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COERÊNCIA E COESÃO: É POSSÍVEL RELACIONAR?

2 COERÊNCIA TEXTUAL: “PEIXE VIVO, MAS QUE SÓ VIVE NO CORRER DA ÁGUA”

2.5 COERÊNCIA E COESÃO: É POSSÍVEL RELACIONAR?

São distintas as interpretações acerca da relação entre coerência e coesão, conforme evidenciamos na primeira seção deste capítulo. De um lado, temos o posicionamento de Halliday e Hasan (1976), que, no momento sócio-histórico em que construíram suas proposições acerca da textualidade, estudando os tipos de coesão textual marcados na superfície textual, tomaram-lhes como determinantes da coerência. Por outro lado, temos Charolles (1983), que, atualizando suas ideias acerca da noção de coerência, concebendo-a como um “princípio de interpretabilidade do discurso”, propôs que a coesão não determina a coerência, ou seja, não traduz requisito necessário nem suficiente para a atividade cooperativa de construção dos sentidos de um texto.

Vários pesquisadores brasileiros buscam explicitar essa não-correlação proposta por Charolles (1983), evidenciando que a presença (ou não) de recursos de coesão na materialidade linguística do texto não constitui requisito ou empecilho para a atividade colaborativa de constituição da coerência. Para comprovar essa proposição, citamos:

O dia segue normal. Arruma-se a casa. Limpa-se em volta. Cumprimenta-se os vizinhos. Almoça-se ao meio dia. Ouve-se rádio à tarde. Lá pelas 5 horas, inicia-se o sempre.) (KOCH E TRAVAGLIA, 2011, p. 30)

O gato comeu o peixe que meu pai pescou. O peixe era grande. Meu pai é alto. Eu gosto do meu pai. Minha mãe também gosta. O gato é branco. Tenho muitas roupas branca. (KOCH E TRAVAGLIA, 2011, p. 30)

Segundo os autores supracitados, o primeiro texto quase não apresenta elementos coesivos, mas é coerente, pois é possível atribuir-lhe um sentido global: o leitor entende que se trata da narração de fatos que se sucedem durante um dia na vida de uma pessoa. Já o segundo texto seria incoerente, uma vez que, mesmo apresentando várias ocorrências coesivas (remissão predicativa, reiteração de itens lexicais, elipse etc.), não constitui uma unidade de sentido recuperável, o que impossibilita ou dificulta a sua compreensão por parte do leitor.

Os comentários acerca dos textos destacados acima podem sugerir a ideia de que a coerência seja uma qualidade intrínseca dos textos, o que, por conseguinte, leva a pressuposição de que os textos podem ser classificados como (in)coerentes. Esta não é a intenção dos autores em voga, os quais não assumem que a coerência condiga uma característica do texto. Na verdade, eles defendem que a coerência seja um fenômeno que se instaura no processo “que coloca texto e usuários em relação, numa situação dada” (KOCH E TRAVAGLIA, 2011, p. 39). Por conseguinte, defendem a seguinte posição: “não existe o texto incoerente em si, mas [...] o texto pode ser incoerente em/para determinada situação comunicativa.” (KOCH E TRAVAGLIA, 2011p. 38).

Ademais, é preciso destacar que, ao comentarem sobre os elementos coesivos, Koch e Travaglia (2011) ainda se prendem a um tipo de coesão que se verifica entre elementos presentes na superfície textual. Trata-se de uma concepção que não é ratificada pela Linguística Textual contemporânea, “de tendência sociocognitiva e interacional” (PINHEIRO, 2012, p. 793), cujos estudos sobre a progressão referencial e a progressão tópica demonstram que as relações coesivas (ou cadeias referenciais) podem ser construídas envolvendo associações e inferenciações entre elementos diversos, e não apenas entre os itens da língua presentes no cotexto. Mas, antes de explicarmos essa nova visão acerca da coesão textual, consideramos pertinente acionar outro exemplo, que foi usado por Antunes (2005), para argumentar sobre a relação entre coesão e coerência:

Subi a porta e fechei a escada.

Tirei minhas orações e recitei meus sapatos. Desliguei a cama e deitei-me na luz. Tudo porque

Ele me deu um beijo de boa noite...

Atuando como interlocutora, isto é, como leitora do texto em voga, Antunes (2005, p. 175-6) percebe-o como coerente e afirma que, embora as palavras estejam numa arrumação linear aparentemente sem sentido, é possível “[...] recuperar uma unidade de sentido, uma unidade de intenção”. Isso porque há informações contextuais e sociocognitivas, sugeridas pelo cotexto “Tudo porque/Ele me deu um beijo de boa noite”, que possibilitam ao leitor compreender o texto como a manifestação dos sentimentos experimentados pelo eu-poético após o recebimento de uma carícia, um beijo, da pessoa amada; e sociocognitivamente sabemos que as pessoas enamoradas costumam vivenciar sentimentos que as fazem experimentar sensações diferentes acerca das coisas do mundo, ou, como nos diz Antunes (2005, p. 175):

[...] o “sentido” do poema não está nos “sentidos” do que está explicitado. Está na

forma como as coisas foram ditas; melhor dizendo, está na desorganização da forma

como as coisas foram ditas. Tudo isso, para que se conseguisse dizer, de um jeito bem particular, que os amantes veem para além das aparências das coisas; que os amantes perdem o sentido unívoco das coisas; veem numa outra ordem; enxergam os significados mais obtusos; subvertem a ordem natural das coisas.

Com a análise do poema aqui transcrito, Antunes (2005) argumenta que a coerência textual tem a ver com intenções, com conhecimentos de mundo, com modos de dizer particulares (o projeto de dizer influencia a constituição da coerência), por isso não depende da gramática apenas. Isto é: não depende apenas da coesão superficial. Mas a referida autora também não deixa de considerar a relevância que a coesão exerce para a construção da coerência, pois é preciso ter em mente que, embora a coerência diga respeito a possibilidade de o texto mediar intenções entre interlocutores, favorecendo a comunicação, “[...] ela é, em primeira mão linguística.” (ANTUNES, 2005, p. 176)

Com essa posição, Antunes (2005) defende que a coesão auxilia a atividade interpretativa da coerência. Concordamos com esse posicionamento, mas consideramos que ele deve ser interpretado com cautela, a fim de evitarmos os seguintes equívocos: o linguístico não deve ser entendido como expressão de uma concepção imanente de língua, e a coesão textual não pode ser vista como uma propriedade que se manifesta tão somente pelas relações tecidas entres os elementos presentes na superfície textual, entre os itens da língua que compõem o texto.

Numa perspectiva sociocognitiva-interacionista, concebemos a língua como uma atividade social, intersubjetiva e ad hoc, que envolve operações lógico-semânticas, pragmáticas, sociocognitivas e intencionais, motivadamente desenvolvidas e cooperativamente situadas. Assim, atuar com a língua não pressupõe apenas a manipulação de um código previamente estabelecido; mas, sobretudo, convergir uma rede complexa de

atividades, que engloba conhecimentos diversos. Por isso, não entendemos coesão como propriedade “presa” à superfície do texto: as relações coesivas também dependem do contexto, de conhecimentos sociocognitivos diversos, de atividades de inferenciação, de associações complexas entre pistas textuais e modelos cognitivos (frames, esquemas, cenários) etc.

Vejamos, a título de exemplo, a função coesiva exercida pelo pronome “Tudo” no poema analisado por Antunes (2005). Trata-se de uma forma pronominal neutra que anaforicamente remete ao que foi dito antes. Contudo não executa apenas a retomada de um segmento prévio do texto, pois, ao fazer remissão ao conjunto de coisas ditas previamente postas na superfície textual, o pronome sumariza as informações, encapsulando-as; e concomitantemente as recategoriza3; ou seja, sugere novos sentidos para o dito, mediante a associação das informações dadas “Subi a porta e fechei a escada./Tirei minhas orações e recitei meus sapatos./Desliguei a cama e deitei-me na luz” com as informações novas “Tudo porque/Ele me deu um beijo de boa noite...”.

O acionamento do pronome “Tudo” sugere, portanto, o envolvimento de questões contextuais e sociocognitivas nos procedimentos de coesão textual. No texto em voga, a forma anafórica não apenas retoma um item (ou uma sequência de itens) anteposto na superfície textual, pois indica também a expressão de uma opinião sobre o dito, recategorizando-o como “coisas absurdas”; isto é, o locutor demonstra consciência de que as coisas ditas são aparentemente “sem sentido”, e o pronome indica esse tipo de apreciação, inserindo-se como síntese das coisas ditas “absurdas”, para associá-las a sua provável justificação. Noutros termos: o pronome, ao encapsular as informações precedentes, opera uma reconstrução de objetos-de-discurso, sociocognitiva e contextualmente construída, formando uma cadeia referencial (cadeia coesiva) que contribui para a construção dos sentidos do texto.

É nessa perspectiva que a tendência sociocognitiva e interacionista da LT vê a relação entre coerência e coesão - ambas concebidas como processos que envolvem o cotexto, o contexto, os sujeitos e os conhecimentos sócio-historicamente construídos - favorecendo um conjunto de atividades propiciadoras da construção textual do(s) sentido(s). Nessa relação, destacam-se as funções exercidas pela progressão referencial e pela progressão tópica para a atividade interpretativa da coerência.

3 Koch (2008) argumenta que os pronomes neutros atuam como expressões anafóricas, criando novos objetos-de- disurso, por meio da sumarização/encapsulamento de segmentos textuais.

Por isso, concordamos com Marcuschi (2008, p. 102), assumindo que “a coesão explícita não é uma condição necessária para a textualidade.”. Mas, como nem sempre a coesão é explícita, pois, em muitos casos, exige atividades inferenciais para relacionar elementos do texto ao contexto e/ou a conhecimentos de mundo; admitimos que a coesão é relevante para a constituição da coerência, haja vista que envolve processos de referenciação e de progressão tópica que contribuem para a atividade interpretativa da coerência. São processos que engendram o autor e seus leitores em atividades de coconstrução de sentidos, por isso, também se dão em interação, contribuindo, por conseguinte, para a atividade interpretativa da coerência textual.