisão visa conseguir sem dar por isso" (Idem, 112).

E o mais violento ainda:

"Coimbra, 28 de Setembro de 1990 -(...) A execrável tirania de há pouco tinha ao menos a mérito de ser frontal, culta e respeitar o inconsciente do povo português. Esta de agora, é sorna, analfabeta, e agride e ofende diariamente o que de mais profundo e sagrado há em nós" (Diário XVI, 34).

A convicção de Torga é que todos os governantes se transformam em tiranos e se convencem que devem apagar as estrelas que não sejam eles próprios. Ora, "o mal de quem apaga as estrelas é não se lembrar de que não é com candeias que se ilumina a vida"270. Mas o que mais preocupa Torga ainda não é esta caracterização da classe dirigente: é antes que o desinteresse se tenha generalizado271.