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Presume-se que, indicado o autor, se infira que a fonte consultada se

refere à obra do mesmo, citada ou simplesmente mencionada na Bibliografia. O retrato é elaborado com preocupação pela diversidade de perspectivas ou até de variações sobre as mesmas; a expressão utilizada atendeu mais à clareza e à fidelidade ao seu autor do que à coerência do texto ou constância da morfologia gramatical.

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Portugal, 7: "Soube a definição na minha infância./ Mas o tempo apagou/ As linhas que no mapa da memória/ A mestra palmatória/ Desenhou./ Hoje/ Sei apenas gostar/ Duma nesga de terra/ debruada de mar".

446 TRIGO –Miguel Torga e a Questão da Ibéria, 10. 447

Não totalmente condizente com o retrato que dele fazem é a imagem que Torga apresenta de si mesmo. Para além de outros motivos, haverá dois que são óbvios ou, pelo menos, razoáveis: salvo uma referência, em toda a bibliografia consultada não aparece nenhum artigo escrito a tentar diminuir a importância de Torga; de resto, as opiniões são de admiradores e estudiosos. Por outro lado, Torga era mais exigente consigo mesmo do que com os outros; e ainda considera que, apesar de não ter dito de si muita coisa, ainda é seu o melhor retrato feito de si mesmo, como vimos há pouco. Por isso, a imagem que Torga dá de si mesmo enuncia sobretudo alguns desses momentos de fraqueza em que ele parece cansado de não ser ouvido, parece cansado de procurar e parece até desgostoso da humanidade. E nesses momentos parece também querer tomar sobre si tudo o que é ideal a que o homem devia aspirar, dor de que a pessoa se devia libertar ou esperança que a humanidade não devia perder e afirmar a vontade estóica de subir a serra, aliviar a dor e levantar a cabeça para o horizonte. E perante esse vale de lágrimas atribui-se muita da culpa e sobretudo muito da desilusão ou até desespero. Onde as divergências aparecem mais vincadas é na afirmação da sua sociabilidade ou temperamento comunicativo – apesar de também reconhecer que é "intransigente, duro, obcecado e capaz de uma lógica que toca a desumanidade"448, lamentando até ter fechado muitas portas ou ter tentado abri-las tarde.

Em Anexo VIII, aparecem, salvo pequenos lapsos, os traços do seu auto- retrato deixados em todas as obras consultadas. O texto apresentado é fiel às palavras de Torga, com prejuízo, ainda mais do que aconteceu no retrato, dos aspectos morfológicos ou sintácticos. Nele se inclui o desenho com que diz identificar-se desde os vinte e dois anos e que foi feito por António Madeira (pseud.) e um conjunto de textos mais extensos, em prosa ou em verso, que podem aproveitar-se para uma caracterização de alcance ético-ideológico.

Outra das formas ou modos de opção existencial é a humanizada, isto é, Torga aparece como arcanjo do humano. Sedento de aperfeiçoamento (e,

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porque não, de perfeição?), Torga assume, no que considera a simplicidade do povo e a força do trabalho, a grandeza de ser homem. Poderá ter sido essa grandeza que o fez encontrar num deus multímodo o interlocutor e o adversário; poderá ter sido essa grandeza que o fez lutar incansavelmente contra a morte física e a servidão psicológica; e poderá ter sido essa grandeza que o fez carregar com a responsabilidade dos outros homens, espicaçando-os à liberdade ou, pelo menos, à identidade. Torga não é só orfeu rebelde em relação a uma certa divindade: é-o também em relação a toda a mentalidade e a todo o poder que se destine a subjugar homens a outros homens. É por isso que a O Outro Livro de Job se segue a Lamentação sobre os homens. E sobre os dois se construirá a Libertação.

Esta opção existencial de Torga pelos outros parte de si próprio, já o vimos. Mas conscientemente ela acompanha as suas reflexões. Imposta como modelo a atingir e como realidade a confrontar, esta opção funciona como um cilício em termos de exigência humana a apresenta-se como um estandarte em

relação ao povo449. E não vejamos agora o homem médico, mas o homem

poeta. Será difícil de encontrar uma poesia lírica, a par de reflexões profundas em prosa, tão intensamente preocupada com a condição humana. E não faz mais do que procurar para si a resposta ao que é ser homem: "como nunca saberei o que sou, nunca a caneta terá sossego" – desabafa ele duas páginas antes, na obra mencionada. A literatura, na qual vimos que Torga acreditava, e especificamente "a poesia é para ele a liturgia de uma fé humana, de uma atitude vital comprometida, é o conhecimento primeiro e último do seu viver como peregrino de um reino futuro e humanizado para o homem" – diz Rafael Filipe, que sintetiza ao mesmo tempo David Mourão-Ferreira, segundo o qual Torga é rebelde ao que o tenta asfixiar, mas socialmente responsável ao manifestar o seu inconformismo450.

Em todos os estudos que lhe são dedicados e onde as problemáticas mais diversas são abordadas, a dimensão humanista, ou melhor, de humanização, é uma constante directa ou indirecta. É essa a opinião de Maria Isabel Vaz ao abordar os escritos de Torga na Presença sob o ângulo da

449 Diário XII, 54.

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certeza e da dúvida: Torga apresenta uma profunda humanidade e procura apaziguar em si as forças opostas451; e é esse também o resultado da análise que Fernão de Magalhães Gonçalves faz sobre o que chama os três níveis do discurso de Torga: o teológico, o cósmico e o sociológico – porque o imperativo de liberdade do último não pode ser separado do fascínio telúrico do segundo e do apelo de transcendência do primeiro. O humano – diz o autor – resulta da conjugação destes três vectores452.

Deixemos também de lado o que os outros dizem sobre o pensar de Torga e ouçámo-lo directamente. Primeiro, no destino fraterno da sua acção. Ao justificar-se postumamente pela opção profissional, diz que, a ter de ser algo mais que poeta, foi bom que tivesse sido médico: "só no amor pelo semelhante, no bem directo que se lhe possa fazer, na ferida que se lhe cure e na dor que se lhe alivie, se poderá testemunhar a fraternidade e a

solidariedade dos homens"453; ao ser abalado por uma inesperada

desonestidade de um amigo ainda mantém que "o homem continua a ser a minha grande aposta. Sem acreditar nele, como poderia acreditar em mim?"454; e ao tentar convencer os transmontanos de Chaves sobre as suas responsabilidades na situação política, argumenta: "da certeza desse mundo melhor correrá sempre pura, incorruptível, a fonte do nosso fraterno amor pelo semelhante e do insofismável respeito pela sua pessoa humana"455.

Mas deixemos também o homem a dirigir-se aos outros homens e, em segundo lugar, vejamos também o peso que os homens ocupam na obra do arcanjo Miguel. "As palavras não valem nada, ...mas de vez em quando sempre conseguem despertar os que dormem" – foram estas das primeiras frases por que Miguel, d'A Terceira Voz, se apresentou, se afirmou e até justificou456. Mas, mais que estas, contam as que exortam os poetas: são eles que têm "a mão que só altura semeara", são eles agentes e cantores

... duma gesta de amor universal, Duma epopeia que não tenha reis, Mas homens de tamanho natural!

451 VAZ –De Peremptório a Hesitante: Adolfo Rocha na Presença, 484. 452 GONÇALVES –Ser e Ler Torga, 31.

453 Diário IV, 148-149. 454 Diário XIV, 30. 455 Fogo Preso, 62.

Homens de toda a terra sem fronteiras (...)

Homens do dia-a-dia

Que levantem paredes de ilusão! Homens de pés no chão,

Que se calcem de sonho e de poesia (...) (Odes, 59-62).

Contam as palavras que consciencializam a solidariedade universal do poeta pela liberdade, porque só o poeta "deseja com todas as veras da alma um mundo inequivocamente livre, onde cada qual tenha vergonha da condição diminuída do semelhante, e ninguém se sinta privilegiado e se esbarre com outra sombra que não seja a sua"457. Contam as palavras que identificam a dignidade do poeta e do seu semelhante: "o poeta, na transparência da poesia, só não trai o semelhante quando não se trai a si próprio"458. E contam as palavras que responsabilizam os poetas que se empenham (isto é, devem empenhar-se) no 'Cântico de Humanidade':

Hinos aos deuses, não. Os homens é que merecem Que se lhes cante a virtude. Bichos que lavram no chão, Actuam como parecem, Sem um disfarce que os mude. Apenas se os deuses querem Ser homens, nós os cantemos. E à soga do mesmo carro, Com os aguilhões que nos ferem, Nós também lhes demonstremos

Que são mortais e de barro (Nihil Sibi, 67).

Não é fácil a tarefa. Nem o foi na sua vida pessoal, pela meta que se impôs e até pela exigência do exemplo familiar: "desde criança que, a meus olhos, a dignidade da existência implicava o respeito pelo seu pleno acontecimento. Cada dia senhora do seu espaço sagrado e da sua duração. A verticalidade de meu Pai dera-me a medida do homem: um ser que em toda a grandeza concebível tinha a obrigação de se reflectir (...) o gosto da liberdade e

456 A Terceira Voz, 35. 457 Fogo Preso, 16-17. 458 Diário XII, 198.