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A ACÇÃO COMO OPÇÃO O mito da negligência inconsciente

6.2 A questão da culpa

Para a negligência, o importante é que o sujeito tenha consciência do risco (proibido) que está a criar voluntariamente. Esta consciência é

pressuposta atentas as circunstâncias (à semelhança do elemento volitivo do

dolo, que também, por vezes, é pressuposto: quem dispara uma arma apontada à cabeça da vítima, a curta distância, não pode invocar depois que

não pretendia matar, pois tal é contrariado pela experiência comum da vida.

Até demonstração em contrário – v.g. provando a existência de um erro: por exemplo, o agente julgava que a arma estava descarregada – pressupõe-se a existência de dolo). Da mesma forma, quem actue em circunstâncias que, segundo o juízo socialmente aceite, indiciam a criação de um risco proibido (por criação de risco ou aumento de risco previamente existente) está, à partida, a criá-lo consciente e voluntariamente, mesmo que venha depois afirmar que não teve consciência de tal facto. Essa não-consciência, a verificar-se, só poderá resultar de um erro (sobre elementos do facto) à semelhança do que ocorre no citado exemplo da arma.

Ou seja, a conduta do agente está sujeita a juízos de presunção no quadro da experiência comum – que serve de necessário referente – cujo afastamento terá de resultar de adequada elisão.

No caso da negligência inconsciente, o erro que possa ter conduzido à “inconsciência do risco”, existindo, será submetido ao crivo da censurabilidade (censurabilidade do erro) tal como sucede no domínio dos crimes dolosos.

Fletcher debruça-se sobre esta questão no seu texto “The fault of not knowing”295, no qual defende, a final, que a negligência (inconsciente) pode

172 sustentar a censura pelos danos causados. Tendo como ponto de partida que “a mens rea consiste em escolher agir erradamente”, questiona como pode a conduta de alguém que desconhece o risco sustentar uma condenação296. O autor refere a posição de Jerome Hall, segundo o qual a negligência inconsciente não é uma base aceitável para a responsabilidade penal, mas não se mostra sensível a esta tese, uma vez que parece considerar as várias categorias da negligência como construções normativas, susceptíveis de ampla variação (o que, segundo Fletcher, poderá constatar-se comparando diversos sistemas jurídicos).

A crítica de Jerome Hall, todavia, levanta questões que não são facilmente ultrapassáveis e requerem uma análise atenta e argumentos substanciais que a ela se oponham.

O ponto de partida de Jerome Hal consiste, na linha de toda a filosofia desde Aristóteles, em tomar a possibilidade de escolha (ou seja, a

acção voluntária) como base da culpa297.

Considerando que há factores no passado de cada indivíduo que condicionam as suas atitudes ao longo da vida, v.g. o ambiente em que decorreu o período de formação desde a primeira infância, Hall põe em causa que o indivíduo deva responder pela não aquisição, no passado, de aptidões normais. É precisamente por rejeitar essa relevância de [culpa na] formação da personalidade que rejeita igualmente a responsabilidade por negligência inconsciente, a qual resultaria de uma atitude temerária adquirida ao longo de um processo iniciado na infância.

296 Note-se que, embora elaborada no quadro do direito anglo-saxónico, a problemática abordada por Fletcher tem plena validade no direito continental. Aliás, Fletcher estabelece a ponte entre os dois sistemas, utilizando mesmo diversos exemplos retirados do direito alemão. Na verdade, por muitas diversidades que possam apresentar, todos os sistemas jurídico-penais actuais têm em comum a exigência de livre opção, sem a qual não é possível responsabilizar alguém pelos seus actos.

173 Cabe perguntar se, também na negligência consciente (e até mesmo no dolo), não haverá interferência desse EU estrutural que determina o modo de estar no mundo de cada indivíduo. Aquele que decide não é diferente daquele que reage, não é uma entidade abstracta que se contrapõe às tendências adquiridas que comandam os nossos actos “não reflexivos”. Hall parece considerar que o indivíduo, ao fazer opções conscientes, se liberta de todos os condicionalismos da sua personalidade adquiridos ao longo da vida (e caberia aqui acrescentar os condicionalismos introduzidos pelo património genético) e os controla, tomando uma decisão “livre”. O indivíduo será então responsável por essa decisão, pois ela resulta exclusivamente da sua opção, daquilo que ele quer e não daquilo que ele é. Mas como pretender que o indivíduo-que-decide é diferente do indivíduo que constitui a sua base de sustentação? Dito de outro modo: que outro EU existe que não seja EU? No século XXI, com todo o conhecimento adquirido no campo de genética e psicologia, a resposta só pode ser: o eu é apenas um e resulta da interacção entre todos os componentes, herdados e adquiridos.

Voltamos ao determinismo, sendo levados a rejeitar os pressupostos elementares da responsabilidade penal (e, sobre este ponto, não se pode deixar de concordar com Jerome Hall)? Não necessariamente. O indivíduo- -que-decide terá de ser visto como um gestor, que faz opções a partir dos elementos (condicionantes) de que dispõe. Como a população da aldeia diariamente invadida pelos leopardos a que se refere Kafka298, ele terá de integrar os seus limites na própria liberdade. Os condicionalismos inerentes a qualquer adulto não desaparecem no quadro de uma liberdade que, a acompanharmos Hall, seria mais uma afirmação de princípio do que uma conclusão demonstrada.

298 Trata-se de um conhecido aforismo escrito por Kafka: “Leoparden brechen in den Tempel ein

und saufen die Opferkrüge leer; das wiederholt sich immer wieder; schliesslich kann man es vorausberechnen und es wird ein Teil der Ceremonie”.

174 Regressando à vexata quaestio da negligência inconsciente, Hall defende que os danos causados negligentemente, ao invés dos dolosos, não afrontam os valores da comunidade, pelo menos em termos dignos de tutela penal299. O autor não justifica a afirmação, no entanto, nem se vê por que não afrontariam. Pelo contrário, nos tempos que correm, torna-se por demais evidente o abalo (quer material quer a nível da confiança e paz sociais) causado pelos comportamentos de risco susceptíveis de lesar bens jurídicos importantes e de causar, logo à partida, um clima de forte insegurança na comunidade.

Mais fértil de implicações é a questão colocada um pouco adiante300: qual o grau de violação (do dever) exigido para que se justifique a punição do agente? A resposta parece, contudo, evidente: tendo em conta que o direito penal há-de constituir sempre uma última ratio, o grau de violação exigido será o necessário – não mais, mas também não menos – para a adequada protecção dos bens jurídicos dignos de tutela penal. E, desde logo, uma primeira triagem é feita ao exigir-se a verificação do resultado – como se sabe, a negligência não é punida na ausência de resultado, diferentemente do que sucede com o comportamento doloso301.

Por último, Hall interroga-se sobre as vantagens da punição face a outras consequências como, por exemplo, a responsabilidade civil. Esta é uma questão válida mas que não respeita especificamente à negligência: a mesma dúvida pode ser colocada relativamente aos factos dolosos.

Tomando como referência o texto de Hall, referirei ainda três outras questões aí suscitadas. A primeira está relacionada com o problema, já referido, da culpa por aquilo que se é. Contestando que os danos causados

299 HALL (1963) p. 637. 300 Ibidem, p. 638.

301 Os crimes de perigo constituem, em certo sentido, uma excepção a esta regra, pois aí pune-se a conduta arriscada (podendo exigir-se ou não a existência efectiva de um perigo) ainda que o risco criado não se tenha materializado em dano.

175 por negligência correspondam a uma “moral fault”, Hall afirma que o arrependimento que pode surgir a posteriori está apenas ligado ao facto de ter causado um dano (causado no sentido naturalístico), diferentemente do que acontece no dolo. Mas isto não é correcto, pois, frequentemente, os agentes recriminam-se por “terem sido descuidados”, por “não se terem apercebido dos riscos”, numa palavra: por terem procedido negligentemente.

Mais pertinente será a interrogação, também suscitada por Hall, sobre como é possível, em termos penais, censurar alguém por ser imprudente. Trata-se de uma questão crucial, a ser resolvida fora do âmbito da discussão sobre a culpa na formação da personalidade a que aludimos

supra. Sem prejuízo de voltarmos a este problema, desde já se afirma que,

numa perspectiva de protecção de bens jurídicos, a conduta de alguém que actua estouvadamente, ainda que sem pensar, parece tão ou mais grave do que muitos comportamentos dolosos. Há, aliás, nos crimes negligentes, uma parcela de elementos comuns aos dolosos: o desvalor do resultado e a perigosidade objectiva da conduta. Não bastarão para fundar a ilicitude? Penso que, encontrado o desvalor da acção (questão incontornável, a que dedicarei o capítulo 9) a resposta deve ser positiva, justificando-se plenamente a intervenção do direito penal.

A terceira questão emergente do texto de Hall que gostaria de abordar prende-se com a crítica feita pelo autor à perspectiva dita utilitarista: Hall argumenta que a ameaça da pena não poderá surtir efeito no caso da negligência inconsciente porque o agente não pondera os custos e benefícios, uma vez que, no momento de actuar, não tem consciência dos riscos criados pela sua conduta. Esta é uma objecção lógica que só pode ser ultrapassada invalidando um dos seus termos – ou seja, demonstrando o que parece absurdo: que o indivíduo pondera os custos e benefícios mesmo no caso da negligência inconsciente.

176 A resposta a estas questões radica, assim, na solução do mesmo problema: como responsabilizar alguém que não optou, pois que não se apercebeu sequer da opção a tomar? E a conclusão só pode ir no sentido de que a responsabilidade, nos termos em que a entendemos e que serão os únicos compatíveis com o direito penal, implica, necessariamente, a possibilidade de agir de outro modo.

Se o dever de cuidado correspondesse apenas a um padrão delineado segundo critérios estritamente objectivos, deveria dizer-se que, mesmo alguém acometido por uma súbita e imprevisível incapacidade física que o impedisse, por exemplo, de ver, quando manejava uma máquina, e por esse facto viesse a causar um acidente, teria procedido negligentemente. Mas qual o cuidado a que estava obrigado? Como pode afirmar-se que alguém está obrigado a algo que não pode cumprir?

Por outro lado, se optarmos por um critério subjectivo, ficaremos reféns das incapacidades individuais, permanentes ou acidentais, esvaziando de sentido útil a imposição do “que é capaz”.

Fletcher considera que a distinção entre padrões subjectivos e padrões objectivos da negligência tem sido mal compreendida pois, em qualquer dos casos, é sempre possível encontrar uma base para a responsabilidade penal: ainda que o agente desconhecesse as potenciais consequências da sua conduta (e portanto não seja possível afirmar que ele

optou por agir descuidadamente), poderá ser do mesmo modo

responsabilizado “por não saber”302,303. O agente será responsável por criar

302 FLETCHER, ibidem, p. 9.

303 Pode ser interessante estabelecer aqui o paralelo com o que se verifica nos casos do artigo 16.º do Código Penal: ao admitir que o erro seja, em certas circunstâncias, censurável, punindo assim o agente a título de negligência (artigo 16.º/3) estamos a atribuir consequências penais a condutas que o agente adoptou no total desconhecimento sobre as reais consequências – pois que não só desconhecia os exactos contornos da realidade (inconsciência) como inclusive supunha uma realidade diferente. O agente, a ser punido, no âmbito desta disposição, sê-lo-á a título de negligência inconsciente (pelo menos na grande

177 um risco não razoável, ou seja, a omissão do dever de cuidado, para Fletcher, deverá ser sempre encarada como uma acção – a acção de “introduzir no mundo” um risco injustificado304.

A partir desta abordagem, pode conceber-se a existência de situações em que o dever (de cuidado) consistiria em o agente ter-se informado, à partida, dos riscos inerentes à acção projectada305. Na perspectiva que defendo sobre esta questão, será então necessário, para estes casos, distinguir entre duas espécies de negligência inconsciente: a negligência aparentemente inconsciente, aquela em que há um conhecimento e ponderação dos riscos a nível da consciência periférica ou co-consciência, nos termos expostos supra; e a negligência efectivamente inconsciente, em que o indivíduo não chegou mesmo a aperceber-se dos riscos existentes, por falta de informação306. Para esta, ao contrário do que pretende Fletcher, parece-me ser inevitável recorrer ao paralelo com a omissão. E o dever de informação fundar-se-á numa “responsabilidade” inerente à decisão de agir (à conduta arriscada). Na verdade, nestes casos subsiste ainda o momento essencial da opção (essencial para a ilicitude), só que em lugar de ser uma opção por uma acção com riscos

X, é uma opção por uma acção cujos riscos se desconhece – mas cujo

potencial de riscos se conhece, em abstracto.

maioria dos casos, uma vez que quase só a título académico podemos configurar a hipótese de ele ter ponderado um possível erro de percepção sem se cair no dolo eventual). Não consta, todavia, que, por isso, alguém defenda que o erro deva excluir liminarmente a punibilidade: o agente será punido por “não saber” quando esse desconhecimento era evitável.

304 Não me parece, pois, justificada a crítica de Rabin quando afirma que Fletcher elide a distinção entre o indivíduo que é indiferente à necessidade de se informar e o indivíduo que nem sequer tem a noção da necessidade de se informar – cf. RABIN (2003) p. 431. Fletcher não elide o problema, simplesmente coloca a questão do (des)conhecimento dos riscos num outro plano.

305 Não se pode, também, esquecer que, desde logo, a atitude perante a situação em causa pode condicionar o grau de atenção e detecção dos riscos envolvidos – cf. WHITE (1991) p.33.

306 Simons chama ainda a atenção para a dificuldade em distinguir entre situações em que o agente não tem consciência do risco daquelas em que tem uma consciência imperfeita ou incompleta – SIMONS (2002) p. 20.

178 Exemplificando: conduzir um veículo é indubitavelmente uma acção que provoca riscos (em abstracto). A condução do veículo Y no momento Z envolve riscos que o agente pode (negligência consciente/aparentemente inconsciente) ou não (negligência efectivamente inconsciente) conhecer. Mas, mesmo neste último caso, o agente sabe que a condução, em abstracto, implica riscos e tem o dever, inerente à projecção da sua actividade no mundo externo, de se informar correctamente antes de agir.

Este risco abstracto inerente a cada actividade é obrigatoriamente do conhecimento de qualquer indivíduo inserido socialmente e imputável.

A negligência apresenta-se, assim, como a criação de um grau de risco desaprovado. É a escolha de uma conduta. O dever de cuidado é aferido no momento em que há opção (ou não seria um dever). Reporta-se sempre a algo voluntário, a uma conduta humana. Por exemplo, o cirurgião que opera distraído, ou com sono, e por esse motivo produz um corte inadequado, lesionando o doente, foi negligente ao operar (mal), não ao cortar 1 cm mais do que o indicado. Seavey refere o exemplo do condutor principiante (com a concomitante inexperiência)307. Não se lhe pode exigir, obviamente, as capacidades que só com a prática é possível adquirir; espera- se, então, que não conduza, de início, nas artérias mais movimentadas. Mas, pergunta Seavey, que dizer se, por razões excepcionais e inesperadas, a rua ficar de repente cheia de trânsito? Seavey conclui que, de qualquer modo, não se pode exigir do condutor principiante segundo o mesmo padrão que do condutor experiente308. Poderá sempre argumentar-se que há, pelo menos, um padrão mínimo que mesmo o condutor principiante deverá ser capaz de

307 SEAVEY (1927) p. 27.

308 Rabin afirma que este padrão (entendido como o padrão de um homem razoável) é “uma ficção” pois contraria o postulado de que “errar é humano” – RABIN (2003) p. 432. Mas o homem razoável é aquele que, errando, pondera, precisamente, a probabilidade de errar em confronto com a vantagem visada e com a gravidade previsível do seu (eventual) erro – em suma, decide conforme o risco e o seu interesse em agir, fazendo uma gestão razoável do risco.

179 atingir, caso contrário não devia, simplesmente, conduzir (e não é por acaso que a condução de veículos está sujeita a aprendizagem, exame e licença,) uma vez que a condução implica perigos para terceiros e não é uma actividade indispensável ao condutor (embora tenha vantagens para ele, obviamente). Diria então que o condutor, ainda que principiante, deverá ter as capacidades bastantes para satisfazer as exigências objectivas de cuidado. Mas (por força das inevitáveis variações individuais) sempre haverá principiantes menos aptos inicialmente; e se, numa rua geralmente pouco movimentada, se virem confrontados com uma situação de emergência? Ainda assim, terão de atingir o mínimo admissível; para além disso (e admitindo que o seu “mínimo” não seja suficiente, pois um principiante não adquiriu ainda os automatismos necessários para fazer face a situações mais complexas) haverá que ponderar qual a probabilidade de tal acontecer versus a utilidade da deslocação para o agente309.

A ponderação sugerida permite também conciliar as particularidades individuais com um padrão objectivo de cuidado. Pois que o valor de P (probabilidade de se verificar a lesão do bem jurídico) está obviamente dependente das qualidades do agente; logo, o resultado final da ponderação dependerá também destas. No caso do condutor principiante, a conclusão vai depender de P1 [de haver trânsito intenso (inesperadamente)] e P2 [de, nesta

eventualidade, o agente provocar o dano]310.

309 Rabin, no seu comentário a Fletcher, analisa um problema semelhante a propósito do caso Roberts v. Ramsbottom: um idoso de 73 anos sofreu um ligeiro ataque cardíaco, de que não se apercebeu e, não tendo consciência de que não se encontrava em condições de conduzir, veio a provocar um acidente – RABIN (2003) p 431. Tal como no caso do condutor principiante, concluímos que a responsabilidade dependerá, também neste caso, de uma ponderação de probabilidades. Obviamente, terá de se concluir que o indivíduo não está

obrigado a prevenir eventos raros e improváveis que afectem a sua capacidade de gerir os

riscos.

310 Simons admite ainda que o agente possa compensar a sua inabilidade com outras precauções (aumentadas) que conduzam a um equilíbrio nessa ponderação – SIMONS (2002) p. 19.

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