• Nenhum resultado encontrado

6 APROFUNDANDO A ESCUTA: TEXTOS E CONCEPÇÕES

6.2 CONCEPÇÕES SOBRE COERÊNCIA

6.2.1 Coerência como unidade de sentido

Eterna Aprendiz (20 out. 2014) demonstrou conceber que a coerência textual representa a unidade de sentido do texto, uma característica que se consegue pela mobilização de recursos semânticos, linguísticos e composicionais. Nessa concepção, a coerência constituiria uma propriedade que torna o texto inteligível, possível de ser compreendido pelo leitor. Dotado dessa qualidade, o texto torna-se coerente e pode funcionar como meio de interação social entre os interlocutores. Por isso, o falante/escritor deve cumprir alguns critérios para conferir legibilidade ao texto que produz. Segundo a professora, dentre esses critérios, destacam-se:

- a continuidade semântica, que pode ser cumprida pelo acionamento de estratégias de manutenção temática;

- o encadeamento lógico das partes do texto, que pode ser alcançado pela seleção adequada de marcas linguística de conexão;

- a organização da estrutura textual, que pode ser obtida pela observância da estrutura composicional do gênero.

Esses critérios - conforme foram abordados por Eterna Aprendiz (20 out. 2014), ou seja, como necessários a uma boa formação textual - expressam uma visão de texto como

produto. Além disso, revelam que a qualidade da coerência é atribuída ao texto no momento de sua produção, sendo, portanto, uma responsabilidade do sujeito autor. Por essa razão, o professor que visa à formação de sujeitos leitores e produtores de textos precisa mobilizar esforços para que os alunos assimilem os critérios supra referidos, por meio dos quais podem se tornar aptos a perceber, durante a leitura, a coerência dos textos, como também a produzir textos coerentes.

Nos estudos desenvolvidos pelos linguistas do texto, a noção de unidade de sentido possui significado diferente daquele em que se funda a concepção dialogada por Eterna Aprendiz. Na concepção dessa docente, essa unidade de sentido representa um atributo intrínseco do texto, que, configurado como artefato linguístico, deve apresentar sentidos estabilizados, para que seja coerente. Já Koch e Travaglia (2011) argumentam que a noção de unidade de sentido não diz respeito a um atributo do texto em si, mas à possibilidade de se estabelecer, a partir do texto e nos momentos de interação, uma configuração veiculadora de sentidos.

Nesses termos, enfatizam que não se deve deduzir que “a coerência tenha a ver com a superfície linguística do texto” (KOCH & TRAVAGLIA, 2011, p. 14), pois ela é global; ou seja, representa uma possibilidade de sentidos que se constrói durante a interação, sendo, pois, uma construção que se processa online. Esse processamento costuma envolver considerações pragmáticas relacionadas ao tipo de ato de fala (uma asserção, uma ordem, um pedido, um convite etc.) que o texto representa, fatores socioculturais associados aos sujeitos da interação verbal, questões linguísticas relacionadas às escolhas operadas pelos sujeitos para concretizarem seus projetos de dizer, como também os aspectos sociocognitivos associados ao mundo representado no texto e aos conhecimentos de mundo dos interlocutores.

Eterna Aprendiz (20 out. 2014), no entanto, demonstrou que a coerência tem a ver, sobretudo, com a superfície linguística. Por essa razão, afirmou que a forma de organização dos elementos constituintes dessa superfície torna-se responsável pela inteligibilidade do texto, pois, quando o produtor não considera os critérios de boa formação textual (continuidade semântica, encadeamento lógico das partes do texto e organização da estrutura textual), o texto pode se apresentar incoerente; ou, no mínimo, sua coerência pode ficar obscura para o leitor.

Para ilustrar isso, a professora comentou a não sintonia entre o título e o conteúdo da crônica “Obesidade mórbida” (ANEXO A), salientando que, quando leu o título, criou expectativas de que o texto “falasse de gordura, de regime, de alimentação, de qualquer coisa assim” (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014); mas, como o texto contraria essa expectativa

de continuidade semântica, teve dificuldade para entendê-lo, de perceber a sua coerência. Outo aspecto que, a seu ver, prejudica a continuidade semântica na crônica é o fato de que, para discorrer sobre duas coisas distintas (a prática de beber água na torneira e o curso de tratamento para a tese), o locutor abre alguns parênteses, produzindo digressões que quebram a unidade de sentido do texto.

Diferentemente do que ocorre em “Sou um evadido”, de Fernando Pessoa (ANEXO C), que, segundo Eterna Aprendiz (20 out. 2014), embora seja um texto literário, no qual a liberdade de criar e de inventar seja maior, o poema mantém unidade de sentido, pois suas partes se complementam. Para EA (20 out. 2014), em cada estrofe do poema, é possível interpretar o sentido da evasão de que fala o texto: na primeira, o “eu poético” apresenta-se como um evadido; na segunda, justifica sua atitude de evasão; na terceira, demonstra como essa evasão ocorre; na última estrofe, apresenta o porquê de sua escolha, o porquê de ser um evadido. Nesses termos, defendeu que a ordenação das ideias confere unidade de sentido ao poema, fazendo com que sua coerência seja percebida pelo leitor.

Assim, na concepção dessa professora, a unidade de sentido teria a ver com a continuidade semântica entre as informações de um texto, pois, quando o autor relaciona conceitos que se complementam, sem apresentar contradições, ele consegue “atribuir clareza” ao que diz/escreve, produzindo um texto coerente (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014); isto é, um texto que faz sentido, pois suas partes se relacionam harmonicamente. Eterna Aprendiz (20 out. 2014) ainda nos disse que, para garantir esse tipo de continuidade, o autor pode selecionar alguns recursos de conexão (coesão textual), uma vez que esses recursos possibilitam um encadeamento lógico entre as partes do texto.

Para demonstrar pedagogicamente a relação entre coerência e o encadeamento lógico das partes do texto, EA afirmou que costuma dialogar com seus alunos sobre “alguns elementos da língua que existem em função das relações de sentido (causa e efeito, causa e consequência etc.) que podem ser tecidas na superfície textual” (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014). Mas salientou que é preciso saber que “gêneros textuais diferentes requisitam modos distintos de produção da coerência” (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014), afirmando que, em alguns gêneros, as relações semânticas entre trechos encadeados na superfície textual não precisam ser necessariamente explicitadas por elementos de conexão, já noutros, que requisitam um desenvolvimento mais linear da progressão temática, essas “marcas” de conexão são mais frequentes (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014), para que as relações semânticas entre trechos distintos fiquem explícitas.

Exemplificou isso dizendo que costuma demonstrar essa diferença em sala de aula, propondo aos alunos a transformação de um texto em verso, como um poema, em um texto em prosa, como um artigo de opinião, uma notícia etc. Em um poema, gênero normalmente escrito com “linguagem cifrada, quebrada” (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014), os elementos de conexão responsáveis pelo encadeamento das partes do texto não são tão frequentes, porém textos escritos em prosa, como as notícias, necessitam do uso desses elementos para que se estabeleça encadeamento adequado entre as orações, os períodos e até mesmo os parágrafos.

Dessa forma, Eterna Aprendiz expressou que compreende que a coesão por conexão seja necessária para a produção da coerência, para consubstanciar a unidade de sentido que caracteriza um texto como coerente, inteligível, possível de ser compreendido pelo leitor. Esse tipo de relação encontra respaldo nos estudos textuais fundados no argumento de que, embora outros fatores possam contribuir para a construção da coerência textual, não se pode esquecer de que ela é, primordialmente, linguística. São estudos que, em linhas gerais, defendem uma relação de interdependência entre coesão e coerência, pois:

[...] não há uma coesão que exista por si mesma e para si mesma. A coesão é uma decorrência da própria continuidade exigida pelo texto, a qual, por sua vez, é exigência da unidade que dá coerência ao texto.

[...]

Existe, assim, uma cadeia facilmente reconhecível entre continuidade, unidade e

coerência. De maneira que é artificial separar coesão e coerência, assim como é

artificial separar forma e conteúdo, ou sintaxe de semântica, por exemplo. O máximo que se pode dizer é que a coesão está em função da coerência, no sentido de que as palavras, os períodos, os parágrafos, tudo, qualquer segmento se interliga no texto para que ele faça sentido, para que ele se torne interpretável. (ANTUNES, 2005, p. 177)

Conforme se pode ver, Antunes (2005) argumenta que há relação direta entre continuidade semântica, unidade de sentido e coerência textual. Mas é importante destacar que, para essa pesquisadora, a continuidade semântica e a unidade de sentidos não representam qualidades textuais que se justificam per se. Decorrem da forma como processamos as informações e as arquivamos na memória, geralmente em “blocos congruentes”, e não de forma aleatória9. No processamento textual, tendemos a agir da mesma forma, pois interpretamos as informações ativadas pelo texto de acordo com a forma como armazenamos essas informações em nossa memória.

9 Esta questão é detalhada na próxima subseção, quando comentamos os modelos cognitivos globais estudados por Beaugrande & Dressler (1992), para analisar a concepção de coerência de Profissional de Fé.

Trata-se, portanto, de uma relação que se distingue substancialmente da concepção desenvolvida por Eterna Aprendiz, para quem a continuidade semântica representa um aspecto formal do texto, atingido quando o produtor organiza as informações de forma harmônica, associando-as semanticamente. Isso indicia que essa professora concebe o texto como um produto com sentido estabilizado, e a coerência como um atributo pré-configurado, por isso cabe ao leitor a compreensão de um sentido apriorístico, e não a realização de uma atividade que o possibilite agir como coconstrutor de sentidos. Nessa concepção, o leitor é entendido como um sujeito receptor de sentidos, a quem cabe perceber o significado global pré-definido no texto.

A noção de texto como produto cujo sentido é estabilizado foi ratificada por Eterna Aprendiz (20 out. 2014) quando ela abordou a adequação da estrutura textual como critério constitutivo da coerência textual. Nessa perspectiva de entendimento, os gêneros prescreveriam uma estrutura composicional típica, que deve ser obedecida, para que o texto tenha unidade de sentido. Embora a professora tivesse acionado uma terminologia usada por Bakhtin (2003), sua explicação sobre o que seja essa estrutura composicional não se sintoniza com o proposto pelo referido filósofo da linguagem.

Em Bakhtin (2003), a noção de gêneros do discurso não pressupõe estabilidade de estrutura nem de sentidos, pois se admite que os textos são heterogêneos, e que a atividade de compreensão requer uma resposta ativa do sujeito leitor, construída pela mobilidade desse sujeito e a partir das instabilidades dos discursos com os quais entra em contato. Para Geraldi (2010, p. 140), “um texto é sempre uma possibilidade dentre múltiplas possibilidades, mesmo consideradas as constrições da situação em que é produzido”. Por isso, os gêneros não pressupõem formas e valores fixos.

Quando o professor entende a noção de estrutura composicional como algo rijo, estável, ele está aderindo a uma política de fixação dos modos de dizer (GERALDI, 2010), que submete o aprendiz ao convívio com discursos estabilizados, para ratificar as estruturas sociais vigentes. Segundo a teoria bakhtiniana, os gêneros são apenas relativamente estáveis, porque geralmente se entrecruzam, assumindo outras características, renovando-se constantemente, para viabilizar novas possibilidades de dizer.

Por essa razão, a coerência não está no texto, ela surge como possibilidade no encontro do leitor com outrem, durante a interlocução. Como momento privilegiado de produção de linguagem e de constituição de sujeitos (GERALDI, 2010, p. 34), a interlocução possibilita encontro dialógico entre as palavras de um autor e as contrapalavras de um leitor, em que atitudes responsivas ativas são desenvolvidas, para coproduzir sentidos. Nesse processo, a

ordenação da estrutura textual não configura critério constitutivo da coerência, mas apenas uma escolha do sujeito produtor, dentre várias que faz, para ativar conhecimentos partilhados e, com isso, atingir seus objetivos durante a interação verbal.

Quando abordou a questão da estrutura textual, Eterna Aprendiz comentou que o texto coerente deve apresentar “as partes que o compõem” (ETERNA APRENDIZ, 20 out. 2014). Durante o quarto momento de entrevista (06 mar. 2015), ela ratificou a relação entre estrutura textual e coerência, comentando a evolução dos acontecimentos (situação inicial, conflito e resolução) no conto “Tentação”, de Clarice Lispector (ANEXO F), e a relação entre ideia central e argumentos no artigo de opinião de Adrilles Jorge (ANEXO E). Ao fazer isso, fez referência, ainda que indiretamente, à questão das estruturas esquemáticas estudadas por Van Dijk (2013, p. 30), ou “superestrutura do texto”, que dizem respeito à uma possível organização hierárquica e convencional dos textos em determinada cultura.

Segundo Van Dijk (2013), as superestruturas contribuem para a construção do significado global do texto, pois ativam conhecimentos que podem ser estrategicamente processados pelos usuários durante a interação discursiva. O leitor, por exemplo, ao conhecer a superestrutura convencional de um texto narrativo, pode agir estrategicamente buscando informações (quem, o que, onde, quando, como e por quê?) que o ajudem a compreender o sentido global do texto. Mas essa compreensão não é condicionada por critérios formais, pois envolvem, sobretudo, a ativação de modelos cognitivos socialmente construídos.

Quando comentou as produções textuais de seus alunos (ANEXOS G e H), Eterna Aprendiz (25 maio 2015) demonstrou valorizar a organização hierárquica e convencional dos textos como fator decisivo para a coerência. Embora tivesse admitido que não solicitou a produção de um gênero específico, mas de um texto argumentativo (definição abstrata a partir da tipologia), a professora disse que buscou, ao avaliar esses textos, uma superestrutura convencional, definida, por ela, como a apresentação de uma opinião clara, que deveria ser preservada na progressão textual, da seguinte forma: “apontar um tópico, emitir opinião sobre esse tópico e preservá-lo no desenvolvimento do texto” (ETERNA APRENDIZ, 25 maio 2015).

Além disso, EA (25 maio 2015) ratificou a relevância do encadeamento lógico para a produção da coerência textual, afirmando que a primeira produção (ANEXO G) representa um texto coerente, pois os estudantes ordenaram as ideias de maneira lógica, interligando-as adequadamente e, com isso, conseguiram transmitir com clareza a opinião que desejavam expressar. Já o segundo texto (ANEXO H) foi considerando incoerente, pois, em sua

progressão, há várias contradições, devido à ligação inadequada de suas partes, o que compromete a clareza do texto.

Eterna Aprendiz (25 maio 2015) assumiu, então, que há relação entre coerência textual e clareza, ratificando a ideia de Othon Moacyr Garcia (2012, p. 287), para quem a colocação das ideias numa ordem adequada e a interligação dessas ideias por conectivos e partículas de transição atribuem clareza ao texto, representando, por conseguinte, os dois principais fatores responsáveis pela coerência textual. Nesses termos, a coerência é entendida como uma qualidade configurada na superfície material do texto, desde que, nessa superfície, as informações sejam ordenadas adequadamente, para que a progressão temática não apresente contradições; e trechos distintos do texto apareçam interligados por palavras de ligação, para que haja encadeamento lógico entre segmentos textuais distintos.

Nessa perspectiva, Eterna Aprendiz demonstrou ter desenvolvido uma concepção formal acerca do fenômeno da coerência textual. Formal no sentido de representar uma qualidade apriorística do texto, definida em sua materialidade linguística pela ordenação lógica das informações que aparecem na superfície textual e pelo encadeamento lógico- semântico das diversas partes do texto (orações, períodos e parágrafos). Como qualidade textual, a coerência representaria um atributo que deve ser percebido pelo leitor ou buscado pelo autor; por isso, não pressupõe atividade coconstruída pelos interlocutores.