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Valor subjectivo e escalas de utilidade

UTILIDADE (SUBJECTIVA) ESPERADA

5.2 Valor subjectivo e escalas de utilidade

Se tivermos presente que lidamos com abstracções, a atribuição de valores monetários pode ser satisfatória em muitos casos, e tem a vantagem da simplicidade e acessibilidade a qualquer observador. Permite uma comparação linear entre valores e é geralmente eficaz na análise de um evento singular. No entanto, há que ter em conta os limites do seu campo de aplicação. Não só pelos motivos expostos, mas também porque se torna ineficiente na análise de eventos mais complexos - pois obrigaria à conversão em unidades monetárias de uma multiplicidade de factores de variadíssima natureza. Esta é uma das razões por que o valor subjectivo de um objecto pode, em certos casos, divergir fortemente do valor que lhe é geralmente atribuído.

Suponhamos duas casas próximas, ambas com 100 m2 de área total: a casa A tem quatro divisões e uma pequena varanda; a casa B tem apenas três divisões, mas tem um esplêndido terraço com vista para o mar. Se calcularmos o valor das casas com base em preço/m2/localização, as casas A e B deverão ser postas à venda pelo mesmo preço. Se fizermos o cálculo com base em preços de mercado – regulados pela lei da oferta e da procura – deveremos ter em conta as características da população naquela zona. Suponhamos que se trata de uma população tendencialmente constituída por casais com um ou dois filhos em idade escolar: claramente, a casa A terá um valor de mercado superior. A casa B só será mais valiosa para um mercado de agregados familiares pequenos e com um poder de compra médio (se o poder de compra for baixo, as pessoas preferirão comprar uma casa com menor área e mais barata, pois o terraço constituirá um luxo que não quererão suportar).

150 O mercado imobiliário é, aliás, um bom exemplo de como a atribuição de valores monetários resulta de um processo complexo, dependendo de múltiplos factores que influenciam o preço final – factores esses tão variados como área, localização (vizinhança, acesso a comércio, escolas, transportes), características do imóvel, etc. Se esta argumentação parece suportar a tese de que tudo é, afinal, convertível em unidades monetárias – pois, efectivamente, os imóveis são transaccionados por determinadas somas de dinheiro – demonstra também que o cômputo é muito complexo e, se exequível em termos de média – para uma população com determinadas características – pode tornar-se ineficaz quando queremos calcular o valor subjectivo (unitário) com expressão quantificada.

A construção de escalas de utilidade revela-se, nestes casos, uma forma mais adequada de estabelecer preferências e comparar utilidades. Com efeito, se perguntássemos a um concreto indivíduo quanto vale uma vista para o mar, ser-lhe-ia difícil quantificar esse valor (subjectivo) em termos de “preço”; muito mais facilmente, no entanto, identificaria a sua opinião numa escala de x a y, pois esta permite situar o valor em termos de preferência (valor relativo) sem necessitar de estabelecer o equivalente numa quantia concreta.

Enquanto os valores monetários obrigam a precisar uma utilidade cardinal (difícil de estabelecer e sujeita a grandes flutuações individuais, por isso de reduzida eficácia como código comunicacional) o sistema de escalas apenas requer a atribuição de utilidades ordinais. Se nos pedirem para dizer quanto vale, em dinheiro, um passeio no campo, teremos dificuldade em responder; mas será com certeza fácil dizer se (para nós) esse passeio vale

151 mais ou menos do que uma ida ao cinema, ou mesmo situar esse valor numa dada escala269.

Ao construirmos uma escala de utilidade, as preferências entre as várias alternativas (A1, A2… An) deverão ser nela inscritas de acordo com a ordem e intervalo que as separa; desse modo, poderá ser-lhes atribuído um valor numérico.

Tratando-se de uma escala intervalar, as diferenças entre os vários pontos assinalados admitem interpretações que constroem um sentido, pois correspondem a uma relação entre as preferências do sujeito – ou seja, a escala capta a dinâmica inter-relacional para além dos valores (estáticos) inscritos.

Este tipo de escalas, pelas suas características, está particularmente vocacionado – e tem sido utilizado – para registar atitudes, opiniões, sentimentos ou percepções (como por exemplo a dor – que é uma experiência irredutivelmente individual).

Aliás, uma vez que o ponto zero não é fixo, mas inscrito arbitrariamente, o que interessa é a distância (o intervalo) entre os valores, que não têm um significado absoluto em relação a qualquer ponto, mas apenas valores atribuídos em função de uma hierarquia convencionada.

Se, por exemplo, I deve escolher entre ir de férias para Tavira, para o Sul de Espanha ou para a Sardenha, e se I prefere a Sardenha a Espanha e esta a Tavira, teremos (por hipótese) numa escala de 0 a 10:

269 Sobre a ordenação de preferências do decisor numa escala, cf. Keeney e Raiffa: depois de estabelecerem o modo de inscrição das consequências consoante a ordem de preferências, os autores conjugam a escala assim obtida com a ordenação das probabilidades estimadas pelo decisor. A partir da fórmula π‟ = ∑ pi πi (em que π corresponde ao valor ordinal na escala e p

à probabilidade) os autores demonstram como os valores escalares condicionam a utilidade esperada e a escolha do indivíduo - KEENEY/RAIFFA (1976) p. 133-134.

152 A1 A2 A3

0 T E S 10

Numa escala intervalar, a alteração dos valores inscritos só pode ser efectuada mediante uma conversão linear positiva, de modo a que se respeitem os intervalos.

Esta conversão obtém-se aplicando a fórmula

x’ = a+bx.

Desta forma, é sempre possível converter uma escala em outra sem afectar os intervalos relativos das preferências (ou qualquer outra realidade) nela inscritas.

Tudo se passa como se a distribuição das preferências ao longo da escala se deslocasse para a direita ou para a esquerda (conforme a componente aditiva a seja positiva ou negativa), mas mantendo as posições relativas. Graficamente, podemos apresentar deste modo o efeito obtido:

A componente multiplicativa, por sua vez, vai ampliar os desvios mas respeitando as suas proporções.

transformada original

153

No exemplo das férias de I, se convertêssemos a escala supra numa escala de 1 a 20, e se T correspondesse a 2, E a 4 e S a 9, o resultado seria o seguinte: Xi Xi’ = a + bX T = 2 T’ = 4,8 E = 4 E’ = 7,6 S = 9 S’ = 18,1 * sendo a = 1 e b = 1,9.

Veríamos, então, que E não vale o dobro de T, pois os valores passariam a ser, respectivamente, 4,8 e 7,6. Assim se tornaria mais evidente que a opção A2 é relativamente indiferente a A1, o que pode influenciar a escolha do indivíduo a favor de A1, tendo em conta os restantes factores a considerar. Também por isso, é importante que a escala a construir seja intervalar: as transformações permitem interpretar melhor os dados disponíveis.

Há ainda um segundo argumento de peso contra a referência a valores monetários com vista à construção de matrizes de decisão.

Suponhamos uma empresa (WW) que comercializa um produto (milho colorido) cuja inocuidade para a saúde humana suscita dúvidas270. O que é importante contabilizar, para efeitos de tomada de decisão sobre a comercialização do produto, não é directamente o valor das vendas (quanto milho vende por ano a WW, por exemplo) mas qual a utilidade que isso representa para a WW: é diferente se constituir 50% das vendas, se a WW é

154 uma grande ou pequena empresa, etc. Bernoulli afirmava, na solução apresentada para o paradoxo de S. Petersburgo, em 1738, que cada aumento de riqueza produz um aumento de utilidade inversamente proporcional à quantidade de bens que o indivíduo já possui. Esta é uma verdade sempre presente, desde as grandes mudanças até às pequenas realidades do quotidiano (para utilizar um exemplo absolutamente banal: para alguém que chega a casa cheio de sede, numa tarde de Verão, o primeiro copo de água tem uma utilidade superior ao segundo, e assim sucessivamente, até que porventura o quarto ou o quinto não terá já qualquer utilidade para o indivíduo em causa).

De certo modo, quando Bernoulli, no século XVIII, se referia a

utilidade em lugar de valor, estava já a dar lugar à ideia de utilidade

marginal271, ou seja, um valor que varia de indivíduo para indivíduo. Não há, realmente, um valor objectivo, mas apenas uma qualidade para o sujeito que depende da utilidade que aquele bem possa ter para ele naquele momento.

Mesmo na formulação mais simples da utilidade subjectiva esperada, esta componente está presente. Se

UE = ∑ (PiVi)

(em que P é a probabilidade de cada alternativa e V o valor da consequência de cada alternativa)

está ínsita na utilidade esperada a subjectividade do valor atribuído ao outcome.

271 Conceito que só um século depois seria teorizado e desenvolvido, a partir dos trabalhos de Walras e Pareto, na Suíça e, em Viena, de Menger. A ideia de utilidade marginal estava efectivamente já presente no trabalho de Daniel Bernoulli, em 1738, e foi aflorada por Gabriel Cramer, contemporâneo de Bernoulli, e por vários outros autores ao longo do século XVIII. Mas só com a chamada Revolução Marginalista, no final do século XIX, a ideia de utilidade marginal ganhou aceitação generalizada e se desenvolveu, revelando todas as suas potencialidades.

155 Se a quantificação da utilidade sempre foi uma tarefa difícil (constituindo, por isso mesmo, um dos calcanhares de Aquiles do utilitarismo) a introdução de uma maior dose de subjectividade no conceito deveria ter tornado essa tarefa praticamente impossível. Paradoxalmente, não foi isso que sucedeu.