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COERÊNCIA TEXTUAL: UMA ATIVIDADE INTERPRETATIVA

2 COERÊNCIA TEXTUAL: “PEIXE VIVO, MAS QUE SÓ VIVE NO CORRER DA ÁGUA”

2.3 COERÊNCIA TEXTUAL: UMA ATIVIDADE INTERPRETATIVA

Marcuschi (2008, p. 121) entende que a coerência textual não é uma propriedade imanente do texto, ou seja, não traduz uma qualidade que pode ser diagnosticada em alguns exemplares de texto, e em outros, não. Por essa razão, a concebe como o resultado de uma atividade interpretativa do receptor (leitor ou ouvinte), que “atua sobre a proposta do autor”, para atribuir sentido ao texto. Com esse posicionamento, o referido autor alinha-se à proposta de Charolles (1983), para quem a coerência é um princípio de interpretablidade do discurso.

Mas o que se pode entender por “princípio de interpretabilidade do discurso”? Charolles (1983) concebe a coerência como algo pertinente a todas as ações humanas, um princípio considerado pelo homem no desenvolvimento de suas atividades cotidianas, como algo que o faz pensar nas suas ações como integrantes de um todo, pois na vida as ações humanas se sucedem, o que torna muito difícil pensá-las de forma isolada. Isto é: quando atua no mundo, o homem não realiza ações isoladas, mas sim sucessivas, fato que o leva a pensar, por exemplo, nas relações entre as ações realizadas, nas funções e consequências de cada uma delas, nas intenções e propósitos que as motivam.

Imaginemos, a título de exemplificação, uma situação cotidiana, como o preparo de um prato para o almoço. É lógico que a pessoa responsável pelo preparo desse prato terá que realizar ações sucessivas até atingir o objetivo desejado. Cada uma dessas ações terá uma representatividade dentre do todo (o alimento preparado, servido à mesa). Então é preciso pensar em coisas diversas, como no tipo de prato a ser feito, nos ingredientes, na preparação do alimento, na forma de servir etc. Tudo isso levará a realização de ações sucessivas,

norteadas por um princípio de atuação cuja função é possibilitar a continuidade dessa experiência humana.

No tocante ao discurso, que é entendido por Charolles (1983) como o resultado de uma série de atos de enunciação, a coerência medeia o relacionamento entre esses atos, favorecendo a articulação dos mesmos no âmbito da discursividade. Noutros termos: cada ato de enunciação assume significado em conformidade com o contexto de interação em que ele se realiza. Assim sendo, um pedido, por exemplo, só pode ser compreendido como um pedido durante a enunciação, pois é por meio dela que o ato enunciado encontra um coenunciador que o interpreta como um pedido, e não como uma ordem ou uma ameaça.

Nesse sentido, a coerência (ou construção de sentidos) é algo que se realiza no processo, durante a enunciação, entendida como o momento em que dois ou mais enunciadores interagem por meio da linguagem. Ela não está no discurso em si, mas se constrói pelo entendimento a que se chega por meio do discurso; ou seja, é pertinente ao processo de compreensão, e não algo próprio do que se diz. Isso significa dizer que coerência é ação que se realiza junto, em cooperação, e não uma característica pré-fabricada, que se constata objetivamente nos textos.

No âmbito da Linguística Textual, Koch (2007b) também assume essa ideia, pois considera que a coerência não constitui uma característica do texto em si. Para ela, a coerência representa uma construção feita pelo interlocutor, que relaciona elementos diversos (presentes ou não na superfície do texto), a fim de percebê-lo como uma configuração veiculadora de sentidos. Nesses termos, a construção da coerência representa uma ação processual, que se dá no momento da interação e depende do modo como o ouvinte ou o leitor percebe o texto. Para assumir esse ponto de vista, a autora concebe a linguagem:

[...] como “forma de ação, ação inter-individual finalisticamente orientada; como

lugar de interação que possibilita aos membros de uma sociedade a prática dos mais

diversos tipos de atos, que vão exigir dos semelhantes reações e/ou comportamentos, levando ao estabelecimento de vínculos e compromissos anteriormente inexistentes. Trata-se, como diz W. Geraldi (1991), de um jogo que se joga na sociedade, na interlocução, e é no interior de seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal jogo. (KOCH, 2007b, p. 7 e 8)

Em Koch (2007b), podemos ver a adoção de uma visão sociointeracionista de linguagem, assumida a priori por Bakhtin (2006), que, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, apresenta uma teoria sobre a língua, concebendo-a como resultado da interação humana. Com isso, o linguista russo defende que a relação entre linguagem e sociedade é indissociável, pois a língua se constrói, se desenvolve e se mantém viva por meio da interação verbal entre sujeitos sócio-historicamente situados. Sujeitos que dialogicamente se constroem,

entendendo a si, ao outro e ao mundo por meio da palavra, termo metaforicamente usado para dizer que, por meio da interação, é que se constituem linguagem, sentidos, sujeitos e processos de compreensão.

Marcuschi (2008, p. 61) atualiza a proposta de Bakhtin (1992), adotando uma perspectiva “textual-interativa” de língua. Essa atualização possibilita-lhe formular concepções de língua, de sujeito, de texto e de sentido que justificam a opção, já aqui assinalada, por conceber a coerência como uma atividade interpretativa que se dá na interlocução, no processo de compreensão mediado pelo texto. Um processo que, na perspectiva marcuschiana, também é social, pois traduz um esforço dialógico de entendimento conjunto, “que se dá na relação com o outro.” (MARCUSCHI, 2008, p. 256).

Entender a língua numa perspectiva textual-interativa significa concebê-la como atividade que envolve aspectos sociais, históricos, cognitivos, interacionais e intersubjetivos. Portanto, ela não denota um sistema subjetivo, que emerge da mente dos falantes; tampouco abstrato, que resulta de um conjunto de normas aprioristicamente definidas. A língua é um fenômeno que se constitui no seio de práticas sociais historicamente situadas e sensíveis à realidade, por isso é heterogênea, variada e variável. Então, o interesse sobre a língua não deve se circunscrever à imanência de suas possíveis formas, pois se faz necessário, sobretudo, visar ao seu funcionamento na sociedade, possibilitando a análise de textos e de discursos.

E visar ao funcionamento da língua em sociedade suscita outra necessidade: a de compreender a relação que se entremeia entre ela e os sujeitos que a acionam no dia a dia de suas interações verbais. Como esses sujeitos produzem/compreendem sentidos? Essa é, por exemplo, uma preocupação que se deve ter em qualquer trabalho com a linguagem. A perspectiva em tela não os vê como indivíduos de carne e osso que manuseiam, de forma intencional e consciente, a língua, porque a linguagem não é transparente; também não admite a proposta de assujeitamento do sujeito, segundo a qual, o indivíduo age sempre como um porta-voz de outrem; nem concorda que o sujeito seja apenas fruto de sua inscrição na história e no inconsciente.

Consoante essa perspectiva, o sujeito é clivado, posto que se divide entre linguagem e história. Não possui liberdade plena, mas também não é simplesmente o resultado de determinações externas. Ele é intersubjetivamente constituído, melhor dizendo, define-se na relação com o outro. Isso significa dizer que “o sujeito não é a única fonte do sentido, pois ele se inscreve na história e na língua.” (MARCUSCHI, 2008, p. 70). Por isso, sempre produz sentidos situados, dependentes do lugar que ocupa no discurso, das formas e dos projetos do

dizer, das relações que tece com o outro e do funcionamento sociocognitivo e histórico da língua.

A partir dessas concepções de língua, sujeito e sentido, Marcuschi (2008) propõe que o texto seja entendido como unidade máxima de funcionamento da língua, de natureza funcional, haja vista que se presta às interações estabelecidas pelos sujeitos em contextos sócio-historicamente definidos. Não se trata de um produto configurado a partir de critérios de boa formação textual, e sim de “um evento comunicativo em que convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas” (BEAUGRANDE, 1997, p. 10 apud MARCUSCHI, 2008, p. 72). Se é um evento, então é uma realidade linguística, porém possui uma característica peculiar: a sua constituição se dá em processo, durante o qual as decisões são conjuntas.

A textualidade, então, não é concebida como uma qualidade do texto, ou como aquilo que faz de uma sequência linguística um texto, mas sim como o resultado da interação. Isto é: para que um artefato linguístico funcione como texto (assuma textualidade), é preciso que alguém o processe com essa finalidade. E é durante esse processo (textualização, ou ação de textualizar) que a proposta de sentido pode se completar: “Um texto é uma proposta de sentido e ele só se completa com a participação do seu leitor/ouvinte.” (MARCUSCHI, 2008, p. 94). A completude dessa proposta dependerá da discursividade, da inteligibilidade e da articulação que ela puser em cena.

Por essa razão, a perspectiva marcuschiana aborda coerência como uma atividade interpretativa, e não como uma qualidade intrínseca do próprio texto. Uma atividade interpretativa que se realiza pelo acionamento de algumas ações conjuntas: providencia a continuidade de sentido no texto; relaciona tópicos discursivos favorecendo um entendimento global; relaciona conhecimentos sociais, linguísticos e contextuais para promover a construção situada de sentidos; proporciona a cooperação entre sujeitos sócio-historicamente definidos; inscreve o texto na cultura, na história e na sociedade; possibilita a discursividade, a textualização e, por conseguinte, a compreensão.

Além disso, cumpre-nos dizer que a coerência constrói sentidos de maneira global, relacionando aspectos diversos. É uma atividade realizada, sobremaneira, pelo ouvinte ou leitor, que, a partir das pistas deixadas pelo autor, tenta compreender o texto. Nessa tentativa, as operações de coesão textual costumam ser acionadas “como primeiros indicadores interpretativos” (MARCUSCHI, 2008, p. 121). No entanto, não se deve entender que a coesão seja responsável pela coerência do texto, ou que os recursos de coesão usados no texto sejam necessários ou suficientes para a construção da coerência textual. Esses recursos, quando

existem, podem facilitar a compreensão, mas eles não são definidores da coerência, tampouco da textualidade.