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O papel central da negligência

O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO

2.5 O papel central da negligência

O actual desenvolvimento tecnológico leva a que uma errada gestão dos riscos inerentes a algumas actividades possa provocar resultados

103 Há a registar até agora, no Reino Unido, cerca de 90 mortes; sendo o período de incubação da doença de 20 anos, e não sendo esta detectável antes de se manifestar, é impossível estimar quantas pessoas terão ficado contaminadas.

64 dramáticos. Em consequência, há uma vasta área de criminalidade em que certas categorias assumem novos contornos, nomeadamente:

a) a das vítimas (quer pelo elevado número que pode provocar um só acto “descuidado”, quer pela sua indeterminabilidade);

b) a dos agentes (frequentemente grandes empresas, onde é difícil identificar os responsáveis, pois a cadeia de decisão se tornou inextrincável);

c) a da causalidade (difícil de determinar, devido aos efeitos à distância e dispersão dos agentes causadores, sendo que, por vezes, os resultados só se revelam anos depois).

O aumento da criminalidade por negligência está directamente ligado à presença crescente de “riscos provocados” – quer por acção, quer por omissão de deveres de vigilância da fonte de perigo104.

A responsabilidade pelo produto tem sido um campo fértil de exemplos, dos quais os mais conhecidos serão o caso do Lederspray e o do óleo de colza105. Esta área é uma das que mais evidenciam as características próprias da sociedade de risco já enunciadas: um único acto negligente pode trazer consequências que se disseminam por uma multiplicidade de pessoas (os consumidores); os efeitos podem ser imediatos e/ou projectar-se no tempo; as questões da relação de causalidade são particularmente difíceis de

104 Figueiredo Dias considera que a dogmática do risco incidirá particularmente nos crimes de omissão e nos crimes de negligência, principalmente de negligência grave ou grosseira, o que traz a necessidade de superar as deficiências dogmáticas que se verificam; não obstante, não entende ser necessária uma “dogmática alternativa”, propugnando antes uma adaptação dos conceitos existentes – DIAS (2001 a) p. 611; igualmente em DIAS (2001) p. 184 ss.

105 Alvo de acórdãos do BGH e do TS espanhol, respectivamente. Sobre estes casos e, em geral, a problemática da responsabilidade pelo produto, cf. HASSEMER/MUÑOZ CONDE (1995).Especificamente sobre o caso do óleo de colza, v. RODRIGUEZ MONTAÑES (1996) p. 263 ss. A responsabilidade pelo produto levanta com frequência graves problemas de comprovação de causalidade; analisando os casos do Lederspray e do azeite de colza desta perspectiva, PUPPE (1996) p. 215 ss. Sobre os problemas de imputação subjectiva suscitados pelo caso do óleo de colza, MAQUEDA ABREU (1995) p. 419 ss. KUHLEN (1996) p. 231 ss, comenta os problemas suscitados pela responsabilidade pelo produto de um ponto de vista sociológico e político-criminal, destacando o elevado potencial de perigo da fabricação de produtos nas sociedades altamente industrializadas.

65 resolver; frequentemente, os responsáveis são pessoas colectivas, podendo haver, dentro delas, responsáveis individuais ou tratar-se de decisões de órgãos colectivos, o que dificulta a identificação do(s) agente(s); e é uma área em que se torna bastante evidente que a negligência é uma errada gestão dos riscos, pois qualquer produto tem, inerente, uma certa dose de risco que acompanha as vantagens do respectivo consumo106.

Com efeito, pode afirmar-se que a sociedade de risco introduziu a consciência clara de que o agente negligente não é aquele que “cria riscos”. Pois que os riscos são omnipresentes e indissociáveis do quotidiano, ou seja, inevitáveis na vida em sociedade. O centro das relações sociais, no que importa ao direito penal, apresenta-se então como o risco e a gestão do mesmo. O papel do direito penal será, assim, manter os riscos inerentes à vida em sociedade dentro de parâmetros toleráveis (como quem organiza o funcionamento de um local cheio de instrumentos perigosos)107.

Desta perspectiva, o tipo base passa a ser o negligente e não o doloso, uma vez que o cerne da questão é o não-respeito pelas regras sobre gestão do risco. O que o dolo traz a mais é a vontade de não gerir o risco de acordo com os limites definidos, sendo a violação duplamente intencional: violação intencional do parâmetro da diligência e funcionalização dessa violação para obter um resultado (proibido). Isto é assim na modalidade intencional do dolo, mas já não no dolo eventual – a criar mais um problema à dogmática no

106 Isto torna-se particularmente notório quando se trate, por exemplo, de medicamentos (pois nunca são completamente isentos de efeitos secundários) mas está presente, em maior ou menor grau, em todos os produtos consumíveis.

107 Corcoy Bidasolo refere que, estando a vida actual repleta de actividades perigosas que invadem o quotidiano, o risco permitido terá de ser claramente definido e deverá ter em conta a utilidade social da actividade: quanto maior for esta utilidade, maior será o risco tolerado. A definição desta medida e o controlo do risco dentro dos limites considerados toleráveis, segundo esta autora, é essencial não só para evitar um número de acidentes socialmente insuportável, como também para evitar uma sensação de insegurança, por parte dos cidadãos, que levaria à compressão da sua liberdade e desenvolvimento pessoal. – CORCOY BIDASOLO (1999) p. 226. Também destacando a importância da utilidade social para o grau de tolerância ao risco, cf. CASTALDO (1997) p.235.

66 que concerne ao lugar atribuído ao dolo eventual. Vários autores chamam a atenção para este problema, pondo em causa a adequação dos critérios adoptados até aqui108.

Jakobs refere justamente que, embora sempre tenha havido riscos na sociedade, a evolução da técnica levou a que se centrasse a atenção na medida do risco permitido. Trata-se, então, de estabelecer quantitativamente até onde se permite o risco (v.g. de certas actividades). Neste sentido, quando se criam crimes de perigo abstracto, estes constituem fronteiras do risco permitido, estabelecidas formalmente; nem se pode afirmar que quem as ultrapasse está, sem mais, a agir negligentemente, mas terá de responder pelos possíveis resultados, pois criou um risco não permitido109.

Jakobs está consciente de que não se trata de procurar o risco zero, mas de encontrar o ponto de equilíbrio socialmente óptimo, mantendo o risco dentro de limites aceitáveis sem inviabilizar as actividades. Todavia, considera que “não é possível indicar [o risco permitido] através de uma percentagem” pois vai depender das circunstâncias e das características da actividade que o desencadeia. Sem prejuízo de lhe assistir razão nas reservas feitas, pode afirmar-se que falta aqui a Jakobs um modelo dinâmico (com variáveis) que quantifique o risco permitido, modelo esse que me parece viável e que permitirá uma nova configuração do dever de cuidado – não criando novos parâmetros para o mesmo, mas tornando visível um critério dotado de operatividade.

Se convertermos o dever de cuidado em um limite objectivo (móvel, mas dentro de parâmetros que permitem identificar os seus limites mesmo em movimento), a actuação de cada indivíduo deverá tê-lo como referente

108 V. entre outros DIAS (2008) p.247; SILVA SANCHEZ (1999) p. 22, considerando que o desenvolvimento tecnológico tem incidências particularmente importantes a nível dos crimes não intencionais e que, para este efeito, “é secundário” distinguir entre negligência e dolo eventual.

67 dotado de exactidão e manter-se dentro da fronteira normativamente fixada. Esta abordagem pressupõe que o indivíduo é capaz, em cada momento, de avaliar os factores em jogo, quantificá-los e inseri-los numa matriz adoptada pela sociedade e comum a todos os seus membros. É isto possível? Corresponde este paradigma de sujeito à realidade? É o que tentaremos clarificar nos capítulos seguintes.

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