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Toda a acção é uma escolha?

A ACÇÃO COMO OPÇÃO O mito da negligência inconsciente

6.1 Toda a acção é uma escolha?

A preocupação em delimitar um conceito de acção no âmbito do direito penal está associada a uma preocupação com a acção causal, ou seja, com uma perspectiva naturalista (e causalista) de causa-efeito. Na realidade, do que se devia cuidar era de opção e não de acção – o que, estando já subjacente nos conceitos de ilícito pessoal e de desvalor de acção, não foi, no entanto, levado às últimas consequências. A acção como momento central do direito penal define-se na realidade como a opção (aqui contidas a liberdade e a decisão pessoal) que consubstancia um desvalor penalmente relevante – integrando indissociavelmente o tipo penal.

Ninguém esteve tão perto desta verdade como os finalistas; mas a tónica colocada na finalidade obscureceu o cerne da questão. É por isso que não logram compatibilizar a sua teoria com a negligência, e apenas muito parcialmente com a omissão. Por isso, também, facilmente resvalam para um

163 direito penal das intenções, cujos perigos são sobejamente conhecidos. Se, pelo contrário, tivermos em consideração que o importante não é, ao escolher determinado caminho, o ponto de chegada que se pretende alcançar mas o acto da escolha e o conteúdo material desta, o direito penal fica ancorado à projecção objectiva do indivíduo.

Para a construção da negligência que pretendo efectuar, o importante não é a acção causalista nem a acção como expressão valorativa de um indivíduo; o importante é a acção como resultado de uma escolha, ou seja, como produto de um processo lógico. Ao entendê-la nesta perspectiva, o que me interessa são as consequências para a estrutura do ilícito (e não, como para a maioria dos finalistas, para a construção de um ilícito pessoal). São as repercussões a nível de ilícito objectivo que relevam para a identificação e delimitação do dever de cuidado, sem cuidar das (possíveis) implicações a nível do ilícito pessoal.

A acção traduz um modus operandi que é prenhe de implicações, independentemente de qualquer juízo valorativo. Neste sentido, partilho, com a escola de Welzel, a pretensão de identificar uma estrutura ontológica de acção, mas não sobre a base da acção finalmente determinada, antes da acção como decisão perante alternativas. Pode-se afirmar que, enquanto a maioria dos finalistas coloca a tónica no porquê da “escolha” que a acção traduz, o que me interessa é o como do processo de escolha que culmina na acção. Analisar os “porquês” nesta fase é ceder (mais uma vez) à promiscuidade entre tipicidade e culpa, que tem sido uma constante no direito penal e contribui para a dificuldade em delimitar os exactos contornos do conceito de negligência. A acção é aqui final (na acepção voluntarista defendida pelo finalismo) não porque vise um fim (proibido) mas porque resulta de uma ponderação de custos e benefícios dos vários fins possíveis.

164 Esta minha posição não significa que partilhe com o finalismo a defesa do carácter ontológico da acção final como inerente à acção humana. Entendo que a “acção final” corresponde a uma abordagem entre muitas possíveis da acção humana, na qual se destaca o elemento relevante para o direito penal. Ou seja, o direito penal define o seu objecto seleccionando, de entre vários, aquele a que atribui relevância. O objecto seleccionado podia ser diferente – e, nesse caso, corresponder-lhe-ia outro direito penal.

Para Stratenwerth, o verdadeiro cerne da teoria da acção final seria a restrição do âmbito do direito penal àqueles processos sobre os quais tenha existido pelo menos a possibilidade de interferência por meio de uma acção final, afastando-se, deste modo, a multiplicidade de eventos não domináveis279.

Esta afirmação traz à luz a componente da vontade humana na construção do ilícito – ou seja, como categoria simultaneamente delimitadora e definitória, prévia ao juízo de culpa.

A abstracção das manifestações externas da acção, em benefício daquilo que podemos designar por estrutura objectiva interna da mesma, permite alcançar a há muito almejada libertação do paradigma causalista.

No que respeita à negligência, o dever de cuidado torna-se, nestes termos, uma instrução sobre o como e não um quid, não um referente fixo mas uma tensão em contexto. Deixa de constituir problema se o indivíduo “agiu descuidadamente” ou se não praticou os actos necessários para garantir o nível de segurança por que era responsável280. Em qualquer caso, o relevante é ter-se comportado de um modo considerado inadmissível pelo

279 STRATENWERTH (2005) p. 201.

280 Não estaremos aqui longe da formulação de Jescheck, segundo a qual a conduta humana é “resposta humana a uma exigência situacional conhecida ou, pelo menos, cognoscível, mediante a realização de uma possibilidade de reacção que está à sua disposição” – JESCHECK (1988) p. 201. E, mais adiante, o autor conclui que, se a conduta humana se traduz numa relação com o mundo circundante, é possível englobar (no conceito social de acção) tanto as acções dolosas como as negligentes.

165 direito – inadmissível porque se situa para lá do limite de risco considerado exigível.

A ideia de acção, nesta perspectiva, corresponde basicamente ao conceito de conduta, o que, do mesmo passo, elimina a querela sobre a distinção entre acção e omissão. Como observa Jakobs, não interessa questionar se o indivíduo passou o semáforo vermelho (acção) ou se não parou no semáforo vermelho (omissão), pois que – acrescentaria eu – se trata afinal da mesma conduta, na qual radica o risco (proibido) concretizado no resultado281.

Dito de outro modo: a acção desvaliosa consiste em um comportamento humano voluntário criador de um grau de risco inadmissível. É neste sentido – e apenas neste sentido – que importa falar do conceito de acção, ou seja, num sentido totalmente normativizado, no qual os factores naturalistas são apenas acessórios ou, quando muito, componentes não determinantes.

Chegados a este ponto, estamos já a aglutinar a teoria social da acção com a teoria da acção final – o que não devia repugnar ao finalismo, atenta a sua concepção ontológica de acção282.

Configurando a acção como opção, nos termos acima expostos, é inevitável enfrentar o problema suscitado pela negligência inconsciente, pois que, nesta, dificilmente se pode sustentar ter havido uma opção. Se o indivíduo desconhecia parte dos dados do problema, como defender que, ainda assim, decidiu pela acção arriscada e deve ser por isso responsável?

Sobre esta questão, as opiniões dividem-se drasticamente.

281 Sobre esta questão, com vários exemplos retirados da jurisprudência, v. GIMBERNAT ORDEIG (1994) p. 14-15.

282 Welzel defende expressamente que um dos propósitos do finalismo foi desde o início “a compreensão da acção como um fenómeno social” – WELZEL (1951) p. 53. Na sua crítica ao conceito de acção, Marinucci aproxima frequentemente a teoria finalista e a teoria social, por considerar que ambas partilham da mesma aspiração a delinear um conceito pré-jurídico e, nessa medida, se expõem às mesmas objecções – MARINUCCI (1998) p. 63 ss.

166 Para Köhler, a negligência inconsciente não pode ser um facto punível (criminalmente) porque não contém uma decisão voluntária283. Concorda, assim, com a posição de Arthur Kaufmann, segundo o qual a punição da negligência inconsciente atenta contra o princípio da culpa. Com efeito, Arthur Kaufmann defende que a negligência inconsciente não pode ser incluída nas condutas culposas, pois nela está ausente a vontade do indivíduo284. Já Roxin entende que é sempre possível manter sob controlo os perigos inerentes à vida em sociedade, e portanto também a negligência inconsciente está dentro do âmbito do direito penal e da punibilidade, mas não apresenta a fundamentação para a afirmação inicial285.

Deverá ser afastada a punibilidade da negligência inconsciente, por respeito ao princípio da culpa, como pretende uma parte dos autores? Há resposta para as críticas avançadas por estes?

Ou estará a questão simplesmente mal colocada?

A distinção entre negligência consciente e inconsciente não tem, como se sabe, qualquer relevância a nível do tipo penal286.

Não a tem, em primeira análise, porque seria impossível (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) um observador externo concluir a

posteriori se houve ou não um momento de hesitação antes de agir, mesmo

que apenas breves segundos em que o indivíduo considerou o risco inerente à sua acção e resolveu agir287.

283 KÖHLER (2000) p. 83. 284 KAUFMANN (1961) p. 156. 285 ROXIN (1994) p. 1020.

286 Como afirma Mir Puig, esta distinção não tem hoje a importância que lhe foi atribuída durante o “império da teoria psicológica da culpa”, só sendo convocada na distinção entre negligência consciente e dolo eventual – MIR PUIG (2002) p. 281. Paula Ribeiro Faria defende mesmo que não é possível estabelecer uma distinção material por se tratar apenas “de uma distinção conceitual” – FARIA (2008) p. 725.

287 Como muito justamente refere Mir Puig “ex post a única coisa que se consegue realmente provar é que o indivíduo não acautelou o perigo” – MIR PUIG (1983) p. 14.

167 Mas não tem relevância por outro motivo: é que pouco importa - para preenchimento do tipo penal, repete-se - se essa consideração

consciente cruzou os pensamentos do agente. O que releva é que este

infringiu os limites do cuidado exigido e o fez consciente dos factores

determinantes para o risco. É por isso que, se o agente interpretou mal os

factos externos relevantes, ou ignorava algum deles, estamos perante um erro sobre elementos do facto típico.

Qualquer magistrado do Ministério Público, ao analisar um caso que configura uma possível negligência, tratará de saber se o hipotético autor conhecia a situação em que agiu – os factores de risco. Mas se os factores desse risco – que assumiu ao agir – foram ou não ponderados conscientemente, é algo que não faz parte das averiguações essenciais à conclusão do inquérito288: não é, geralmente, sindicável, mas também não é importante que o seja, visto que não afecta a decisão final do magistrado no sentido de acusar ou arquivar. Consubstanciará esta prática uma ofensa aos princípios por que se rege o nosso sistema penal?

O que pretendo demonstrar é que a diferença entre negligência consciente e inconsciente corresponde, mais do que a uma realidade insindicável, a uma autêntica ficção, elaborada a partir de aparências. A ser assim, estão com a razão aqueles que recusam qualquer efeito prático a tal distinção.

A relação entre pensamento reflexivo (uma certa acepção de racionalidade ou, como diz Epstein289, uma forma analítica e verbal de apreensão da realidade) e a apreensão intuitiva, imediata e impregnada de afectividade, não é oposta, nem mesmo paralela, sabe-se hoje. Damásio demonstrou que as emoções não só participam da racionalidade como são

288 Exceptuando-se, como é óbvio, a hipótese de dolo eventual. 289 EPSTEIN (1944) p. 710.

168 indispensáveis à mesma. Ou seja, as duas abordagens do mundo formam um todo incindível, uma amálgama, pelo que a ancestral distinção entre “agir com a cabeça ou segundo o coração” não tem hoje qualquer sentido. Agimos de acordo com opções racionais que resultam da gestão dos dados em jogo e de acordo, também, com as emoções implicadas290. Neste processo, há seguramente uma parcela que permanece velada, inacessível à consciência (pelo menos no comportamento quotidiano) e uma outra – maior ou menor – que pode aflorar ao nível consciente. Qual a fracção presente no consciente e com que intensidade aí surge, é questão que pode ter reflexos na valoração da culpa, se assim se tiver por adequado. O que nos interessa agora é que – seja essa fracção maior, menor ou mesmo nula – o processo decisório deve ser considerado como um todo perfeito, traduzindo a opção e a autonomia do sujeito: ele é aquele que decide, é o gestor e o objecto de gestão.

Entretanto, há que deixar desde já claro que a teoria aqui apresentada não radica em qualquer perspectiva de “automatização” do comportamento que possa remeter para a culpa na formação da personalidade ou, pelo menos, para a concepção de um comportamento social aprendido e interiorizado através do seu exercício repetido. Não que eu rejeite que esse fenómeno possa estar presente nas opções do agente – e com frequência está291. Mas ninguém pode ser responsabilizado por aquilo que é – sob pena de o direito penal se tornar uma ética imposta – tão só por aquilo que faz (projectando o que é)292.

290 Do ponto de vista da adaptação ao ambiente exterior, deve mesmo considerar-se que as emoções desempenham um papel importante, permitindo decisões mais rápidas e filtradas por todo um processo de selecção natural que potencia a sua eficiência – cf. GIGERENZER/SELTEN (2001) p. 9 ss.

291 Alguns autores dirão que é mesmo parte integrante de todas as acções, como veremos adiante.

292 Sobre a problemática da culpa na formação da personalidade, v. por todos, DIAS (1976 [1995]) p. 87 ss.

169 Em suma, não pretendo explicar a punibilidade da negligência inconsciente através de nenhuma das teorias avançadas sobre a matéria – e designadamente a teoria da vontade. Pois qualquer delas incorre, genericamente, na inevitabilidade de um regresso ad infinitum em busca do momento em que se possa fundar o juízo de culpa.

O meu ponto de partida é outro: com base numa realidade utilizada há muito no direito penal e a que os modernos estudos, quer de psicologia quer de neurologia, têm conferido base científica, contesto o próprio conceito de negligência inconsciente como produto de um processo irracional – no sentido de que a conduta do agente, nestes casos, não resultaria de uma ponderação e selecção dos factores relevantes em jogo.

Já em 1964, Platzgummer apelava a um entendimento do conhecimento assente nos contributos da psicologia, contestando que tivéssemos de nos bastar com o conhecimento potencial nos casos em que não há sinais de conhecimento directo, reflexivo dos elementos relevantes para a responsabilidade penal293. Com base na distinção entre o objecto e o conteúdo da consciência e partindo da teoria de que há vários graus de consciência, construía uma terceira categoria, a da co-consciência. A ideia de que a consciência tem uma grandeza variável estava já presente em outros autores (como, por exemplo, Welzel) sem que tenham daí extraído todas as consequências. Platzgummer elabora a partir dessa perspectiva toda uma teoria fértil de repercussões para o direito penal. Assim, refere que o ser humano adulto vê todas as coisas à sua volta imediatamente como coisas com um determinado significado e sentido; esta “impressão”é construída, na maior parte das vezes, automaticamente e no próprio acto da percepção294.

293 PLATZGUMMER (1964) p. 63 ss.

294 O autor dá vários exemplos que ilustram este processo: ao vermos alguém com o respectivo uniforme, sabemos que estamos a lidar com um polícia, mesmo que não

170 Ou seja, vemos e identificamos as coisas que nos rodeiam num processo imediato e não reflexivo. Isto desenrola-se na co-consciência, que passa despercebida porque está sempre presente: como afirma Platzgummer – e a psicologia tem vindo a revelar – o seu âmbito é muito mais vasto do que geralmente se julga. Tudo atravessa a nossa co-consciência e esse conhecimento da realidade não é “não-real” mas sim uma (implícita) vivência consciente.

Aqui chegados, uma outra observação se impõe: se é verdade que grande parte dos comportamentos do indivíduo em sociedade resultam, como inúmeros autores têm vindo a afirmar, de respostas estereotipadas, adquiridas anteriormente e automatizadas (como resposta-padrão à situação

x ou y), não é menos exacto que, por um acto de vontade, o indivíduo pode

bloquear essa resposta automática e substitui-la por uma diferente. A não ser assim, o indivíduo converter-se-ia em mero títere das suas experiências passadas, perdendo a autonomia existencial e, em última análise, deveria ser considerado inimputável.

Se o sujeito pode aplicar ou não a resposta-padrão, de acordo com uma decisão livre, ele é tão responsável quando a substitui por outra como – integralmente – quando recorre a ela. Ainda que os meandros do processo decisório permaneçam fora da consciência reflexiva, correspondem sempre a uma selecção de alternativas e uma opção final que o sujeito tem de assumir

como sua.

reflictamos sobre isso; o agressor sexual de uma criança (sua vizinha) “sabe” que a vítima não tem ainda 14 anos, mesmo que naquele instante não pense na idade dela – ob. cit. p. 88.

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