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Henry Terry: “a negligência é uma conduta”

ANÁLISE ECONÓMICA DO DIREITO

3.2 Arqueologia de Posner

3.2.2 Henry Terry: “a negligência é uma conduta”

Várias décadas antes de o Juiz Learned Hand ter proferido a sua decisão sobre o caso da Carroll Towing, foi publicado na Harvard Law Review um estudo que continha já, em embrião, muitas das ideias que são a argamassa de um dever de cuidado objectivo127. O referido estudo começa por afirmar “Negligence is often defined as consisting of a breach of duty. That is

wrong: The duty in such a case can be defined only as a duty to use care, i. e., not to act negligently; and to define the duty so, and then to define negligence as consisting of a breach of the duty, is to define in circle” para, a partir desta crítica, propor

analisar “the nature of negligence, not duties to use care”128. A abordagem assim enunciada traduz um passo importante no caminho para a objectivação do dever de cuidado, na medida em que, ao pretender encontrar a “natureza da negligência”, a encara como uma realidade exterior, apreensível por qualquer pessoa.

127 TERRY (1915). 128 TERRY (1915) p. 40.

76 Terry, ao proferir a célebre afirmação “negligence is a conduct, not a

state of mind”129; estabelece também uma clara distinção entre o juízo de censura que geralmente surge associado à avaliação da negligência e a conduta que é, em si, negligente, e, deste modo, antecipa aquilo que o finalismo havia de consagrar no direito continental anos mais tarde, a saber, a separação entre os elementos subjectivos do tipo, o desvalor da acção e a culpa130.

Antecipando também os critérios de gestão do risco e de razoabilidade como regra de “boa decisão”, define o cuidado devido como a conduta que não envolve um risco irrazoavelmente grande de causar danos. Está subjacente a esta definição, como bem se compreende, o prenúncio de uma abordagem quantitativa – mensurável e contabilizável – que a análise económica do direito havia de consagrar e desenvolver.

Terry apercebe-se de que o indivíduo, ao optar por correr um risco irrazoavelmente elevado, o faz por razões of his own131. Esta perspectiva, no plano da Teoria da Decisão e de uma abordagem puramente economicista (como a de Posner), corresponde à ideia de que o comportamento pode sempre ser explicado de acordo com um modelo de racionalidade, mesmo quando, aparentemente, foge aos cânones estabelecidos; deve, então, considerar-se que o indivíduo, ao optar por agir como agiu, o fez em virtude de novas variáveis inseridas na matriz decisória.

Num esboço do que poderia vir a ser uma matriz do dever de cuidado, Terry enuncia os cinco factores a ter em conta para aquilatar da

129 TERRY (1915) p. 40. Voltaremos a esta classificação mais adiante.

130 Mais adiante, Terry retira desta sua posição a conclusão de que, face a um padrão de comportamento que é o exigido e que corresponderá à conduta de um homem razoável, o agente, tendo actuado de outro modo, será culpado de negligência ainda que tenha agido o melhor que sabia (p. 41). Pode mesmo colocar-se a hipótese de o agente ter sido motivado por um erro, mas este respeitará ao “state of mind” e não à conduta, que permanecerá negligente.

77 razoabilidade de determinado risco132: 1- a magnitude do risco; 2- o valor do objecto que é exposto ao risco (objecto principal, na terminologia de Terry); 3- o valor do objectivo prosseguido através da conduta arriscada (objecto

colateral); 4- a probabilidade de que o objecto colateral seja alcançado

(utilidade do risco)133; 5- a probabilidade de que o objecto colateral não seria alcançável sem se correr o risco (necessidade do risco).

O conceito de objecto colateral virá a ser de grande relevância na construção de uma matriz do dever de cuidado, nomeadamente quando se trata de saber como deve ser equacionado o seu valor e se há objectos colaterais, socialmente não aceites, que não devem ser contabilizados. Como veremos, no caso de um objecto colateral a que a sociedade não atribua qualquer valor (ou atribua mesmo um valor negativo), mas que, para a decisão do sujeito, foi determinante, e admitindo que a opção assim feita deva ser considerada errada segundo padrões normativos, há duas vias de abordagem: ou se recusa atribuir valor ao objecto colateral em questão, ou se condiciona essa atribuição ao enquadramento entre padrões fixos das restantes variáveis.

Em qualquer das hipóteses, nem todos os valores a introduzir no modelo de dever de cuidado são os valores subjectivos estimados pelo agente134.

N a aplicação do critério custo-benefício, temos que:

a) o valor do bem em risco (objecto principal) é o atribuído pela sociedade, não o atribuído pelo indivíduo;

b) o valor do objecto colateral é o atribuído pelo indivíduo - mas, além de estar limitado por outras variáveis (como veremos) pode questionar- -se se devem ser contabilizadas certas compensações que os indivíduos

132 TERRY (1915) p. 42-44.

133 Este factor desaparece nas construções posteriores a 1915.

78 valorizam, como, por exemplo, a excitação obtida ao conduzir fora de mão numa auto-estrada;

c) o valor da probabilidade de concretização do risco é a variável de densificação mais controversa, e dela nos ocuparemos mais adiante.

Terry ultrapassa o problema enunciado em b) circunscrevendo os objectos colaterais a serem considerados ao âmbito dos “objectos legais”, ou seja, aqueles e apenas aqueles que encontrem protecção na lei. Mas isto seria empobrecer desmesuradamente a capacidade operativa do conceito; desmesuradamente e desnecessariamente, uma vez que, como veremos mais adiante, se pode considerar o valor atribuído pelo agente sem que o juízo proferido sobre a sua conduta seja uma réplica da matriz decisória daquele. É desta dicotomia, aliás, que resulta a completude do tipo penal.

Se Terry intuiu a maior parte das principais coordenadas do dever de cuidado objectivo, não foi, no entanto, capaz de se libertar do critério do homem médio (standard man) como referência do que considerou a razoabilidade da “boa decisão”. Chega mesmo a identificar o critério da razoabilidade com a actuação do homem médio, sem explicar porquê e esvaziando, de certo modo, o conceito que erigira como central de toda a sua construção135.

Faltavam ainda alguns anos até que Ramsey lançasse a primeira pedra do que veio a ser a teoria da decisão136. E, embora as bases teóricas existissem já (quer no plano filosófico, quer a nível dos utensílios matemáticos) em 1915, foi pela porta da economia que o cálculo dos custos e

135 TERRY (1915) p. 47 e ss.

136 O ensaio de Ramsey, Truth and Probability, tem sido considerado como precursor da base em que assenta a moderna teoria da decisão e, por outro lado, da teoria dos jogos desenvolvida por Neumann/Morgenstern. Ao analisar o conceito de probabilidade subjectiva, Ramsey demonstra que a abordagem intuitiva feita por cada indivíduo obedece às leis das probabilidades e corresponde a um modelo de racionalidade. Ramsey elabora ainda um método para medir preferências e desmonta o mecanismo mental através do qual os indivíduos tomam decisões. Cf. Ramsey (1926) p. 166-167, 183, e principalmente 191 ss.

79 benefícios entrou no mundo do direito, quase meio século depois de Terry ter escrito o seu estudo137.