• Nenhum resultado encontrado

Sociedade de risco: uma nova realidade?

O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO

2.2 Sociedade de risco: uma nova realidade?

Beck identifica a sociedade de risco como uma fase de desenvolvimento da sociedade em que a produção dos riscos políticos, ecológicos e individuais escapa, cada vez mais, às instituições de controlo e protecção próprias da sociedade industrial70. Esta concepção é o ponto de partida para uma reflexão sobre a modernidade, que Beck situa em três planos: 1. a relação da sociedade moderna com os recursos da natureza e a cultura; 2. a relação da sociedade moderna com o perigo e as repercussões deste nos vários universos simbólicos; 3. o processo de individualização decorrente da deterioração das representações colectivas e instituições de suporte. Segundo Beck, o indivíduo está hoje mergulhado no seio do risco (com alcance pessoal e global), o qual condiciona totalmente o seu modus

vivendi71.

Na classificação de Prittwitz, a abordagem de Beck corresponde ao modelo I da sociedade do risco, havendo que, a este, acrescentar os modelos II (a partir da concepção de Nowotny/Evers, que vêem a sociedade de risco como uma sociedade de riscos controláveis) e III (na sociedade de risco, paradoxalmente, as pessoas, apesar de viverem mais seguras, sentem-se mais inseguras, por o risco ser uma construção subjectiva)72.

70 BECK (1996 [1993]) p. 201. A relação entre natureza e sociedade era enfatizada por Beck, já em 1986, como sendo o cerne da alteração de paradigma na sociedade de risco; o autor afirma, a propósito, que “na sociedade de risco surgem desafios completamente novos à democracia” - BECK (1998 [1986]) p. 88-89. Também Giddens enfatiza a alteração nas relações entre o indivíduo e a natureza na sociedade moderna e o aparecimento de uma nova categoria de riscos – GIDDENS (1991) p. 2 ss.

71 A propósito das classificações de Beck, com especial incidência no impacto cultural provocado pela percepção dos riscos e nos processos de “mediação” social, cf. ADAM/LOON ((2000) p. 13 ss. Alan Irwin e Stuart Allan analisam algumas dessas estratégias de mediação a partir da percepção do risco nuclear e do discurso (político e do público em geral, nem sempre coincidentes) sobre o mesmo – IRWIN/ALLAN/WELSH (2000) p. 81 ss.

51 Sem embargo de reconhecer os fenómenos na base dos três modelos, parto aqui da formulação de Beck por ser seminal do conceito e, de algum modo, conter no essencial as bases operativas do mesmo, a partir das quais toda a problemática foi desenvolvida. Não concordo, portanto, com Paulo Sousa Mendes quando este afirma que o modelo I é dispensável (precisamente porque não operativo)73. Este autor preconiza a conjugação do modelo II com o modelo III, no quadro de uma ambivalência do risco: a vertente temerária (centrada na avaliação do risco) e a vertente alarmista (centrada na percepção do risco). É certo que os dois modelos não são alternativos - podendo mesmo, em certa medida, ser complementares (aliás, nem Prittwitz os concebeu como alternativos e mutuamente excludentes74). Constata-se, no entanto, que algumas das contraposições entre ambos, referidas por Paulo Sousa Mendes, resultam de uma certa confusão terminológica que leva a comparar realidades situadas em planos distintos. Para citar apenas um exemplo: a dado passo, são utilizados indiferenciadamente os termos risco e probabilidade (de rebentamento de uma barragem)75; igualmente, em muitos casos em que se refere a percepção do risco, o que está em causa é, mais exactamente, uma percepção de perigo. Esta falta de rigor – que se verifica tanto na linguagem corrente como em textos científicos das mais diversas áreas - só contribui para a dificuldade em identificar claramente as questões mais prementes e evidencia a necessidade de uma clarificação de conceitos.

73 MENDES (2000) p. 64. Numa posição oposta, de que me sinto próxima, Augusto Silva Dias considera redutor confinar Beck ao modelo I, pois Beck não deixou de fazer referência às conexões do risco com as representações do mesmo – S. DIAS (2008) p. 233. Beck, aliás, defendeu a superação do (aparente) contraste entre as conclusões “racionais” dos especialistas e a “irracionalidade” da população através da integração de novas variáveis no modelo decisório.

74 Cf. PRITTWITZ (1993) p. 77. 75 MENDES (2000) p. 67.

52 Analisando as relações entre as decisões políticas e legislativas baseadas no parecer dos especialistas e o seu efeito a nível de opinião pública (ou seja, aquilo que podemos designar, na terminologia de Prittwitz, como modelos II e III) Stephen Breyer conclui que geralmente elas dão origem a um círculo vicioso.

Na prática, seria precisamente o modus operandi baseado no modelo II que estaria na origem do paradoxo a que se refere Prittwitz. Uma vez que a avaliação dos riscos por parte dos cidadãos difere consideravelmente das posições dos peritos76, aqueles tenderão a perder a confiança e sentir-se crescentemente ameaçados, a não ser que se aprenda a gerir a relação entre ambos (o “breaking the vicious circle” a que se refere Breyer77).

A partir da ideia de sociedade de risco – embora em acepções nem sempre coincidentes, como se vê - são inúmeras as análises e construções nas mais variadas áreas de conhecimento. No âmbito deste trabalho, contudo, interessam-nos apenas as necessidades e desafios colocados no universo

simbólico do direito e, mais em particular, do direito penal.

João Loureiro sistematiza do seguinte modo os principais pontos a ter em consideração como “dimensões jurídicas da sociedade de risco”78: a) a emergência ou autonomização de novos bens jurídicos; b) o facto de, a nível dos destinatários, “as tradicionais relações jurídicas bipolares se mostrarem pouco adequadas para captarem toda a malha de relações e interesses em jogo”; c) os efeitos dos riscos tecnológicos a longo prazo convocarem como parte interessada as gerações futuras; d) o desenvolvimento de riscos fora do espaço estadual e relevância de novos espaços supra-estaduais; e) a prevenção como tarefa do Estado; f) a emergência do princípio da precaução;

76 Sobre a forma como o cidadão comum apercebe e avalia os riscos, cf. SLOVIC/FISCHOFF/LICHTENSTEIN (1982) p. 463 ss.

77 BREYER (1993) p. 33 e passim. 78 LOUREIRO (2001) p. 877-880.

53

g) a revalorização dos procedimentos, nomeadamente administrativos; h) a

importância da informalização e revalorização dos actos provisórios e precários; i) pluralização das estruturas.

Destas características, penso ser de destacar as três primeiras, pela amplitude das consequências que implicam, a ponto de se falar hoje em crise do direito e, no plano do direito penal, haver mesmo quem preconize o surgimento de um direito penal do risco79.

Augusto Silva Dias, a propósito do que apelida de “diagnóstico doutrinal” do direito penal em crise na sociedade moderna, destaca os seguintes pontos80:

1. a expansão do direito penal, v.g. na regulação de certas actividades económicas, e com recurso crescente a técnicas como conceitos indeterminados e leis penais em branco; esta expansão é acompanhada por uma administrativização do direito penal;

2. as incriminações deixam de ter como ponto de referência imediato “bens jurídicos tangíveis, concretos e ligados à liberdade e aos direitos individuais”, levando mesmo a questionar o conceito de bem jurídico como critério legitimador;

3. o centro do direito penal desloca-se da lesão para o perigo abstracto ou presumido, tendo como objectivo actuar antecipadamente, por

79 Paredes Castañon refere, além das alterações a nível da dogmática e instrumentos do direito penal, “as tensões próprias dos processos de decisão colectiva, que cada vez mais interferem com o direito penal e a utilização crescentemente simbólica dos meios coercivos – PAREDES CASTAÑON (1999) p. 914. Sobre a problemática dos fins das penas na sociedade de risco – discordando de que se possa falar de uma “teoria da pena exclusivamente relacionada com a sociedade de risco”, cf. PEREZ DEL VALLE (1996) p. 66. O mesmo autor analisa a questão da causalidade na sociedade de riscos, que considera oferecer especiais dificuldades, nomeadamente quando as opiniões dos peritos não são conclusivas – PEREZ DEL VALLE (1996) p. 67 e (1999) p. 979 e passim. Incidindo sobre um aspecto diferente da problemática da causalidade – o da remoteness ou, melhor dizendo, da esfera de concretização do risco, cf. STAUCH (2001) p. 191 ss.

54 forma a prevenir a produção do dano; nesta medida, ganha importância o desvalor da acção em detrimento do desvalor do resultado;

4. várias categorias dogmáticas são forçadas à flexibilização, como, por exemplo, a imputação objectiva (na sua relação com o nexo de causalidade), a posição de garante, a delimitação entre autoria e participação ou o critério de distinção entre negligência e dolo eventual;

5. a censura da culpa “deixa de se aferir pela atribuição ao agente de um demérito pessoal pela prática do facto ilícito e passa a orientar-se pelas necessidades de reposição simbólica da vigência das expectativas sociais lesadas”.

De todos os traços distintivos que podem ser enunciados, com diversas formulações e ênfase variável, penso que os mais marcantes serão:

a) o facto de, além das inevitáveis catástrofes naturais, nos defrontarmos actualmente com perigos em grande escala criados artificialmente, através da actividade humana81; sendo estes resultado de uma opção, estão sujeitos à ponderação de custos e benefícios, ou seja, a uma ponderação em termos de risco;

b) muitos dos riscos assim criados reportam-se a consequências imprevisíveis – pelo menos com exactidão – quer em termos de espaço (o

onde) quer em termos de tempo (o quando), e mesmo em termos de se saber o se e o como; quanto aos destinatários, estes serão, por inerência,

indetermináveis (interesses difusos).

Este contexto, como seria de esperar, determina algumas consequências notáveis a nível de direito penal. Referir-me-ei apenas a três aspectos, que têm repercussões directas sobre o tema deste trabalho.

81 Woollacoot destaca justamente que à medida que somos responsáveis por um número cada vez maior de perigos, aumenta também a nossa expectativa de controlo sobre eles – WOOLLACOOT (1998) p. 48.

55

2.3 Distribuição de vantagens e de custos – quem suporta os