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O mundo visto através da incerteza

A ACÇÃO COMO OPÇÃO O mito da negligência inconsciente

7.2 O mundo visto através da incerteza

A abordagem do mundo em termos de probabilidades, em lugar da velha dicotomia entre “verdadeiro ou falso”, introduz um novo paradigma, no sentido que Thomas Kuhn atribui a este termo? Hacking recusa que a emergência da probabilidade no pensamento científico, impregnando todas as áreas347, constitua uma verdadeira revolução no sentido cunhado por Kuhn. Se aplicarmos rigorosamente os critérios enunciados por Kuhn348, teremos de concluir que o cálculo probabilístico não constituiu um novo paradigma. Mas também não é apenas um instrumento novo, cuja utilização se estendeu a todas as ciências por se adequar a novos problemas. Pois que a probabilidade se impôs também como uma forma de olhar o mundo, levando a ver o que não era perceptível antes mas sempre estivera presente. E, neste sentido, pode dizer-se que desencadeou uma revolução349.

Vimos que o conceito de probabilidade, central na solução que propugno para a delimitação do dever de cuidado, e hoje em dia presente em todas as áreas de saber, é relativamente recente no pensamento científico ocidental.

Tal facto terá de ser explicado com base em características da cultura europeia profundamente enraizadas, seja na nossa história seja nas bases do nosso pensamento científico e filosófico350.

347 Inclusive no direito, como vimos, através de um crescente papel atribuído ao risco. Cabe aqui uma referência à obra de Nicolau Bernoulli De usu artis conjectandi in jure, publicada em 1709, na qual este aplica os raciocínios do seu tio Jacob às questões jurídicas. Nicolau Bernoulli recorre ao trabalho de Jacob Bernoulli, a partir dos seus textos Meditationes e Ars

Conjectandi, para aplicar o método estocástico aos problemas do direito.

348 Paradigma – anomalia (emergência de descobertas científicas incomportáveis pelo paradigma) – crise – resposta à crise – novo paradigma.

349 Sobre a relação entre novas formas de olhar a realidade e o conceito de revolução, v. KUHN (1962) p. 111 e ss.

350 Só a partir do século XVII a distinção aristotélica entre o certo (demonstrável) e o provável foi posta seriamente em causa, com o emergir da consciência de que vivemos num mundo

198 Ian Hacking defende que foi fundamental um novo olhar sobre os

sinais (a redução das provas a sinais) e a afirmação da indução como método

de conhecimento351.

Hume, como se sabe, é considerado o grande teorizador do método indutivo. Mas já antes dele as probabilidades subjectivas (que assentam no método indutivo) tinham sido consideradas por Jacob Bernoulli (1654- 1705)352 e tinham encontrado as ferramentas adequadas pela mão de Thomas Bayes353.

Importa seguir o percurso feito pelas duas perspectivas que terão estado, segundo alguns, na origem das principais escolas – frequencista e bayesiana – de estudo das probabilidades354.

apenas – todo ele – de probabilidades. A esta revolução do pensamento não terão sido alheios os avanços da ciência e a insegurança da religião causada pela Reforma.

351 HACKING (1975) p. 20 e ss.

352 A sua obra Ars Conjectandi , embora traga contributos valiosos para a construção das probabilidades frequencistas (e não pode esquecer-se que Bernoulli é o autor da lei dos grandes números), mostra, em vários passos, que Bernoulli não era alheio à construção de probabilidades através de métodos indutivos, nem à potencialidade reveladora de sinais e ao uso que dela é feito pelo cidadão comum.

353 O teorema de Bayes, encontrado entre os seus papéis após a sua morte, foi dado a conhecer em 1763 e constitui uma solução matemática para os problemas de escolha face a probabilidades condicionais.

354 Para os (juristas) menos à vontade com estes conceitos, dir-se-á, muito sucintamente, que probabilidades frequencistas são aquelas que operam a partir de uma amostra de um número elevado de situações em que se verifica determinado evento. Ou seja, partem da ideia de que, embora não se possa determinar com certeza se um acontecimento, em concreto, vai ou não verificar-se, pode-se saber, utilizando uma larga amostra, quantas vezes (com que frequência) ele se verificará. Quanto às probabilidades bayesianas, ao invés de considerarem a probabilidade como um dado objectivo da realidade, abordam-na do ponto de vista da convicção que o indivíduo tem na ocorrência de um evento, ou seja, trata-se de uma qualidade que o sujeito atribui ao objecto (não significa que não haja motivos subjacentes a essa convicção). Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, estas duas concepções não são incompatíveis. Nem os bayesianos negam que seja possível calcular as frequências relativas de um determinado evento aleatório, nem os frequencistas negam o facto evidente de que os indivíduos têm convicções sobre a probabilidade de verificação de um dado evento. O que se desloca, entre uma concepção e outra, é o ângulo de abordagem (da incerteza). Devemos ter presente que, como dizia Stuart Mill, “the probability of an event is not a quality of the event itself”. Mesmo nos casos mais evidentes utilizados como referência pelos frequencistas, também o que cada um de nós sustenta é uma convicção. Quando, por exemplo, verificamos empiricamente que ao longo de um mês em que diariamente apanhamos o mesmo comboio, este se atrasou 15 vezes, afirmaremos que o

199 Diga-se, desde já, que não se vai aqui tomar partido na querela sobre se as duas escolas estarão hoje em dia, de algum modo, unificadas, como pretende alguma doutrina, ou se continuam a constituir perspectivas diferentes sobre o que encerra o conceito de probabilidade. Não existindo um conceito que poderíamos apelidar de “ontológico” de probabilidade, quer as probabilidades frequencistas, quer as bayesianas têm um lugar próprio na medida em que permitam retirar conclusões que funcionem. Ademais, parece-me que haverá áreas de conhecimento e problemas especialmente vocacionados para serem abordados de um ponto de vista frequencista, e outros para os quais os bayesianos encontrarão melhor resposta355.