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Negligência, dever de cuidado e lotarias

UTILIDADE (SUBJECTIVA) ESPERADA

5.3 Negligência, dever de cuidado e lotarias

É certo que, durante um certo período, a quantificação da utilidade parecia, cada vez mais, ser incompatível com a expressão numérica. Mas as tentativas de resposta a esse desafio foram-se sucedendo e acabaram por alcançar resultados positivos.

Ao indexarem Pi a Ui,, von Neumann e Morgenstern trouxeram de

novo a possibilidade de adicionar utilidades. Estes autores configuraram a medição das preferências como uma lotaria, em que se pretende encontrar o

quantum de risco que uma pessoa está disposta a aceitar para obter um

determinado resultado. Há quem objecte que a teoria de Neumann/Morgenstern inverte os dados da questão, uma vez que se mede a preferência da pessoa pela lotaria e não pela utilidade do resultado, sendo esta inferida a posteriori a partir da aposta escolhida. Esta crítica não parece justa, uma vez que assenta numa ilusão: pois o que está subjacente à preferência pela lotaria é a preferência pela utilidade do outcome vezes a probabilidade de o obter. Por isso, precisamente, é que é possível, a partir da preferência pela lotaria, fazer o percurso inverso e chegar à utilidade do outcome.

Note-se a coincidência entre o método defendido por estes dois autores e o método de aferição do dever de cuidado aqui preconizado: a

156 acção do agente, numa situação de risco, traduz a sua aposta e, a partir dela, podemos avaliar da conformação com as valorações impostas pelo direito.

O sistema de apostas de Neumann/Morgenstern pode ser aplicado a qualquer bem – independentemente de ter ou não valor de mercado. Tem ainda a vantagem de medir não só as preferências, mas também o grau em que as alternativas são preferidas, permitindo assim comparações mais exactas.

Verifica-se, também, uma clara aproximação ao modo de calcular probabilidades subjectivas, de que falaremos no capítulo 6: em ambos os casos, encontra-se o valor de uma realidade através do quantitativo que o sujeito está disposto a apostar. Tanto em um como no outro caso, acabamos a trabalhar com valores (objectivos) construídos a partir das convicções subjectivas. Não há aqui qualquer contradição, na medida em que a objectividade é apenas operacional. Consegue-se, deste modo, construir um modelo que respeita integralmente a subjectividade, sem, no entanto, ficar dela refém.

Transposta para o problema do dever de cuidado, esta perspectiva significa que a construção do direito pode integrar a vertente subjectiva sem deixar de impor parâmetros normativos.

A graduação das alternativas de acordo com o preço de cada lotaria - calculado este de acordo com uma lógica de maximização de utilidade – parece especialmente vocacionada para aferir da (potencial) negligência, uma vez que, nesta, está sempre em causa uma decisão tomada em situação de incerteza, ou seja, uma aposta que comporta riscos272.

Seja qual for o processo utilizado para calcular e expressar utilidades, são inevitáveis certas disparidades entre indivíduos – obrigando a trabalhar

272 Note-se que a teoria da utilidade não impõe preferências, fornecendo apenas regras sobre as relações entre preferências.

157 com margens de variação alargadas se quisermos tirar conclusões aplicáveis em geral. Em parte, como vimos, estas disparidades serão determinadas pelas diferenças de utilidade marginal, que introduz alterações na utilidade que cada unidade acrescentada (ou retirada) tem para o indivíduo. Mas não só: a estimativa subjectiva é também alterada porque o ponto a partir do qual se gradua a utilidade não é sempre o mesmo. Este aspecto, que passou despercebido durante muito tempo, esteve na origem de graves dificuldades sentidas pelos teóricos da decisão, uma vez que as opções dos indivíduos pareciam não obedecer a padrões de racionalidade.

Kahneman e Tversky tentaram encontrar explicação para os múltiplos desvios à “racionalidade” do processo decisório. Quando surgiu, em 1979, a Prospect Theory apresentava-se como uma tentativa de superar as deficiências apresentadas empiricamente pela teoria da utilidade esperada desenvolvida por Neuman/Morgenstern273.

Relativamente à teoria da utilidade, a inovação da Prospect Theory consiste em não ser linear, incluindo no cômputo os enviesamentos (biases) susceptíveis de alterar a decisão que resultaria da aplicação de um modelo simples de utilidade subjectiva.

Mas a principal alteração introduzida pela Prospect Theory, e que veio revolucionar a teoria da decisão, consiste na ideia de que os valores são calculados a partir do ponto de referência estabelecido de acordo com um

framing a que o indivíduo procede.

Podemos considerar dois aspectos fundamentais no chamado framing

effect:

a) o ponto de referência é geralmente situado no status quo e é a ele que as pessoas se reportam para fazer opções, e não ao outcome respectivo;

273 O texto “Prospect Theory: An Analysis of Decision under Risk” foi publicado pela primeira vez em 1979, na revista Econometrica XLVII p. 263-291.

158 b) as pessoas têm atitudes diferentes quanto aos ganhos e as perdas - não é igual perder 100 ou deixar de ganhar 100 – precisamente porque estão a reportar-se ao ponto de referência: quando não ganham, ficam como estavam, quando perdem descem relativamente ao ponto de referência.

Os valores atribuídos são utilidades subjectivas, não têm a ver com valores monetários nem sequer com valores objectivamente mensuráveis, mas com uma ordenação subjectiva, estabelecida pelo indivíduo.

Na verdade, segundo a Prospect Theory, o indivíduo não estabelece valorações (para efeitos de escolha) entre x e y, sendo x o primeiro valor da escala utilizada e y o último. Estes valores podem ser utilizados para cálculos de utilidade em abstracto; mas, em cada situação de incerteza com que se vê confrontado, o indivíduo mede as utilidades a partir de um ponto de

referência que é pessoal. Cada unidade que ganha a partir desse ponto não

representa o mesmo que cada unidade (de igual dimensão) que perde. Isto explica as (aparentes) disparidades de indivíduo para indivíduo e, mesmo relativamente ao mesmo indivíduo, as (também aparentes) incoerências. Permite também compreender grande parte dos fenómenos de aversão ao risco.

O método e os padrões utilizados são sempre os mesmos e, repita-se, as incoerências, bem como as disparidades, são meramente aparentes. Tudo depende do ponto que serve de referência para as operações.

Repare-se na função de valores construída por Kahneman e Tversky274:

159 Da curva em S conclui-se que o efeito de qualquer alteração marginal diminui com a distância do ponto de referência, em ambas as direcções275.

A “revolução” introduzida por Kahneman e Tversky consistiu em alterar o modo como são atribuídos os valores (introduzindo o reference point como valor de partida). Isto basta para deslocar a teoria da utilidade para um outro plano (é como transformar um modelo em duas dimensões num modelo a três dimensões).

Em vez de se considerar o valor dos “objectos” finais, os valores são atribuídos em função de ganhos ou perdas relativamente a um ponto de referência. Este ponto é fixado pelo indivíduo; no entanto, é óbvio que está sujeito a manipulações externas que poderão influenciar as escolhas consequentes. Este é um perigo real, mas ter dele consciência pode ajudar à compreensão de determinados fenómenos e distorções, e constitui a melhor forma de desenvolver estratégias protectoras276.

Vejamos, ainda, uma outra alteração de perspectiva produzida por estas inovações.

275 TVERSKY/KAHNEMAN (1988) p. 173. 276 Sobre este ponto, cf. BARON (2000) p. 258.

160 A teoria da utilidade esperada assume um carácter normativo (pois que visa estabelecer, objectivamente, a melhor escolha) enquanto a Prospect

Theory tem carácter descritivo, ao reproduzir o modo como o indivíduo

enquadra (framing) o problema no contexto, e a partir daí (desse “ponto de vista”) ele vai escolher a sua melhor aposta. A fase do enquadramento é, deste modo, determinante.

Tversky e Kahneman dividem o processo de decisão em duas fases277. Na primeira, o indivíduo procede à análise preliminar do problema; o framing é condicionado pela forma como o problema é apresentado e também pelas normas, hábitos e expectativas do decisor. Na segunda, que se desenvolve dentro do quadro construído pela primeira, procede-se à avaliação e selecção da aposta mais valiosa, sendo que esta escolha pode ser efectuada de duas formas: identificando a aposta dominante ou comparando os valores entre si.

Para a aplicação deste processo (ao problema de que aqui nos ocupamos, bem como a qualquer outro) é indiferente qual o ponto que se considera como de utilidade zero, pois que ele serve apenas de referência. Do mesmo modo, não é também relevante se contamos as utilidades como valores positivos ou negativos (custos ou benefícios, pois sempre os custos poderão ser vistos como benefícios não obtidos e os benefícios como custos não suportados). A decisão depende das diferenças entre utilidades – e estas não têm um valor absoluto, mas apenas relativo, dentro da escala. O que importa é manter o ponto de referência e a coerência entre os valores atribuídos278.

277 TVERSKY/KAHNEMAN (1988) p. 172.

278 Voltaremos a esta questão, pois ela não afecta apenas o cálculo da utilidade esperada, mas também os restantes elementos de todo o processo decisório.

161 A teoria da decisão não distingue quanto aos conteúdos, e isto é precisamente o que permite utilizá-la para aferir da conformidade das valorações dos agentes com as exigidas pelo direito.

De acordo com as regras da teoria da decisão, é sempre possível encontrar a racionalidade subjacente às opções (ou seja, compreender por que é racional para o obeso continuar a comer exageradamente, por exemplo). De um ponto de vista valorativo, não seria possível estabelecer essa racionalidade e seríamos levados a pensar que o agente não se conduzia racionalmente. Mas, porque não estamos a trabalhar com custos e benefícios, nem utilidades consideradas do exterior segundo um padrão pré- estabelecido (o que poderia considerar-se, de alguma forma, uma contradictio

in terminis), é possível encontrar a matriz que configura racionalmente a

opção. Não é nunca a decisão que é irracional, mas os valores atribuídos que podem ser disfuncionais face à matriz erigida como padrão.

É a cisão entre a teoria da decisão como processo e o conteúdo substancial da opção que permite encontrar um modelo objectivo do dever de cuidado.

Como disse já, enquanto a teoria da utilidade é normativa, a prospect

theory é descritiva. Na fixação dos valores inscritos na matriz, o Estado guia-

se pela primeira, enquanto a segunda explica como decidem os agentes. Como estabelecer a ponte entre ambas? Até onde deve o Estado permitir desvios relativamente aos ditames da teoria da utilidade, cuja normatividade deve prevalecer? O equilíbrio conseguido nesta matéria, não sendo fácil, é, no entanto, crucial. Trata-se de encontrar o ponto onde os comandos são eficientes (na protecção do núcleo essencial de interesses sociais) sem deixarem de ser acessíveis aos destinatários – o que não só determinaria a sua ineficiência como violaria o princípio da culpa.

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A ACÇÃO COMO OPÇÃO