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O DIREITO PENAL NA SOCIEDADE DE RISCO

2.1 Perigo, risco, incerteza

Frank Knight, na sua obra Risk, Uncertainty, and Profit, refere duas formas de incerteza: aquela que pode ser reduzida a uma probabilidade quantitativamente determinada e aquela que não é susceptível de medição e não pode, portanto, ser eliminada em caso algum62. Segundo Knight, o termo incerteza deve ser reservado a esta última. Esta definição é, ainda hoje, largamente consensual.

Podemos, então, tomar como ponto de partida que, enquanto na incerteza as probabilidades são desconhecidas ou não se enquadram nas leis das probabilidades, no risco há uma probabilidade conhecida ou cognoscível. Mas o conceito de risco é algo de muito mais complexo; não se reduz a um meio caminho entre a incerteza e a certeza.

62 “As we have repeatedly pointed out, an uncertainty which can objective, quantitatively determinate

probability, can by any method be reduced to an objective, quantitatively determinate probability, can be reduced to complete certainty by grouping cases. but the present and more important task is to follow out the consequences of that higher form of uncertainty not susceptible to measurement and hence to elimination” – KNIGHT (1921) Parte III capítulo VII.

46 O risco é uma entidade dinâmica, relacional, que depende do modelo construído pelo sujeito e dos valores atribuídos a cada uma das variáveis que integram esse modelo. Não admira, pois, que o conceito de risco seja muito mais recente do que os conceitos de perigo ou de incerteza: enquanto estes se apresentam ao indivíduo como realidades externas do quotidiano, o conceito de risco tem de ser construído e a sua utilidade está ligada à tomada de decisões (as quais implicam correr riscos para alcançar objectivos). Neste sentido, o conceito de risco está intimamente ligado à ideia de jogo: trata-se de fazer opções quanto ao valor da aposta – dependendo da probabilidade de ganhar a lotaria, do montante do prémio, da disponibilidade do indivíduo para fazer o sacrifício inerente à aposta.

Se (aceitando o critério de Knight) a diferença entre incerteza e risco se pode estabelecer com clareza, já a diferença entre perigo e risco é muito mais problemática, não recolhendo consenso dos autores, que atribuem conteúdo muito diverso aos conceitos em causa63. Acresce a esta dificuldade em defini-lo, o facto de o termo risco assumir diversos significados consoante o âmbito [de estudo] em que é utilizado64

63 Faria Costa, estabelecendo o percurso “da determinação à incerteza, passando pelo risco”, defende que “se age em uma situação de risco quando a cada decisão correspondem também vários resultados mas no que a estes se refere (…) consegue-se estimar a probabilidade da sua ocorrência” – COSTA (1992) p. 593. E densifica o conceito de risco afirmando que este surge quando nos colocamos numa “atitude intelectual que assuma projectivamente os dosi resultados (o positivo e o negativo) possíveis” – ibidem p. 611. Também Paula Ribeiro Faria desenvolve a ideia de que o conceito de risco se distingue do de perigo por conter a possibilidade de um ganho, não tendo portanto uma conotação necessariamente negativa – FARIA (2009) p. 376. Mais adiante, a Autora identifica dois momentos decisivos no juízo sobre o risco: “a probabilidade da sua ocorrência e a gravidade do mal em que ele se pode vir a concretizar”. Pese embora a confusão terminológica (pois, mesmo dentro dos quadros de raciocínio de Paula Ribeiro Faria, o risco a cuja probabilidade de ocorrência se refere não é certamente o mesmo sobre o qual incide o juízo global) é de realçar a identificação dos factores relevantes e a noção dinâmica do conceito tal como é enunciado – cf. FARIA (2009) p. 378 ss.

47 Para Luhman65, a diferença entre perigo e risco depende da posição do sujeito. Quando alguém deve tomar uma decisão, considera as possíveis desvantagens da mesma e respectiva probabilidade, avaliando-as como riscos (que está disposto a correr – ou não – a troco de vantagens). O risco aparece assim ligado à escolha entre duas, ou mais, opções.

Não obstante esta perspectiva, Luhman coloca sérias reservas à capacidade de os indivíduos elaborarem cálculos quantitativos segundo as regras convencionais da racionalidade.

Às reservas expostas por Luhman pode hoje responder-se com as novas formulações da racionalidade do processo decisório, ou seja, uma racionalidade reconstruída integrando inúmeros factores subjectivos66.

Na sua obra Runaway World, Giddens traça um breve quadro do aparecimento do conceito67. Depois de constatar que na Idade Média o conceito de risco era desconhecido, Giddens associa o risco a sociedades “orientadas para o futuro” e conclui que “as culturas tradicionais não dispõem do conceito de risco porque não precisam dele. Risco não é o mesmo que acaso ou perigo. O risco refere-se a perigos calculados em função de possibilidades futuras”. Esta ideia permite relacionar o aparecimento do conceito de risco com a emergência de um novo contexto social: a palavra (cuja origem etimológica é muito discutida) terá surgido para designar uma

65 V. LUHMANN (1991 [1993]) p. 23 ss. Luhmann refere ainda casos em que a probabilidade é desconsiderada (ou no mínimo subvalorizada) por o evento aparecer como inevitável (por exemplo, a queda de um meteorito) para daqui concluir que a sociedade actual está muito mais orientada para a consideração dos riscos do que dos perigos – p. 27.

66 O próprio Luhmann contribui, aliás, para o acervo que constitui a base desta nova racionalidade. O conceito de limiar de catástrofe introduz uma separação entre um modelo de cálculo dos riscos orientado pelas expectativas de custos e benefícios e um outro que se lhe sobrepõe, quando o (eventual) resultado desfavorável é visto como “catástrofe”, afectando esse cálculo – v. Luhmannn (1996) p. 125. Mantém-se, no entanto, aberta a dúvida: será que há, nesse caso, uma alteração de paradigma, ou será que as diferenças verificadas correspondem apenas à introdução de valores extremos na matriz utilizada pelo indivíduo para análise do problema?

48 realidade nova que não encontrava expressão adequada no léxico existente. E a sua capacidade operativa vai sendo testada à medida das necessidades conceptuais, atingindo actualmente o máximo de esforço face à denominada sociedade de risco.

Curiosamente, Beck, o grande teorizador da sociedade de risco, embora concorde com várias das características atribuídas geralmente ao conceito de risco, considera difícil a delimitação entre este e o de perigo, por, na sociedade actual, se terem tornado categorias intermutantes. Mas, por outro lado, Beck torna mais complexo o conceito, entendendo que é importante distinguir entre duas concepções de risco:

a) a probabilística (ligada à teoria de que tudo é mensurável e calculável);

b) a de risco no sentido de incertezas que não podem ser medidas nem calculadas (“incertezas fabricadas”) – presente numa sociedade onde a incerteza é omnipresente e onde as inovações desencadeiam consequências imprevisíveis e incontroláveis.

A distinção que proponho deve ser considerada apenas como de carácter operativo; não se pretende que ela tenha mais valor do que uma qualquer classificação destinada a estabelecer códigos comuns.

O perigo corresponde a uma probabilidade elevada68 de um dano objectivo se verificar.

68 Segundo uma parte da doutrina, essa probabilidade deve situar-se acima dos 50%. Faria Costa analisa desenvolvidamente esta questão, a partir da posição da jurisprudência alemã. Concordando embora com a ideia de que haverá sempre uma situação de perigo relevante quando a probabilidade de um resultado desvalioso é superior à probabilidade da sua não produção, Faria Costa questiona se, mesmo com uma probabilidade inferior a 50%, não poderá afirmar-se haver uma situação de perigo, e conclui que “há perigo sempre que, através de um juízo de experiência, se possa afirmar que a situação em causa comportava uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer” - COSTA (1992) p. 596 ss.

49 O risco corresponde a uma probabilidade, mensurável, de uma acção desencadear um dano (um resultado desvantajoso) virtual; é um perigo potencial69.

Note-se que, embora o perigo acompanhe a verificação de um risco elevado, não faço coincidir as duas realidades, pelo que não subscrevo o critério quantitativo. A distinção é de natureza, não de quantidade.

Exemplificando: em sede de imputação objectiva, quando se diz “criar um risco (proibido) que se concretiza no resultado”, esse risco consiste numa probabilidade de o resultado se verificar na sequência da acção (probabilidade aferida em abstracto, de acordo com as regras da causalidade e adequação). O objecto corre perigo (ex ante) e, a final, é vítima de dano. O risco reporta-se à acção do indivíduo, o perigo ao objecto.

O risco tem ínsito um carácter dinâmico, enquanto o perigo é preponderantemente passivo. Estará relacionada com esta diferença, intuindo-a, a teoria que distingue entre risco e perigo por, alegadamente, o primeiro se reportar a efeitos da acção humana e o segundo a eventos naturais. E, de algum modo, também podemos estabelecer uma relação com o facto de o termo risco só ter surgido muito mais tardiamente, quando os seres humanos se viram confrontados com opções que envolviam um alto grau de incerteza. De facto, a polémica sobre as origens do termo reveste pouco interesse para a definição da realidade subjacente ao uso intensivo do mesmo – como muitas vezes sucede, foi o conteúdo que procurou uma forma (de expressão).

69 Deste ponto de vista, haveria crimes de perigo concreto, mas os chamados crimes de perigo abstracto seriam na realidade “crimes de risco”.

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