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3 COESÃO TEXTUAL: “DECRIFA-ME OU TE DEVORO”

3.1 ABORDAGEM FUNCIONALISTA DE HALLIDAY E HASAN

Halliday & Hasan (1976, p. 1) concebem o texto como “[...] a unit of language in use”1, definida pelo seu conteúdo semântico; diferente, pois, de uma unidade de forma, como frases, orações e sentenças. Uma diferença que não se respalda em aspectos relacionados à extensão dessas unidades, mas nos seus modos de realização e nas suas funções linguísticas. Nessa linha de raciocínio, frases e sentenças são consideradas unidades gramaticais, que servem ao linguista para pesquisar a competência do falante de organizar estruturalmente os enunciados; já os textos são unidades “[...] of a different kind” (HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 2)2, que evidenciam a funcionalidade da língua em uso, atestando a competência do falante para fazer a língua funcionar e, com isso, interagir verbalmente.

Com base nisso, desenvolvem um estudo funcional3 do texto, evidenciando suas características distintivas, a fim de elucidar como os recursos linguísticos são funcionalmente acionados para conferir textualidade a um conjunto de palavras. Notadamente, assumem que a principal característica do texto é a sua natureza semântica, definindo-o como um todo unificado em torno de um significado que propicia o entendimento entre os usuários da língua. Por essa razão, o foco dos referidos autores é o estudo da língua em uso, do texto em função, deixando de lado a preocupação central da Linguística até então, que era o estudo da competência do falante “para a organização gramatical de frases” (NEVES, 2011, p. 18).

Os autores de Cohesion in English argumentam que os falantes de uma língua são capazes de perceber a diferença entre um texto – “a unified whole” (HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 1)4 – e um não texto – “a disconnected sequence of sentences” (HALLIDAY &

1 “[...] uma unidade da língua em uso.” (Tradução nossa)

2 “[...] de um tipo diferente.” (Tradução nossa)

3 Segundo Neves (2011, p. 17), os modelos funcionalistas de estudo da língua priorizam os “fins a que servem as unidades linguísticas, o que é o mesmo que dizer que o funcionalismo se ocupa, exatamente, das funções dos meios linguísticos de expressão”. A autora salienta que, em Halliday (1995 apud NEVES, 2011, p. 18), o termo “função” assume um sentido particular, a saber: “o papel que a linguagem desempenha na vida dos indivíduos, servindo aos muitos e variados tipos universais de demanda”.

HASAN, 1976, p.1)5. Essa percepção advém dos conhecimentos que os falantes desenvolvem, ao longo da vida, sobre a língua e sobre as funções que o sistema linguístico desenvolve nas interações verbais cotidianas, favorecendo a comunicação interpessoal. Por isso, sugerem que existem fatores objetivos que tornam possível distinguir um texto de um não-texto (palavras reunidas aleatoriamente sem um sentido unificado). Esses fatores são assegurados pela funcionalidade que os itens e outros aspectos da língua exercem textualmente, considerando o contexto e a situação comunicativa, para constituir textura (textualidade).

Dentre esses fatores, destaca-se a coesão textual, que é definida da seguinte forma: “The concept of cohesion is a semantic one; it refers to relations of meaning that exist within the text, and that define it as a text.” (HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 4)6. Essas relações de sentido são tecidas textualmente quando a interpretação de um item da língua presente na superfície textual depende de outro item nela presente, isto é, um item (pressuponente) integra-se a outro (ao seu pressuposto), que fornece o sentido para a interpretação do primeiro. Noutros termos: as relações coesivas evidenciam elos visíveis na superfície do texto, que são criados por itens da língua unidos por um sentido comum. Em decorrência disso, consideram que a noção de elo representa adequadamente a natureza das relações coesivas, porque os itens dessas relações unem-se em torno de um significado comum, compartilhado entre eles.

O conceito de textura (textualidade) expressa, nessa abordagem, a propriedade daquilo que é textual; ou seja, um conjunto de palavras configura-se texto quando apresenta textualidade; ou seja, quando funciona como um todo unificado, pleno de sentido, que se relaciona a um contexto e serve à comunicação interpessoal. A coesão exerce função essencial nesse processo, sendo um dos principais fatores responsáveis pela textualidade e, portanto, um aspecto definidor daquilo que é textual. É ela que garante o estabelecimento de relações semânticas entre diversas partes do texto, tanto no nível da estruturação interna da sentença, quanto no relacionamento entre sentenças distintas de um mesmo parágrafo, e até mesmo entre parágrafos diversos de um mesmo texto.

Para Halliday & Hasan (1976, p. 5), “Cohesion is part of the system of a language”7, pois se expressa nos estratos de codificação desse sistema: no semântico, que viabiliza as relações de significado entre itens da língua presentes no texto; no léxico-gramatical, que

5 “uma sequência desconectada de sentenças” (Tradução nossa)

6 “Um conceito semântico que diz respeito às relações de sentido que existem dentro do texto e que o definem como tal” (Tradução nossa)

materializa as formas da língua indiciadoras das relações de significado pretendidas; e no fonológico-ortográfico, que permite a expressão dessas formas em modalidades distintas de uso da língua (na oral e na escrita). Nessa lógica, a organização por estratos do sistema linguístico possibilita a realização de elos coesivos no texto, pois os significados (nível semântico) são codificados como formas (nível léxico-gramatical), que se recodificam como expressões (nível fonológico-ortográfico).

Os autores dão ênfase à característica semântica da coesão, na tentativa de que esse aspecto da textualidade não seja confundido com questões estruturais implicadas na organização de frases, orações, períodos e parágrafos presentes na superfície textual; uma vez que, se essas questões estruturais são importantes para a organização dos constituintes internos do texto, não menos importantes são as possibilidades semânticas advindas dos elos coesivos que consubstanciam uma gama de relações no intratexto, tornando-lhe um todo unificado, possível de viabilizar o entendimento entre os falantes. Dizendo de outro modo: são as relações coesivas que possibilitam ao texto funcionar como unidade semântica, porque vão além dos limites estruturais de frases, orações, períodos e parágrafos, integrando os sentidos do texto como um todo, o que lhe garante unidade e possibilita a sua interpretação pelos falantes.

Nessa tarefa, os itens da língua (palavras e expressões) exercem função precípua; por essa razão, os autores consideram que “Cohesion is expressed partly through the gramar and partly through the vocabulary.” (HALLIDAY & HASAN, 1976, p. 5)8, fato que os leva a admitir que a coesão pode ser gramatical e/ou lexical. Com essa distinção, não pretendem enfatizar que a coesão seja um aspecto formal do texto, pois sua principal característica está ligada à semanticidade que imprime à tessitura textual.

Trata-se de uma distinção que se alinha à própria natureza do componente semântico da língua, que se manifesta por intermédio do componente léxico-gramatical; isto é, os sentidos são emitidos por palavras gramaticalmente organizadas para um determinado fim. Portanto, tanto as palavras quanto as suas formas de organização no texto são responsáveis pelas possibilidades semânticas que dele emanam, daí ser pertinente considerar a coesão como um aspecto da textualidade que se manifesta léxico-gramaticalmente. Em decorrência disso, o estudo da coesão textual deve levar em conta as diferentes possibilidades ofertadas pelo sistema da língua para criar recursos semânticos no interior do texto, mediante a construção

de laços coesivos que podem ser categorizados em cinco tipos diferentes: a coesão por referência, por substituição, por elipse, por conjunção e a coesão lexical.

A coesão por referência, por substituição e por elipse são considerados tipos coesivos que tecem elos de natureza gramatical, pois expressam sentidos mais gerais. A coesão lexical, como o próprio nome já sugere, é considerada um tipo específico de elo coesivo, em que o léxico torna possível a emissão de significados mais específicos, criando associações entre palavras que possuem algum tipo de aspecto semântico comum. A coesão por conjunção realiza-se na fronteira entre gramática e léxico, haja vista que organiza a textualidade, proporcionando ligações estruturais entre partes do texto, tecidas por coordenação ou por subordinação, e aciona elementos do léxico para explicitar as relações de sentido existentes entre as partes interligadas.

A coesão por referência costuma ocorrer quando a interpretação de um item da língua presente na superfície do texto não depende do sentido autônomo deste item, mas da sua relação com outro elemento (com o seu referente), visível no texto ou compreendido pelo contexto. Isto é: o termo coesivo não pode ser interpretado semanticamente por si próprio, sendo necessário recorrer a outro termo (ao seu referente) para que a interpretação semântica do elemento coesivo seja possível.

Dependendo do lugar onde se encontre o elemento que fornece a interpretação ao item coesivo, a referência pode ser exofórica (situacional) ou endofórica (textual). Ela é exofórica quando o referente está fora do texto, no seu contexto situacional; e endofórica, quando o referente pode ser encontrado no intratexto, entre os itens que compõem a superfície textual. Assim sendo, os referentes sinalizam ao leitor o sentido dos itens coesivos, evidenciando laços indiciadores de relações semânticas entre diferentes termos presentes no texto.

Neste tipo de coesão, o leitor é levado a realizar movimentos de idas e vindas no texto, para recuperar o sentido da forma coesiva. Na referência endofórica, tais movimentos podem ser retrospectivos, quando o referente encontra-se anteposto à forma coesiva (elemento anafórico); ou prospectivos, quando o referente encontra-se posposto à forma coesiva (elemento catafórico). Na referência exofórica, o item referencial não leva o leitor a outro elemento ou informação presente na superfície do texto, mas sim a uma referência do contexto situacional, que deve ser interpretada pelo leitor para assegurar a unidade de sentido ao texto, um requisito para a sua textualidade. Halliday & Hasan (1976) salientam ainda que a referência pode ser pessoal (exercida por pronomes), demonstrativa (realizada por pronomes demonstrativos e advérbios de lugar) e comparativa (efetuada por similaridades, identidades e diferenças).

A substituição e a elipse são consideradas tipos coesivos similares. A substituição realiza-se pela retomada de um termo por outro, tecendo, dessa forma, elo entre termos; diferentemente do que ocorre com a coesão por referência, em que o elo se dá entre significados. A elipse, por seu turno, permite a omissão de um termo que pode ser facilmente identificado na superfície textual. Para Halliday & Hasan (1976, p. 89), tanto a substituição quanto a elipse envolvem o mesmo processo de tessitura de elos coesivos; por isso a elipse pode ser considerada uma forma de substituição por zero. No entanto, ambas acionam mecanismos distintos para se realizarem textualmente.

A substituição realiza-se pelo estabelecimento de uma relação gramatical entre o termo substituído e o seu substituto, o que evidencia uma reformulação da forma de dizer, e não uma alteração de sentido. De acordo com a função exercida pelo termo substituído no texto, a substituição pode ser classificada em subtipos: nominal, verbal ou sentencial. O mecanismo gramatical envolvido na coesão por elipse difere-se daquele envolvido na coesão por substituição, pois, quando se trata da elipse, o locutor deixa de dizer algo, omitindo-o; exigindo do leitor a pressuposição do não-dito. Pelo mecanismo da elipse, pode-se omitir um termo nominal, um verbo, ou locução verbal, e até mesmo uma sentença, sem comprometer a unidade de sentido do texto.

A coesão por conjunção, que envolve a gramática e o léxico da língua, cria elos entre partes do texto (entre orações, períodos e parágrafos) pelo acionamento de elementos de ligação (as conjunções); as quais, por si mesmas, não atribuem sentidos aos trechos que interligam, mas explicitam as relações de sentido que há entre esses trechos. Tais relações podem ser semanticamente variadas, indicando adição, adversidade, causa, tempo, condição etc. Na visão funcionalista de Halliday & Hasan (1976, p. 321), a coesão por conjunção diferencia-se dos demais tipos de coesão porque não pressupõe relações fóricas entre as partes que conectam, ou seja, não suscitam a recuperação de outra informação presente no texto. Além disso, não se pode evidenciar identidade referencial nem de significação entre os trechos ligados pelos conectores.

A coesão lexical materializa-se textualmente pela seleção do vocabulário com o qual se produz o texto. Esse tipo de coesão envolve dois mecanismos: a reiteração e a colocação. A reiteração consiste na repetição da informação semântica de um termo pelo acionamento de um item lexical de sentido mais geral (termos genéricos), de um sinônimo, quase sinônimo ou hiperônimo. A colocação diz respeito à associação de itens lexicais que possuem identidade entre si, como palavras de um mesmo campo lexical, por exemplo.

Os cinco tipos de coesão textual estudados por Halliday & Hasan (1976) demonstram a preocupação dos autores com as funções exercidas pelos itens na língua na consubstanciação de relações semânticas que atribuem unidade de sentido a um texto, tornando-lhe um todo unificado, possível de mediar o entendimento entre os falantes da língua. Em síntese, revelam a percepção desses pesquisadores acerca das funções que os itens da língua exercem nos usos (textos em funções) por meio dos quais o sistema linguístico viabiliza as interações verbais entre os falantes.

Com esse estudo, os autores contribuíram, significativamente, para o avanço das pesquisas sobre o texto, fornecendo um aparato teórico-analítico minucioso acerca dos aspectos linguísticos responsáveis pela tessitura de relações coesivas. Como a preocupação central incide na funcionalidade da língua, ainda vista como sistema, a abordagem da coesão textual em voga, embora considere as relações entre contexto, pragmática e sistema linguístico, prioriza as relações visíveis na superfície material do texto. Dizendo de outra forma: as relações coesivas estudadas por Halliday & Hasan (1976) priorizam os componentes visíveis na superfície textual.