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Princípio da precaução

O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO

2.4 Princípio da precaução

Sendo as actividades produtivas modernas inevitavelmente ligadas ao risco – que terá de ser assumido, sob pena de se paralisar o desenvolvimento – casos há, no entanto, em que esses riscos se apresentam já sob a forma de incerteza. Ou seja, em que se torna impossível prever com um grau mínimo de segurança quais os riscos envolvidos. Isto verifica-se principalmente nas actividades recentes e muito complexas, que envolvem processos ainda pouco estudados (como acontece, por exemplo, com a manipulação genética ou com os danos ambientais provocados pela actividade industrial intensiva). Outros casos há em que a dificuldade se situa ao nível da prova do nexo causal, devido a insuficiência dos conhecimentos técnico-científicos87.

Que fazer? Deve o direito, na dúvida, intervir, ou deve fazê-lo apenas quando haja informação suficiente para se estimar um risco inaceitável88?

87 Cf. sobre esta questão, analisando algumas áreas particularmente problemáticas (uso de pesticidas na água para consumo humano ou de hormonas na criação de animais) a nível da União Europeia, TINDALE (1998) p. 57 ss.

88 Numa perspectiva de superação do problema como é geralmente equacionado, cf. GRANTS/QUIGGINS (2007) p. 10 ss. Depois de contrapor o princípio da precaução - segundo o qual, “quando há uma probabilidade séria mas não provada de um dano, deve-se agir como se o risco correspondesse à realidade” – ao princípio permissivo – segundo o qual, nessas circunstâncias, se o perigo não está demonstrado, “deve-se conceder o benefício da dúvida e será permitido agir”, os autores propõem, em lugar desta opção dicotómica, a construção de um modelo que integre todos os eventos possíveis e as respectivas probabilidades e a partir do qual se defina um critério de escolha capaz de contemplar a evolução dessa descrição, à medida que os conhecimentos vão sendo alterados e

58 O princípio da precaução tem sido avançado como uma via de resposta a esta questão89. No entanto, nem o seu conteúdo nem sequer a sua natureza são claros90.

Desde logo, pode-se ter posições mais moderadas quanto ao momento em que se deve intervir ou, como fazem alguns autores, defender que, na mera hipótese de grandes perigos, a actividade deve ser proibida até se provar que é inofensiva91.

Esta última posição parece-me insustentável, na medida em que não é possível provar que uma actividade é inofensiva; pois sempre subsistirá a hipótese de vir a descobrir-se que acarreta consequências nocivas que passaram despercebidas ou que só se revelam a médio prazo e eram, portanto, inexistentes no momento. Por outro lado, para muitos autores o princípio da precaução não consistirá num “comando de abstenção” mas sim num “comando de regulação”, a impor às actividades e situações particularmente perigosas um maior controlo dos riscos e uma disciplina mais apertada92.

A discussão coloca-se também a nível da natureza do princípio: para alguns ele terá a função de orientar genericamente as condutas, surgindo,

completados. Pretensão ambiciosa e não totalmente conseguida, mas a apontar talvez novos caminhos para a gestão do risco através dos recursos da teoria da decisão.

89 A precaução consistirá, na expressão de Alexandre Kiss, na prevenção do risco, ao regular os comportamentos de risco “tendo em conta directamente o risco e não apenas as suas consequências” – KISS (1991) p. 51.

90 Romeo Casabona chama (acertadamente) a atenção para a necessidade de conjugar a probabilidade de lesão com a gravidade do resultado. Para este autor, o princípio da precaução implica a necessidade de actuar a fim de prevenir danos particularmente graves, mesmo que não exista “uma evidência cientifica completamente comprovada” sobre o potencial lesivo de uma actividade ou de um produto – ROMEO CASABONA (2005) p. 95. Numa perspectiva não (directamente) jurídica, analisando o efeito das possíveis medidas sobre a opinião pública e a sua capacidade de estabilização social, cf. POWELL (2001) p. 224 ss.

91 Esta última é a posição de Kindhäuser, que rejeita a hipótese de, quando se trate de “grandes perigos”, se poder confiar apenas na obrigação de proceder com o cuidado devido – KINDHÄUSER (1996) p. 83 ss.

59 portanto, com a natureza de uma norma dirigida a todos os membros da sociedade (pessoas singulares e colectivas)93. Para outros, seria um princípio orientador do poder público, impondo-se a sua intervenção quando estivessem em causa a segurança de bens jurídicos importantes, ainda que não se conhecesse com exactidão a gravidade do risco (ou mesmo as suas características). Por fim, o princípio da precaução pode ser considerado como um princípio interpretativo de normas – mas teria um papel a desempenhar também na delimitação dos comportamentos negligentes, assim se conjugando com esta a primeira acepção referida supra.

Concordo com Romeo Casabona quando este autor defende que todas estas três vertentes integram a natureza do princípio da precaução94, mas penso que, no que toca à orientação dos poderes públicos, a intervenção destes deve ser muito limitada, sob pena de, sem fundamento, se paralisar a livre iniciativa e, no direito penal, se desrespeitar o princípio da intervenção mínima.

O direito penal não pode actuar – mesmo admitindo, como actualmente se admite (crimes de perigo, v.g. perigo abstracto), o seu papel preventivo – com um pendor antecipatório baseado em ignorância invencível quanto ao potencial lesivo da conduta em causa95.

Embora em menor escala, a mesma abordagem restritiva do princípio da precaução deve aplicar-se no direito administrativo, com base

93 V. definição e recomendações consagradas na Declaração de Wingspread, em 1998: “Corporations, government entities, organizations, communities, scientists and other individuals

must adopt a precautionary approach to all human endeavours”. “Therefore, it is necessary to implement the Precautionary Principle: When an activity raises threats of harm to human health or the environment, precautionary measures should be taken even if some cause and effect relationships are not fully established scientifically.”

94 ROMEO CASABONA (2005) p. 95.

95 Ainda que concordando com a constatação de Silva Dias de que “a imposição de deveres de cuidado já não serve para evitar a lesão do bem jurídico, mas para impedir a superação de um risco artificialmente definido” – S. DIAS (2008) p. 248 – penso que é imperioso zelar, através de parâmetros claramente definidos, para que a prevenção não se torne o ponto de partida para um direito penal totalmente desprovido de referentes legitimadores.

60 na objecção referida quanto à paralisação das actividades. Admite-se, no entanto, que em actividades particularmente arriscadas e sujeitas, por isso, a um controlo mais apertado, o princípio da precaução possa ser um elemento a ter em conta (uma espécie de “factor de desempate”) quando se trate de regular aspectos concretos dessa actividade.

Desde 1980 têm proliferado os encontros e diplomas internacionais relacionados com a ideia de precaução, aplicada a diversas áreas. Cite-se, a título de exemplo e referindo apenas os mais antigos, pelo seu papel fundador: a Convenção de Viena, de 22 de Março de 1985, sobre a protecção da camada do ozono; a Conferência Ministerial de Bergen, em Maio de 1990, sobre desenvolvimento sustentável; a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre alterações climáticas, adoptada em Nova Iorque, em 9 de Maio de 199296; a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em Junho de 199297.

No âmbito da União Europeia, temos como ponto de referência a Comunicação da Comissão sobre o Recurso ao Princípio da Precaução, adoptada em Fevereiro de 2000. Com esta comunicação, a Comissão pretendeu informar as partes interessadas sobre a forma como pretende aplicar o princípio e define o seu âmbito de aplicação, destacando como objectos principais o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais e a protecção vegetal.

Nesta Comunicação pode ler-se: O princípio da precaução faz parte de

uma abordagem estruturada à análise de riscos, sendo igualmente relevante no que

96 Precursora de vários outros diplomas internacionais sobre o tema, dos quais se destaca o protocolo de Quioto.

97 É o seguinte o texto do Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

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diz respeito à gestão de riscos. Abrange casos em que os resultados científicos são insuficientes, inconclusivos ou incertos e uma avaliação científica preliminar indica que há motivos para suspeitar que efeitos potencialmente perigosos para o ambiente, a saúde das pessoas e dos animais ou a protecção vegetal podem ser incompatíveis com o elevado nível de protecção escolhido pela EU. Note-se a expressão “há motivos

para suspeitar”, a revelar uma posição cautelosa que contraria as tendências alarmistas na origem de um direito exageradamente securitário.

Mais adiante, a Comissão afirma mesmo que o princípio da precaução não tem em vista “um nível zero” de risco, fornecendo tão só “um enquadramento razoável e estruturado para a actuação face à incerteza científica”.

Pode ser útil acompanhar um caso recente que ilustra de forma exemplar os problemas em causa: a encefalopatia espongiforme de bovinos criados para consumo humano.

A encefalopatia espongiforme bovina (BSE) foi detectada pela primeira vez no Reino Unido em Novembro de 1986. Inicialmente, pensou-se que a doença estaria relacionada com o scrapie, doença conhecida há muito98, que afecta as ovelhas e tem sintomas semelhantes. Os cientistas aventaram que o scrapie teria sido transmitido ao gado bovino através de alimentação preparada com restos de carcaças de ovelhas99. Colocou-se a hipótese de um

98 Pelo menos desde 1732, embora nessa data ainda não fosse assim designada.

99 Muito crítico sobre a forma como a BSE foi abordada inicialmente, v. GRAY (1998). E, numa perspectiva igualmente crítica e fortemente pessimista, GROVE-WHITE (1998) p. 50 ss. Este autor preconiza que as decisões sob incerteza, na sociedade industrial actual, devem ser tomadas de forma partilhada, com uma forte participação social. Mas pode-se questionar até que ponto isto será viável, uma vez que frequentemente as pessoas não detêm informação suficiente sobre os problemas; seria necessário investir numa comunicação detalhada e profunda sobre o que a ciência sabe e ignora, a um nível que, em certos casos, se revelaria impraticável. Sem esquecer que frequentemente a ciência não pode fornecer senão meras hipóteses e dúvidas, como destaca, precisamente a propósito do caso da BSE, DURANT (1998) p. 70 ss. O meu cepticismo não significa que discorde da bondade da participação popular nas decisões que afectam toda a comunidade e, por vezes, o próprio equilíbrio ecológico – traduz apenas a preocupação com os meios indispensáveis a uma capacidade decisória real.

62 novo processo de preparação da alimentação, que tinha começado a ser utilizado cerca de 5 anos antes, não ser eficaz na destruição da doença, permitindo-lhe atravessar a barreira das espécies. Na realidade, segundo se veio a apurar, foi a “reciclagem” de tecidos animais em farinha para alimentação que esteve na origem da epidemia100. Desde 1900 que se utilizavam sistematicamente carcaças de animais na alimentação de herbívoros, sem que se suspeitasse que tal poderia vir a desencadear consequências com as proporções da BSE. Não foi, no entanto, directamente o scrapie o responsável pela BSE, ao contrário do que se pensara inicialmente. Estudos posteriores vieram revelar que a BSE resultara de mutações complexas nas proteínas (os priões).

A partir de 1988 foram tomadas medidas destinadas a evitar a transmissão da doença entre os bovinos, nomeadamente interditando a utilização de carcaças na alimentação. Nesta fase não havia ainda indícios de ligação entre a BSE e a doença de Creutzfel-Jakobs (CJD), que afecta os humanos, embora tenham começado a surgir indícios que apontavam para essa eventualidade101. Só em 1996, no entanto, face à informação fornecida pelo gabinete de controlo da CJD de que era provável que a BSE estivesse na origem de uma nova variante da doença de Creutzfeld- Jakobs que começara a ser detectada, surgiram as primeiras proibições de comercialização, destinadas a evitar o contágio.

Algumas das alterações, a nível legislativo, introduzidas na sequência do surto epidémico, vieram configurar uma nova abordagem na gestão de riscos102. Mas o que me interessa agora é analisar o exemplo do

100 “BSE developed into an epidemic as a consequence of an intensive farming practice - the recycling

of animal protein in ruminant feed. This practice, unchallenged over decades, proved a recipe for disaster.” – Relatório do BSE Inquiry, Key Conclusions, disponível em http://www.bseinquiry.gov.uk/report/index.htm.

101 V. o Relatório Tyrrell de 1990.

63 ponto de vista do princípio da precaução. Face à cronologia enunciada, quando teria sido o momento certo para actuar? Ou deve concluir-se que todos os procedimentos – e respectivo timing – foram correctos, apresentando-se o contágio de seres humanos como uma inevitabilidade103?

Este episódio apresenta-se como exemplar das situações de risco que requerem novas abordagens do Direito, reunindo várias características paradigmáticas: a) imprevisibilidade do problema; b) ignorância sobre as causas, quando o fenómeno começou a manifestar-se; c) ignorância sobre os (exactos) efeitos.

Muitos são os ensinamentos a retirar da epidemia de encefalopatia espongiforme e da forma como os poderes públicos encararam o problema. As perguntas acima enunciadas não são de fácil resposta. Mesmo dentro de uma perspectiva que tenta ser o mais objectiva e racional possível, como ponderar os riscos se não são conhecidos os valores das variáveis essenciais ao cálculo? Mesmo o princípio da precaução, que se move no plano da incerteza, requer alguns elementos de análise que permitam definir o momento certo para actuar. Enquanto o valor [quantitativo] de todos os factores em jogo for desconhecido – e nomeadamente o que diz respeito às consequências possíveis - e as relações causais não passarem de meras hipóteses sem confirmação, como contabilizar?