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De Parménides a Pascal

A ACÇÃO COMO OPÇÃO O mito da negligência inconsciente

7.1 De Parménides a Pascal

O pensamento ocidental foi, ao longo de séculos, dicotómico, baseado na oposição dos contrários e não na harmonia dos diferentes. A cisão entre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, a carne e o espírito, teve profunda influência em todas as áreas do saber e constituiu um verdadeiro paradigma, só muito recentemente posto em causa. Ao desempenhar um papel matricial na construção deste paradigma, o pensamento de Parménides influenciou profundamente a mentalidade ocidental.

Segundo Parménides – e em oposição ao pensamento de muitos dos seus contemporâneos, que precisamente contestou –, o mundo da diversidade inter-actuante e mutante (a que Heraclito se referia como unidade dos opostos335) – é apenas ilusão. Nesta medida, prenuncia já o

335 E que, em última análise, conduziria à harmonia – note-se aqui a diferença radical entre o substrato do pensamento de Heraclito e o de Parménides, e a proximidade de Heraclito face ao pensamento oriental; o pensamento da Europa ocidental optou pela via oposta – a de

193 pensamento de Platão, o que levou a que autores como Elizabeth Anscombe e Simon Blackburn (não sem algum exagero, parece-me) tenham afirmado - parafraseando a célebre frase de Whitehead segundo o qual a filosofia ocidental é uma série de notas de rodapé a Platão – que Platão é, por sua vez, um conjunto de notas de rodapé a Parménides.

A partir de Parménides (para quem a realidade deve ser apreendida pela razão e não pelos sentidos) está consagrada a dicotomia omnipresente entre o verdadeiro e o falso, pois o que é, é e não pode não ser. O conhecimento tem de ir ao encontro de um real que é fixo, imutável e uno: a pluralidade e a mudança não passam de ilusão dos sentidos.

O pensamento de Parménides - o mais dogmático de todos os grandes filósofos gregos, nas palavras de Popper336 - é radicalmente avesso à incerteza. Podemos dizer, com alguma ironia, que se situa nos antípodas do gato de Schrödinger. Para um determinismo exacerbado como este, que de algum modo varreu todo o pensamento científico durante milhares de anos, o acaso só se explica através do recurso ao anátema da ilusão. Foi preciso que a realidade se revelasse, ostensivamente, aleatória, para que a ciência aceitasse construir-se incorporando a incerteza337. Planck, Bohr, Heisenberg, entre outros, foram protagonistas de uma verdadeira revolução que, na primeira metade do século XX, abalou irremediavelmente a concepção determinista do mundo. As raízes criadas pela nova concepção implantaram- -se solidamente, a ponto de se poder afirmar que “de momento, ninguém vê como o princípio da incerteza pode ser eliminado”338.

Parménides - daí decorrendo profundas consequências a nível de abordagem do mundo. Para uma contraposição entre o pensamento de Parménides e o de Heraclito, cf. GRAHAM (2002).

336 POPPER (1965) p. 148. Sobre a influência nefasta de Parménides no pensamento científico, cf p. 47 e ss.

337 E mesmo aí, como sabemos, alguns, entre os melhores, não se resignaram, afirmando o império da relação de causa-efeito quase como uma profissão de fé.

194 A mais conhecida tentativa de construir uma teoria que permitisse abordar metodicamente os processos aleatórios é a de Cardano, no século XVI, embora sejam conhecidos alguns esboços desde, pelo menos, o século X, ainda que sem qualquer desenvolvimento matemático. Escrito cerca de 1550 (é desconhecida a data exacta), o Liber de Ludo Aleae, de Cardano, constitui, para além de um manual para jogadores (Cardano foi durante toda a sua vida um apaixonado pelo jogo), um texto inovador sobre o cálculo de probabilidades. No entanto, como a obra só foi publicada em 1663, perdeu em parte o impacto que poderia ter tido no pensamento científico339.

Situa-se, geralmente, o “nascimento” da probabilidade, enquanto conceito científico, nas cartas trocadas entre Pascal e Fermat, no Verão de 1654340. Antoine Gombaud, que ficou mais conhecido como Cavaleiro de Méré, procurou Pascal para lhe colocar a seguinte questão341: dado um determinado jogo que se desenrolava em várias jogadas, e tendo os jogadores feito as suas apostas, se o jogo for interrompido antes de terminadas todas as jogadas, como deve ser repartido aquilo que foi apostado? Pascal expôs o problema a Fermat e ambos debateram o modo de o resolver em sete cartas trocadas durante os meses seguintes. Discordando quanto ao método, alcançam, no entanto, exactamente a mesma solução, embora por diferentes vias: enquanto Fermat parte, para calcular a resposta, de um cálculo de probabilidades (de ganho), Pascal utiliza como base de trabalho as expectativas de cada um dos jogadores. Alguns anos mais tarde, na sua obra

339 Aliás, é legítimo questionar se no contexto sociocultural do século XVI o pensamento probabilístico teria tido o mesmo desenvolvimento que veio a conhecer um século depois, a partir dos textos de Pascal, quando se inseriu em quadros mentais já bem diversos.

340 Desconhece-se a data da primeira e segunda cartas; a terceira é de 29 de Julho de 1654, e a sétima e última tem a data de 27 de Outubro do mesmo ano.

341 Com razão, afirma Laplace que “é notável que uma ciência que começou com jogos de azar se tenha tornado o mais importante objecto do conhecimento humano”.

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De ratiociniis in ludo alea (1657), Huygens sistematizou aquilo que resultava já

das cartas entre Pascal e Fermat.

O marco seguinte neste percurso é a obra de Jacob Bernoulli, Ars

Conjectandi, de 1713, seguindo-se os trabalhos de Daniel Bernoulli, em 1738,

em resposta ao paradoxo de S. Petersburgo, que lhe fora apresentado por seu primo Nicolau. A fundamentação apresentada por Daniel Bernoulli, na solução do paradoxo, ainda hoje tem utilidade na análise de decisões em situação de incerteza.

Em 1763 foi publicada a obra póstuma de Thomas Bayes An Essay

Towards Solving A Problem in the Doutrine of Chances. O teorema de Bayes,

reportando-se à distribuição probabilística em situações de incerteza, permite a alteração de probabilidades estabelecidas a priori, através de novas e relevantes evidências. Sendo basicamente um modo de calcular probabilidades condicionais, o teorema (e todo o pensamento subjacente) foi determinante para o desenvolvimento de uma lógica indutiva e uma abordagem subjectivista do conhecimento. O trabalho de Bayes, que na época não provocou especial impacto, havia de influenciar profundamente, já no século XX, a teoria das probabilidades. Mas durante todo o século XIX foi a perspectiva de Laplace que se impôs. Pierre Simon Laplace publicou, em 1812, a Théorie Analytique des probabilités, lançando as bases daquilo a que hoje chamamos a teoria clássica de probabilidades e que, quer na sua forma original, quer na formulação frequencista, posterior, faz uma abordagem objectivista das probabilidades.

Só no século XX a vertente subjectiva da abordagem probabilística do mundo foi recuperada, primeiro por Ramsey e depois por Finetti (trabalhando em paralelo, pois o segundo desconhecia os trabalhos anteriores de Ramsey aquando da publicação, em 1937, de La prévision : ses

196 probabilidade subjectiva surgiu no momento em que, em todos os campos de pensamento, a incerteza se instalava como um dado incontornável: Max Planck introduzia a física quântica; o tempo e o espaço subitamente apareciam como relativos342 e Heisenberg enunciava o princípio da incerteza, recorrendo, em todo o seu trabalho, ao cálculo estatístico343. A certeza determinista foi irrevogavelmente substituída pelo cálculo de probabilidades, que se converteu na própria matéria do pensamento científico.

O texto de Ramsey344 intitula-se, reveladoramente, Truth and

Probability, apontando para uma relação dialéctica difícil, que estava, na

época, a ser re-equacionada sobre bases completamente diferentes das utilizadas até então. Como Ramsey afirma, o espírito humano rege-se por determinadas regras e hábitos, que são utensílios com os quais aborda a realidade e lhe atribui relações lógicas345. E o que medimos é o grau de convicção do indivíduo, uma vez que o ideal de ter uma opinião verdadeira e estar certo dela não está ao alcance do ser humano346.

342 Esta revolução, ainda que o próprio não a tivesse desejado, é, por isso, também einsteiniana. Aliás, Einstein, em 1905, desenvolveu as implicações do trabalho de Planck, demonstrando ter plena consciência da profundidade das suas consequências.

343 Ao analisar o contributo da física moderna para novos modelos de pensamento, Heisenberg identifica dois momentos cruciais para aquilo que designa como a ruptura com o enquadramento rígido do século XIX, o qual, segundo ele, tinha já revelado a sua insuficiência para explicar alguns aspectos essenciais da realidade. Esses dois momentos corresponderiam à constatação (por via da teoria da relatividade) da necessidade de alterar os conceitos de espaço e de tempo, por um lado, e por outro, a discussão sobre o próprio conceito de matéria (desencadeada pelas experiências sobre a estrutura do átomo) – HEISENBERG (1958) p. 138.

344 Escrito em 1926, incluído em The Foundations of Mathematics and other Logical Essays (1931). 345 RAMSEY (1926) p. 194: “We have therefore to consider the human mind and what is the most we

can ask of it. The human mind works essentially according to general rules or habits; a process of thought not proceeding according to some rule would simply be a random sequence of ideas”.

346 Ibidem: “As has previously been remarked, the highest ideal would be always to have a true opinion

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