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6 APROFUNDANDO A ESCUTA: TEXTOS E CONCEPÇÕES

6.1.4 Partículas interestelares

Com o intuito de aprofundar esse diálogo, propusemos também, conforme já dissemos, a leitura de um artigo de divulgação científica escrito por Otávio Cohen e publicado no Blog Supernovas. Para a escolha desse artigo, consideramos duas questões centrais: as estratégias de reformulação usadas pelo enunciador para recontextualizar o conhecimento divulgado e a presença de articuladores textuais. As estratégias de reformulação inserem-se no quadro da progressão referencial do texto, e os articuladores contribuem para a progressão sequencial (ou sequenciação).

Na esfera sociodiscursiva da divulgação científica, em que as atividades de linguagem visam à popularização dos trabalhos de pesquisa, o escritor costuma mobilizar estratégias de reformulação de objetos de discurso, para recontextualizar o conhecimento, adaptando-o às “identidades sociais” incorporadas por esses gêneros (ZAMPONI, 2013, p. 176). Como quem fala nesses textos geralmente não é um cientista especializado, e aquele a quem o locutor se dirige também não é um especialista no assunto, as estratégias reformulativas cumprem a função de recontextualizar o conhecimento.

Com isso, a progressão referencial nesses gêneros de texto costuma revelar a intenção do escritor em apresentar informações complexas de forma mais compreensível para seus possíveis leitores. Isso evidencia que o perfil do leitor influencia a elaboração do texto e a escolha de seus recursos coesivos, pois: “Cada gênero do discurso em cada campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário que o determina como gênero.” (BAKHTIN, 2003, p. 301).

No artigo de Cohen, essa intenção pode ser comprovada pelas estratégias usadas para reativar parte de um referente que aparece no título do texto, sob a forma nominal predicativa “partículas interestelares”. Para tornar mais compreensível o sentido sugerido por “interestelares”, o escritor reativa essa informação, criando um novo referente: “A distância entre uma estrela e outra”. O texto progride e, para tonar a informação ainda mais acessível, o locutor diz: “Esse vazio enorme”. Recorre, portanto, a uma descrição definida que reformula “interestelares”, apresentando essa informação numa linguagem bem próxima do público leitor do site da revista em que o artigo foi divulgado, constituído geralmente por jovens e adolescentes.

Esse mesmo tipo de estratégia permite a recategorização do objeto que faz referência ao produto da descoberta científica noticiada. Visando à compreensão de seus leitores, o locutor opta por reformular o referente “partículas interestelares raríssimas”, reconstruindo-o no percurso da progressão textual. Na segunda linha do texto, esse referente é reativado e apresentado sob a forma de uma construção oracional predicativa: “As partículas que estão lá, soltas no vácuo”. Em seguida, reaparece sob a forma de descrições definidas: “O conjunto dessas partículas”, “desse material espacial” e “os objetos mais desafiadores”.

Assim, o locutor cria cadeias referenciais coesivas que promovem a recontextualização do conhecimento divulgado, tornando-o mais compreensível para o leitor. Para a construção dessas cadeias, leva em consideração os conhecimentos comuns que pressupõe compartilhar com os interlocutores. Atua, portanto, de forma situada, pois considera o contexto social, as finalidades dos usos da língua e os papeis sociais dos interlocutores, desenvolvendo processos de designação por meio da língua, que são consubstanciados não somente por operações linguísticas, mas também por atividades “de construção colaborativa” (ZAMPONI, 2013, p. 173) de recursos expressivos e de seus efeitos de sentido.

A língua, nesse contexto, representa “um tipo de ação conjunta” (CLARK apud ZAMPONINI, 2013, p. 172), e as estratégias de reformulação denotam a intenção do locutor de construir versões do conhecimento que sejam compreendidas pelos sujeitos com os quais interage. A cada reformulação, o leitor é convidado a participar ativamente do processo de coconstrução referencial, fato que evidencia o caráter intersubjetivo e colaborativo da coesão textual.

Por essa razão, acionamos o texto de Cohen durante o nosso terceiro momento de entrevista, a fim de perceber se os sujeitos da nossa pesquisa, ao falarem de coesão a partir da leitura de um texto de divulgação científica, comentariam a natureza processual e intersubjetiva dos fenômenos coesivos instaurados por processos de referenciação, indiciando

uma visão de texto como evento; ou se apenas abordariam a questão da retomada referencial, sugerindo-nos uma adesão à noção de texto como produto.

Koch (2009b, p. 121) argumenta que a construção de um texto envolve “dois grandes movimentos, um de retroação e outro de prospecção”. Esses movimentos inserem-se no processamento cognitivo-discursivo do texto, colocando os sujeitos em constante negociação de sentidos. Na atividade de referenciação, tais movimentos são constantes, haja vista as atividades de reconstrução de objetos de discurso na tessitura textual, como as estratégias de reformulação comentadas ab anteriori, em que novos objetos de discurso são construídos, fazendo o texto progredir e, ao mesmo tempo, mantendo algum tipo de associação (por referenciação direta ou indireta) com outros referentes postos no texto, ou inferíveis a partir dele.

Além dos processos de referenciação, outros procedimentos podem favorecer o movimento de progressão textual, como as diversas estratégias de progressão temática, de continuidade tópica e de encadeamento de segmentos textuais. Como, nos momentos anteriores de entrevista, os sujeitos de nossa pesquisa falaram sobre as funções coesivas dos conectivos5, resolvemos aprofundar esse diálogo e, para isso, fizemos um levantamento dos recursos linguísticos acionados para promover o encadeamento de segmentos textuais distintos no artigo escrito por Otávio Cohen (APÊNDICE F).

Para o levantamento desses recursos e a realização de suas respectivas análises, consideramos a proposta classificatória de Koch (2009a; 2009b). Respaldando-se numa visão sociocognitivo-discursiva de língua, essa pesquisadora considera que o uso dos articuladores textuais (ou conectivos, conforme os dizeres de nossos sujeitos de pesquisa) constitui uma estratégia de processamento textual que demanda dos sujeitos leitores e produtores de textos a realização de escolhas entre o conjunto de recursos expressivos que a língua nos oferece.

Não se trata, pois, de uma operação que depende única e exclusivamente do código da língua, pois os sujeitos do processamento textual, como seres ativos e dinâmicos, operam escolhas de acordo com suas intenções sociodiscursivas, com os contextos de interação e com a natureza dos seus projetos de dizer. Sob a perspectiva do produtor do texto, a escolha desses recursos implica uma série de conhecimentos sobre os conteúdos que se pretende relacionar, as funções discursivo-argumentativas desejadas e as avaliações realizadas sobre a própria enunciação. No que se refere ao leitor, entendido como coconstrutor do texto, os articuladores

textuais atuam como pistas indiciadoras de sentidos que vão além do conteúdo proposicional expresso pelos trechos que unem.

No tocante à progressão textual, os articuladores exercem, segundo Koch (2009b), funções variadas, pois podem:

[...] relacionar elementos de conteúdo, ou seja, situar os estados de coisas de que o enunciado fala no espaço e/ou no tempo, bem como estabelecer entre eles relações do tipo lógico-semântico; podem estabelecer relações entre dois ou mais atos de fala, exercendo funções enunciativas ou discursivo-argumentativas; e podem, ainda, desempenhar, no texto, funções de ordem meta-enunciativa. (KOCH, 2009b, p. 133)

Com base nessas funções, a pesquisadora propõe que os recursos responsáveis pelo encadeamento de segmentos textuais distintos podem ser classificados da seguinte forma:

- articuladores de conteúdo proposicional, em que se incluem os marcadores de relações espácio-temporais e os indicadores de relações lógico-semânticas (condicionalidade, causalidade, finalidade ou mediação, oposição/contraste, disjunção);

- articuladores enunciativos ou discursivo-argumentativos, que, além das relações de sentido que introduzem (contrajunção, justificativa, explicação, generalização, disjunção argumentativa, especificação, comprovação etc), indiciam a orientação argumentativa dos trechos que iniciam;

- articuladores metaenunciativos, que denotam reflexividade sobre a própria atividade de linguagem, evidenciando comentários avaliativos do enunciador sobre a própria enunciação.

A partir dessa proposta classificatória, fizemos uma leitura cuidadosa do artigo de Cohen, a fim de verificar os diversos articuladores presentes no texto. Depois realizamos uma análise de alguns dos articuladores encontrados, identificando as funções que eles exercem na progressão textual e informando as suas classificações (APÊNDICE F). Esse exercício nos permitiu construir uma visão mais completa sobre o funcionamento dos articuladores na tessitura do texto analisado. Assim nos preparamos para conversar com as professoras participantes de nossa pesquisa sobre as funções coesivas desses recursos da língua.

Pretendíamos com isso compreender se, ao falarem dos conectivos6 como recursos propiciadores da coesão textual, as professoras manifestariam uma concepção gramatical, resumindo-os à função de unir termos; ou se demonstrariam conhecer as funções discursivo- argumentativas e enunciativas desses recursos linguísticos. Consideramos o artigo de Cohen bastante oportuno para consubstanciar esse tipo de diálogo devido à variedade de recursos de

sequenciação que esse texto apresenta, com ocorrências que exemplificam as diversas categorias de articuladores textuais estudados por Koch (2009 b), conforme se pode constatar no levantamento que fizemos (APÊNDICE F).