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6 APROFUNDANDO A ESCUTA: TEXTOS E CONCEPÇÕES

6.1.5 A cultura do coitadinho

O diálogo sobre as funções coesivas dos articuladores textuais foi retomado, durante o quarto momento de entrevista7, com a leitura e análise do artigo de opinião “A cultura do coitadinho”, de autoria de Adrilles Jorge (ANEXO E). Nesse artigo, o locutor manifesta opinião sobre o apego dos brasileiros à imagem do pobre coitado, argumentando que as pessoas no Brasil costumam demonstrar simpatia por aqueles que se apresentam como humildes, desfavorecidos, vítimas das condições econômicas e das circunstâncias sociais.

Koch (2014, p. 139) considera que alguns procedimentos de progressão textual são diretamente responsáveis pela organização e funcionamento dos textos. A respeito disso, buscamos analisar como se processa a sequenciação entre variados níveis do texto escrito por Adrilles Jorge, observando as funções exercidas por articuladores textuais de categorias diversas, que foram acionados pelo locutor para promover o encadeamento textual, contribuindo, assim, para a atividade interpretativa da coerência. Além disso, analisamos como a (re)construção de objetos de discurso alinha-se aos argumentos acionados pelo locutor para construir ponto de vista.

No que se refere aos articuladores selecionados pelo locutor para promover a sequenciação textual, realizamos um levantamento (APÊNDICE G) e constatamos que há no texto predominância dos articuladores do tipo discursivo-argumentativo; os quais, segundo Koch (2011a, p. 101), possibilitam a estruturação de enunciados para formar textos e são intencionalmente acionados “com a pretensão de orientar o interlocutor para certos tipos de conclusão, com exclusão de outros”. Esse tipo de articulador evidencia que, ao relacionar fragmentos distintos do texto, o locutor busca tecer relações “de caráter eminentemente subjetivo” (KOCH, 2011a, p. 31), indiciando suas intenções e sugerindo a orientação argumentativa a que o leitor deve aderir.

No que diz respeito à progressão textual viabilizada pela (re)construção de objetos de discurso, destacamos, para fins de ilustração, alguns procedimentos referenciais por meio dos quais o locutor sugere aos seus leitores os argumentos que constrói para alguns fatos/fenômenos referenciados no texto. Ao criar objetos do discurso para representar esses

7 Estamos nos referindo às entrevistas realizadas em 06 de março de 2015 com Eterna Aprendiz, em 10 de março de 2015 com Simpatia de Menina, e em 12 de março de 2015 com Profissional de Fé.

fenômenos na tessitura textual, o locutor constrói cadeias referenciais coesivas que asseguram a progressão/continuidade tópica do texto e, ao mesmo tempo, manifestam suas percepções sociocognitivas sobre as coisas do mundo abordadas/reconstruídas no discurso.

O artigo é iniciado por uma constatação enfática: “No Brasil, talento nunca foi quesito imprescindível para acesso à fama e ao reconhecimento.”. Para comprovar essa afirmação, o locutor constrói um novo objeto de discurso, “A celebridade do tipo ‘big brother’”, apresentando-nos um novo referente que, por contraste, se relaciona àquele incialmente introduzido no texto: “talento”. A relação entre “talento” e “celebridade do tipo big brother” operacionaliza-se, textual e discursivamente, de forma indireta, sugerindo-nos a seguinte interpretação: a comprovação de que talento não é requisito para o reconhecimento está na existência de celebridades instantâneas produzidas por programas que exploram o cotidiano de pessoas comuns, transformando-as em celebridades.

Para construir esse tipo de relação, o locutor age estrategicamente, considerando que os seus interlocutores possam perceber a relação indireta entre “falta de talento” e “celebridade do tipo big brother”. Conta, portanto, com os conhecimentos de mundo do leitor e com a percepção deste de que os referentes reinterpretam fenômenos observados no mundo representado no texto: a realidade social brasileira. À proporção que faz o texto progredir para manifestar sua opinião, o locutor constrói outros referentes, que não representam fidedignamente a realidade, pois congregam o ponto de vista daquele que fala em razão da orientação argumentativa que pretende imprimir ao seu dizer.

É assim que “big brother” passa por um processo de recategorização, sendo reativado na terceira linha por uma expressão definida predicativa, “o próprio programa infame”, que não apenas retoma um precedente textual, mas lhe imprime uma caracterização construída à luz daquilo que o locutor pensa sobre o programa referenciado. Após a apresentação de uma constatação sobre a realidade brasileira e de uma comprovação sobre o que diz, o locutor ocupa-se com a construção de objetos de discurso acerca do tópico discursivo que assume a centralidade de sua argumentação.

A fim de comentar alguns processos referenciais responsáveis pela sugestão de sentidos no texto em análise, destacamos alguns referentes que integram a cadeia coesiva construída com o intuito de manter em estado de ativação os objetos do discurso relacionados ao principal tópico discursivo do texto: “um fenômeno" (l. 3) → “a apologia do coitadinho” (l. 4) → “o fenômeno” (l. 5) → “neste viés” (l. 6). Esses referentes, presentes no primeiro parágrafo do texto, exemplificam as atividades discursivo-cognitivas realizadas pelo locutor para cumprir seu projeto de dizer.

Na terceira linha, ao optar pela forma nominal indefinida “um fenômeno”, o locutor apresenta-nos um objeto do discurso construído para referenciar um novo argumento a ser desenvolvido. É importante destacar que a mesma forma nominal aparece na segunda linha do artigo, contudo ambas as ocorrências não designam a mesma coisa. Há inclusive um articulador textual discursivo-argumentativo de contraposição, o “mas”, que fora intencionalmente escolhido para, dentre outras coisas, sinalizar a distinção entre os dois objetos, posto que “um fenômeno” (l. 2) define “celebridade do tipo big brother”, e “um fenômeno” (l. 3) refere-se à “a apologia do coitadinho, do humilhado” (l. 4).

A forma nominal indefinida “um fenômeno” (l. 3) introduz um referente novo no texto, que, embora indiretamente ancorado nas informações anteriores, só se torna conhecido depois, com o acionamento da expressão definida predicativa “a cultura do coitadinho, do humilhado”. Assim, o locutor fornece informações ao leitor, definindo por categorização o referente que sintetiza o ponto de vista defendido. Esse processo de recategorização é complementado com o uso de um operador discursivo-argumentativo “que” (l. 4), responsável por introduzir uma explicação do locutor sobre um dos componentes da forma predicativa.

Ciente de que já fornecera informações necessárias para tornar o objeto do discurso conhecido do leitor, o locutor retoma-o pela expressão anafórica “o fenômeno” (l. 5); optando, portanto, por uma forma nominal definida, muito usual quando o locutor julga que a informação apresentada já é conhecida de seu interlocutor. Mas, como o texto precisa progredir, o locutor reconstrói esse referente no percurso textual, realizando uma atividade de encapsulamento e rotulação. É o que se nota com a construção do referente “neste viés” (l. 6), uma expressão formada pelo determinante “neste” (contração da preposição “em” com o demonstrativo “este”) e pelo substantivo “viés”. A escolha lexical operada na formulação dessa expressão anafórica indica a intenção do locutor de nomear um referente abstrato, especificado pelo contexto, e não por uma forma lexical específica. Ao fazer isso, encapsula um conjunto de informações previamente apresentadas, sintetizando-as por um rótulo: “viés”.

Na progressão textual do artigo em voga, outros procedimentos são realizados para introduzir novos referentes, bem como para manter ou reativar na memória dos interlocutores informações necessárias para continuidade tópica do texto. Uma análise desses procedimentos revela que, para o desenvolvimento de sua estratégia argumentativa (apresentação da opinião, de exemplificações, de causas hipotéticas e de avaliação sobre a própria enunciação), o locutor cria cadeias referenciais coesivas nas quais os objetos do discurso construídos, relacionados aos tópicos centralizados em cada parágrafo, indiciam escolhas operadas em razão de uma intenção discursiva.

Os referentes construídos na tessitura textual contribuem, assim, para a orientação argumentativa do texto e, por conseguinte, para a atividade de construção da coerência textual. Como objetos dialógicos, que desvelam as formas como o locutor sociocognitivamente interpreta aquilo que diz, os referentes textuais assumem relevância ímpar na atividade do leitor. Isso porque, ao ler o texto e construir a sua coerência, o leitor encontra nesses objetos indícios sobre as posições assumidas pelo locutor no momento de produção de sua atividade de linguagem. Em síntese: os objetos do discurso inserem-se no texto como pistas que auxiliam a atividade interpretativa do leitor.

Conforme argumentam Koch e Elias (2011, p. 183), “todo texto se desenvolve a partir de um tema ou tópico discursivo”, que representa as coisas sobre as quais falamos ou escrevemos. Na progressão textual, a continuidade tópica relaciona-se aos processos de referenciação, haja vista que “a continuidade referencial serve de base para o desenvolvimento de um tópico” (MARCUSCHI, 2006, p. 21). Mas um tópico discursivo não se confunde com o objeto do discurso que o referencia no texto, pois, ao falar/escrever sobre coisas (tópicos discursivos), o falante/escritor reinterpreta-as, manifestando suas compreensões sobre os tópicos acionados no texto.

Assim sendo, observamos que a progressão referencial no artigo em análise possibilita ao locutor manifestar suas compreensões, suas críticas e opiniões sobre os tópicos discursivos desenvolvidos no texto. Isto é: cada referente construído para promover o desenvolvimento de um tópico denota a natureza da atividade discursivo-cognitiva praticada pelo locutor para consubstanciar a orientação argumentativa de seu discurso, para materializar seu projeto de dizer. Nesse sentido, os referentes não apenas representam tópicos de um discurso, pois revelam, sobretudo, as atividades interpretativas realizadas pelo locutor, numa “complexa relação entre linguagem, mundo e pensamento” (MARCUSCHI, 2006, p. 21). É por essa relação que o locutor (re)constrói objetos (re)significadores daquilo que pretende dizer sobre o que tem a dizer.

Com o respaldo da leitura que fizemos do texto “A cultura do coitadinho” e dos conhecimentos que adquirimos sobre o caráter dinâmico do processamento textual e da intersubjetividade relacionada às questões da coerência e coesão, propusemos aos sujeitos da nossa pesquisa a leitura do referido texto, durante o quarto momento de entrevista, para que pudéssemos, a partir disso, aprofundar diálogos sobre coerência e coesão. Nesse quarto momento, partimos de algumas questões mais gerais, sobre o trabalho com o texto, a coerência e a coesão em sala de aula, para, em seguida, aprofundar compreensão sobre as

concepções verbalizadas pelas professoras nos momentos anteriores (primeiro, segundo e terceiro) da entrevista compreensiva.

6.1.6 Tentação

Ainda no quarto momento de entrevista, propusemos às professoras a leitura do conto “Tentação”, de autoria de Clarice Lispector (ANEXO F), com o objetivo de aprofundar compreensões sobre um dos aspectos apontados pelas professoras nos momentos anteriores de entrevistas, as funções coesivas dos pronomes. Para a análise dessas funções, apoiamo-nos no trabalho de Souza (2014), que analisa as cadeias referenciais construídas no conto para referenciar as principais personagens da narrativa, a menina e o cão basset.

O trabalho em questão evidencia como os sintagmas nominais, os pronomes pessoais, as elipses, os pronomes demonstrativos e possessivos atuam como elementos fóricos, referenciando endoforicamente essas duas personagens da diegese. Ao fazer isso, aborda o papel relevante dos pronomes na tessitura coesiva do texto, explicitando como esses elementos linguísticos sugerem sentidos que podem ser intersubjetivamente desvendados durante a interação verbal, pela realização da atividade interpretativa do leitor em busca da construção da coerência textual.

Segundo Souza (2014), o uso do pronome oblíquo no trecho “Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento” (l. 6) cumpre a função de indiciar a mudança de perspectiva do foco narrativo (de terceira para a primeira pessoa). A partir desse ponto, o leitor pode interpretar que o narrador não atua apenas como observador, contando ações de outrem, pois a presença do oblíquo “nos”, um elemento fórico, sugere-nos que o contador da história também participa dos acontecimentos narrados. Ao perceber isso, o leitor pode, inclusive, supor que o narrador e aquele que espera “inutilmente no ponto do bonde” (l. 3 e 4) sejam a mesma pessoa. Isso evidencia que, além de referenciar as pessoas do discurso (o narrador e a menina), a forma pronominal indicia outras informações relevantes para a atividade de construção da coerência textual.

Além disso, a autora comenta o efeito de proximidade e de subjetividade sugerido pelas indagações iniciadas por pronomes interrogativos que exercem função coesiva, conforme podemos notar em: “Que fazer de uma menina ruiva com soluço?” (l. 5 e 6); “Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?” (l. 8); “Quanto tempo se passava?” (l. 22); “Que foi que se disseram?” (l. 25). Nesses trechos, o narrador (primeira pessoa do discurso) convida o narratário (segunda pessoa do discurso, ente imaginário para quem o narrador conta os fatos) a refletir sobre os acontecimentos. Com isso,

ambos são aproximados da solidão vivida por uma terceira pessoa do discurso, a menina ruiva, e dos acontecimentos que ligam essa menina ao cão basset.

No conto, a menina é apresentada como alguém que vive em solidão por coabitar com estranhos, pois, numa terra de morenos, a cor da sua pele e o tom ruivo de seu cabelo distinguem-na das demais pessoas, ocasionando, talvez, uma sensação de isolamento, de não identificação com outros sujeitos. A construção de cadeias referenciais para introdução e manutenção dessa personagem no foco de atenção dos interlocutores revela a importância dos pronomes para a construção coesiva do texto e para os efeitos de sentido que o narrador pretende nos sugerir.

Num primeiro momento, predomina uma atmosfera de mistério, com uma apresentação vaga dessa personagem, que é introduzida no texto, de forma não ancorada, pelo pronome pessoal “ela”. Souza (2014, p. 34-5) salienta que esse tipo de introdução pronominal não é canônico, pois normalmente o pronome retoma um referente já introduzido no texto, mantendo-o no foco de atenção do leitor. Ao optar por esse uso não canônico, o narrador visa a despertar a curiosidade do leitor, pois introduz um referente textual com uma forma gramatical (um pronome pessoal), que possui “grau baixo de identificação” (SOUZA, 2014, p. 27).

Assim o leitor é levado a refletir sobre a identidade da personagem referenciada pelo pronome “ela”. No percurso textual, essa identificação exige um movimento prospectivo do leitor (função referencial catafórica do pronome), haja vista que informações mais detalhadas sobre a identidade da personagem são fornecidas a posteriori pelas ocorrências de formas nominais definidas e indefinidas, a exemplo de: “a cabeça da menina” (l. 2), “seu olhar submisso e paciente” (l. 3) e “uma menina ruiva com soluço” (l. 6). Essas formas nominais fornecem ao leitor aspectos que tornam possível identificar algumas características da personagem, categorizando-a como uma menina ruiva de olhar submisso. Trata-se de uma identificação feita de forma gradual, pois, à medida que constrói novos objetos de discurso para designar o referente introduzido pelo pronome “ela”, o narrador agrega novas informações, tornando a personagem mais conhecida.

Na análise das cadeias referenciais (APÊNDICE H) construídas para manter essa personagem no foco de atenção do leitor, percebemos que várias estratégias de progressão referencial são acionadas, como uso de pronomes pessoais e de numerais, constituição de formas nominais definidas e indefinidas, retomadas por pronomes oblíquos e elipses. Segundo Koch (2009b, p. 85), as “formas gramaticais que exercem a função ‘pronome’ [...]” geralmente operam relações fóricas marcadas na cotextualidade, já as formas nominais

definidas, além de operarem categorizações do referente, podem indicar relações fóricas construídas com base em inferências e no conhecimento partilhado pelos interlocutores.

As relações fóricas auxiliam a progressão referencial do texto, pois integram cadeias coesivas (APÊNDICE H) que ajudam a manter, no foco da atenção dos interlocutores, conteúdos referenciais que expressam as versões produzidas sobre a coisas do mundo (as coisas de que falamos ou escrevemos) na atividade textual. Contribuem, portanto, para a construção da coerência textual, haja vista que indiciam efeitos de sentido a serem coconstruídos durante a interlocução mediada pelo texto.

Os pronomes que integram as cadeias referenciais coesivas cumprem funções textuais importantes, pois indiciam os processos de referenciação acionados pelo locutor para “indicar ao(s) interlocutor(es), com a clareza que lhe pareça necessária, o indivíduo ou a coisa de quem ou de que se está falando” (ANTUNES, 2014, p. 137). São palavras que não exercem apenas funções sintáticas, pois, ao servirem de índices de referência das pessoas presentes e ausentes do discurso, fornecem também conteúdos semânticos e pragmáticos relevantes para a atividade interpretativa de construção dos sentidos do texto.