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Homem real e homo economicus

O SUJEITO COMO OPERADOR RACIONAL

4.1 Homem real e homo economicus

O homo economicus não pode ser uma figura idealizada: tem de ser adaptado ao homem real. Tal só é possível se o modelo incluir as limitações do homem real fazendo-as suas205. Mas isto não significa, de modo algum, que devamos orientar-nos pelo critério do “homem médio”, e menos ainda por um critério individualizado, de acordo com o agente concreto. O direito não deve abdicar do seu carácter normativo. No caso da negligência, há que estabelecer um padrão de cuidado adequado à protecção (mínima) dos bens jurídicos. Trata-se, portanto, de estabelecer a ponte entre um padrão racional (ideal) e uma prática (concreta) racionalmente limitada.

A concepção do comportamento racional como aquele que, sendo livre, se contrapõe ao comportamento em que o indivíduo, dominado pelas paixões, não controla o sentido da acção, dificultou durante muito tempo a

205 Para Jolls, Sunstein e Thaler, o homem real difere do modelo económico em três aspectos: na racionalidade, na vontade e no interesse pessoal (self interest) – JOLLS et al (1998) p. 1476 ss.

119 construção de modelos explicativos para a conduta humana tal como é observável empiricamente.

Se nos ativéssemos a tal conceito de racionalidade, teríamos de concluir que, frequentemente, as pessoas agem e optam “irracionalmente” – aliás, esse seria mesmo o padrão prevalecente na vida quotidiana. E, desse modo, na maioria das situações as pessoas não tomariam realmente qualquer verdadeira decisão, pois seriam influenciadas por factores afectivos que condicionariam irremediavelmente a sua vontade.

A velha dicotomia entre razão e paixões, entre o espírito e os sentidos, teve expressão num dado conceito de racionalidade – todo ele impregnado por juízos valorativos. A razão seria, nessa perspectiva, apanágio do ser humano – como um patamar elevado a que só ele (e por vezes) acederia, e não como um método, um modus essendi et operandi.

Mas se, pelo contrário, se entender a racionalidade como um processo com vista a atingir fins, aquela tornar-se-á uma característica habitual do comportamento humano (e não só)206.

Repare-se na associação frequentemente feita entre a loucura e a “falta de sentido”, o comportamento inexplicável à luz dos pressupostos ditos “normais”207. Esta associação, muito difundida, traduz a noção

206 Pode-se então concluir que os teoremas construídos com base numa abordagem “económica” do comportamento humano não são incompatíveis com os elementos “irracionais” desse comportamento. Desde logo porque, como afirma Becker, a primeira tarefa será definir o conceito de racionalidade – este não é um dado adquirido mas uma construção – BECKER (1962) p. 1 e (1968) p. 153. Tudo depende, portanto, da maior ou menos abrangência do conceito, que pode inclusive englobar as emoções.

207 A falta de “sentido” resulta de um desconhecimento da realidade imaginária em que o indivíduo está mergulhado. A decisão, aparentemente insensata, de A abater com um tiro de caçadeira o cão do vizinho que, como habitualmente, se dirigia a este para festejar o seu regresso a casa ao fim do dia, seria compreensível e adequada se o cão estivesse atacado de raiva, como “uma voz” assegurou a A. Também no caso das paranóias, por exemplo, o comportamento do indivíduo pode ser completamente racional, tendo em conta os factos como são por ele configurados. Em outros tipos de patologias, pode ser o relevo dado a factos reais – as reacções desencadeadas por estes – que se encontra profundamente alterado, desequilibrando a ponderação “normal” que estes assumiriam.

120 implícita de que as acções humanas correspondem a um plano que se põe em prática para atingir determinado fim208. A racionalidade será assim uma

estratégia, ou, como diz Baron, referir-se-á a métodos de pensamento

utilizados e esses métodos serão tanto mais racionais quanto mais eficazes forem para atingir os objectivos de quem pensa209.

É necessário ter presente que os objectivos podem não ser egoístas no sentido mais imediato do termo. Se alguém deixa o emprego para se dedicar a tempo inteiro a cuidar de um filho que, em consequência de um acidente, ficou paraplégico, essa decisão é racional, em função do objectivo (cuidar do filho) e não satisfaz, pelo menos aparentemente, os interesses da mãe – embora se possa dizer que, em última análise, os satisfaz, pois o interesse em cuidar do filho, claramente, se sobrepôs ao de continuar a carreira profissional.

Também a contraposição entre razão e emoção é falaciosa, até porque as emoções podem ser uma componente dos objectivos a atingir, e, portanto, constituírem elas próprias um objectivo “servido” pela racionalidade.

Bem entendido, não se pretende negar que por vezes as emoções possam afectar a racionalidade do comportamento, actuando como forças

externas. Por exemplo, o medo ou a raiva podem alterar a capacidade do

indivíduo para gerir os meios disponíveis em ordem aos fins, ou mesmo a sua capacidade de percepção da realidade que o cerca. Mas estas serão situações excepcionais, ocorrendo raramente e apenas em casos extremos.

As emoções devem, em qualquer dos casos, ser integradas no processo racional. Quando fazem parte do objectivo, serão tidas em consideração (tanto no plano descritivo como no prescritivo) na decisão

208 E é impossível não notar a similitude com os pressupostos da acção associados às teorias finalistas.

209 BARON (2000) p. 55; na mesma linha, HASTIE/DAWES (2001) p. 249, afirmam que “a racionalidade da decisão respeita ao processo de escolha, não ao que é escolhido”.

121 sobre a melhor forma de o alcançar. Quando possam, previsivelmente, afectar o desempenho do sujeito, deverão ser contabilizadas como dificuldades a enfrentar no percurso delineado para alcançar o fim proposto210.

Na concepção aqui defendida, emoções e racionalidade consistem em entidades de natureza distinta. As emoções são estados (agradáveis ou desagradáveis) enquanto a racionalidade é um método. Não são, portanto, comparáveis, mas podem inter-relacionar-se211.

A convicção de que os agentes são racionais nas suas escolhas, decidindo de acordo com a “utilidade” que calculam vir a obter mediante a alternativa escolhida, foi ganhando uma adesão crescente a partir dos anos 80 do século XX212.

Paralelamente, desenvolveu-se a contestação a esta mesma ideia, a partir da observação empírica de que nem sempre os agentes se comportam de modo racional, não correspondendo aos axiomas e modelos que foram sendo construídos213. Não me parece correcto, todavia, extrair desta observação nenhuma das seguintes (recorrentes) conclusões:

a) os agentes não se comportam afinal racionalmente; ou seja, a afirmação inicial estaria errada;

b) o comportamento dos agentes não pode ser reduzido a axiomas e modelos, de modo mais ou menos determinístico e constante, requerendo antes uma abordagem não-linear.

210 Note-se que por vezes, como afirmam Jolls, Sunstein e Thaler, as pessoas respondem racionalmente ás suas próprias limitações cognitivas, minimizando assim os erros e os custos da decisão - JOLLS et al (1998) p. 1477 ss.

211 E, como veremos, influenciar-se mutuamente.

212 Dito de outro modo: “o comportamento é funcional” (behavioral is functional) – EINHORN/HOGARTH (1988) p. 113.

213 Sobre a tensão entre os modelos de racionalidade propostos pela teoria da decisão e o comportamento adoptado pelos indivíduos concretos, cf. TVERSKY (1996) p. 5 ss.

122 Contra a conclusão a) pode aduzir-se o seguinte argumento: é impossível conceber (e portanto uma nulidade teórica) um processo de

decisão totalmente aleatório, entregue ao acaso. Esta ideia pode

corresponder à realidade aparente do comportamento humano em diversas situações mas, além de encerrar uma contradição nos seus próprios termos, sofreu uma drástica redução a partir do momento em que se identificaram as dimensões não conscientes do ser humano, que comandam (e explicam) muitos dos seus actos, de outro modo incompreensíveis.

Só pessoas gravemente afectadas na sua integridade mental tomarão “decisões” que não radicam em qualquer motivo – por muito absurdo, ou obscuro, que este possa parecer a terceiros.

Mas, ainda que assim não fosse, e a racionalidade não correspondesse ao modus operandi do cérebro humano, ela seria uma imposição, já não ontológica, mas metodológica, sob pena de o estudo do comportamento humano se tornar inviável. Com efeito – e à semelhança do que acontece em todas as ciências – os modelos com que abordamos a realidade não têm necessariamente de corresponder à sua verdadeira natureza (nem sequer interessando discutir se essa verdadeira natureza existe ou é apenas uma expressão sem conteúdo): basta que sejam operacionais, isto é, que “funcionem”.

Isto significa que, quando o modelo não “funciona”, estará apenas mal construído ou incompleto. Não passamos do plano científico para o mítico: corrigimos o modelo.

O conceito de racionalidade aqui adoptado é o que entende como racional o aproveitamento óptimo dos meios disponíveis. Quer na composição do objectivo, quer no elenco dos meios disponíveis, transparecerão elementos afectivos214. Acompanhando Dawes, considerar-se-

123 -á que uma escolha racional é aquela que preenche três condições: a) baseia- -se nas disponibilidades do agente (incluindo disponibilidades materiais e também estados fisiológicos, capacidades psicológicas, relações sociais e sentimentos); b) tem em conta as possíveis consequências da opção escolhida;

c) quando essas consequências são incertas, a sua probabilidade é avaliada

sem violar as regras básicas da teoria das probabilidades.

Do exposto se infere que os modelos decisórios só poderão funcionar correctamente se introduzidas todas as variáveis relevantes, o que frequentemente não sucede. Nomeadamente, há a tendência para omitir os sentimentos e afectos, considerados erroneamente elementos “não racionais”, puramente subjectivos ou à margem dos modelos decisórios, quando, pelo contrário, são componente essencial de todo o processo que culmina nas opções humanas215.