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4 COMO UM ARTESÃO INTELECTUAL EM BUSCA DE COMPREENSÕES

4.2 ARGUMENTO DE PESQUISA

Os estudos contemporâneos desenvolvidos pelos linguistas do texto assumem uma visão não-referencial de língua (KOCH, 2009a; 2009b), entendida como meio de negociação de sentidos, de desenvolvimento de processos indiciadores de compreensões, de (re) construção do mundo e de produção de objetos discursivos para representar as interpretações que os falantes constroem acerca das coisas do mundo. Por isso, os usos da língua, que sempre ocorrem por meio de textos, pressupõem sujeitos em interação, que, intersubjetivamente e sociognitivamente, participam dos processos de linguagem, dos atos de interação verbal, realizando suas atividades pela leitura e produção dos gêneros textuais que circulam nas várias esferas da vida em sociedade.

Nessa perspectiva, a noção de coerência não diz respeito a uma “propriedade ou qualidade do texto” (KOCH, 2014, p. 183), pois o texto não é um produto pré-concebido, acabado. Ele se constrói como espaço de interação, em que sujeitos sociais realizam ações diversas (linguísticas, sociocognitivas, interacionais etc.), para participarem de eventos mediadores da compreensão intersubjetiva, que é sempre buscada pelos sujeitos quando participam de processos de textualização. Nesses termos, um texto interpretado como incoerente, numa dada situação de comunicação, pode não o ser em outra, porque a coerência não está no texto, ela é coconstruída pelos leitores durante a interação social. Em seus estudos sobre leitura e compreensão, Koch e Elias (2006, p. 184) ratificam essa ideia:

[...] a coerência não está no texto, não nos é possível apontá-la, destacá-la, sublinhá- la ou coisa que o valha, mas somos nós, leitores, em um efetivo processo de

interação com o autor do texto, baseados nas pistas que nos são dadas e nos conhecimentos que possuímos, que construímos a coerência.

As pistas e os conhecimentos a que se referem as autoras supra citadas advêm de fatores internos ao texto, como os itens da língua presentes na superfície textual; e de fatores externos, como o contexto sociopolítico e cultural em que se realiza a situação de interação verbal; o contexto sociocognitivo dos interlocutores, que envolvem conhecimentos, prévios, partilhados, enciclopédicos e de mundo; as especificidades da situação de interação (situacionalidade); conhecimentos sobre os gêneros de textos (conhecimento metagenérico), sobre outros textos (intertextualidade) e sobre os “movimentos cognitivo-discursivos que presidem à construção da trama textual” (KOCH, 2014, p. 182), como os processos de referenciação e sequenciação responsáveis pela coesão textual.

Como se vê, a construção da coerência depende do envolvimento do leitor com diversos aspectos alinhados ao texto, aos sujeitos da linguagem e às situações de interação em que processos de textualização medeiam as relações interpessoais. Não se trata de uma mera atividade de decodificação, mas de um processo amplo e complexo em que o leitor age como um “caçador de sentido” (DASCAL apud KOCH, 2014, p. 174), pois mobiliza componentes diversos para interpretar os significados do texto. Nessa linha de raciocínio, a construção da coerência depende da habilidade do leitor de relacionar texto, contextos e conhecimentos variados.

No que diz respeito à coesão, a pesquisas textuais contemporâneas desvendaram, por intermédio dos estudos de referenciação (MONDADA, 1994), novos processos de negociação de sentidos responsáveis por dois movimentos básicos na construção do texto: retrospecção e prospecção (KOCH, 2009b). Como os estudos de referenciação concebem o referente como uma construção discursiva, ou seja, um objeto de discurso que sintetiza a visão negociada dos sujeitos sobre as coisas do mundo, passou-se a conceber coesão como um fenômeno que transcende os limites do cotexto, englobando elementos contextuais, conhecimentos sociocognitivos e produção intersubjetiva de sentidos; ou seja, a coesão também é coconstruída pelos interlocutores (COSTA VAL, 2004).

Isso levou a descoberta de novos processos coesivos, antes não estudados pela Linguística do Texto, com destaque para a ampliação do significado da anáfora. Na teoria clássica elabora por Halliday & Hasan (1976), a anáfora era concebida como um fenômeno de retomada de informações ou de itens da língua antepostos na superfície do texto, um processo coesivo que pressupunha correferenciação entre o antecedente textual e o seu elemento anaforizante. Os estudos de referenciação pressupõem que nem todo procedimento anafórico

implica retomada e correferenciação, expandindo, portanto, o significado da anáfora para além das operações de retomada visíveis na superfície textual. Esse posicionamento suscitou a descoberta de novos processos anafóricos, como as anáforas indiretas e associativas, processos geradores de sentidos que envolvem os conhecimentos de mundo dos interlocutores e, consequentemente, contribuem para a atividade interpretativa da coerência textual.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais materializam a proposta de ensino de língua divulgada por Geraldi (1999), o interacionismo linguístico, por isso sugerem que o ensino da Língua Portuguesa nas escolas do Ensino Médio se paute numa concepção de linguagem como atividade discursiva e de texto como unidade básica de ensino. Nessa direção, recomenda que o trabalho em sala de aula acione grande variedade de gêneros textuais, a fim de levar os estudantes a refletirem sobre os usos da língua, seus recursos expressivos e suas formas de interação, visando ao desenvolvimento da competência comunicativa pelos estudantes.

Para que o professor consiga incorporar essas sugestões em suas práticas de ensino, é preciso que ele mantenha intenso intercâmbio com as descobertas das pesquisas realizadas no âmbito da Linguística do Texto, pois, com isso, terá condições de assimilar princípios, teorias e conceitos que fundamentam o entendimento do texto como evento de interação social; dos gêneros como formas de agir linguisticamente; e da língua como atividade sociodiscursiva cujo acionamento pressupõe sempre o outro. Além disso, é preciso que conceba coerência como atividade ad hoc por meio da qual o texto assume uma configuração de sentido, e coesão como fenômeno relacionado ao processamento textual que manifesta atuação conjunta dos interlocutores para a construção de processos geradores de sentidos na tessitura textual; haja vista que, entendidas assim, coerência e coesão podem suscitar práticas de ensino que visualizem o texto como processo de negociação de sentidos, e não como estrutura, produto encerrado no momento de sua produção.

Por essa razão, esta pesquisa toma como ponto de partida dois pressupostos básicos: - se o professor não conhece os novos estudos desenvolvidos pela Linguística Textual e ainda concebe coerência como qualidade intrínseca do texto, e coesão como manifestação de elos restritos à superfície textual; provavelmente este professor não consiga desenvolver práticas de ensino de leitura e produção textual centradas na negociação de sentido, no diálogo de compreensões; mas sim práticas que, embora aparentemente rotuladas de novas, de interacionistas, ainda se assentam numa visão prescritiva de língua, tratando o texto como estrutura ou produto pré-moldado pela tradição, e não como processo dinâmico e criativo de construção de sentidos.

- se o professor conhece os novos estudos desenvolvidos pela Linguística Textual e compreende coerência como processamento de sentidos realizados por sujeitos em interação, uma atividade interpretativa, como diz Marcuschi (2008); e entende coesão como fenômeno multirreferencial e intersubjetivo de construção de processos de referenciação e sequenciação que se manifestam na tessitura textual por relações tecidas entre componentes diversos (itens da língua, contextos, conhecimentos sociocognitivos dos interlocutores etc.); possivelmente este professor busque pautar suas práticas de ensino-aprendizagem em processos sociointerativos diversos, fomentando o contato dos alunos com os mais variados gêneros textuais, para que os estudantes possam construir compreensões sobre o texto e refletir sobre seus usos, seus recursos expressivos e seus processos de significação.

Esses dois pressupostos subsidiam a formulação do seguinte argumento de pesquisa: as concepções de coerência e coesão influenciam o tipo de abordagem que se faz do texto em sala de aula, pois, geralmente, quando confrontados com a questão “O que é um texto?”, os professores da educação básica costumam acionar os conceitos de coerência e coesão para formular definições/concepções sobre texto. Além disso, esses conceitos costumam ser utilizados por professores, mesmo que de forma vaga, para avaliar as produções escritas e as atividades de leitura de seus alunos. Esse argumento supõe que muitos professores, por não desenvolverem formação in fiere acerca dos estudos textuais, trabalham com noções intuitivas de coerência, coesão, texto, ensino de língua e abordagem do texto em sala de aula.

O argumento supra apresentado foi tomado como norteador do nosso trabalho de pesquisa, delineando as atitudes do pesquisador durante o processo de produção de conhecimento acerca das concepções desenvolvidas por professoras do Ensino Médio sobre os fenômenos da coerência e da coesão textual, a fim de interpretar como essas concepções influenciam as abordagens do texto em sala de aula. É um argumento alinhado ao problema de pesquisa previamente exposto, que considera necessário que o trabalho com o texto em sala de aula não deva ocorrer de forma intuitiva, mas fundamentado nas concepções de texto, de fenômenos ligados ao processamento textual (coerência e coesão) e de princípios sobre o ensino do texto fornecidos pelos trabalhos de pesquisa desenvolvidos no âmbito da Linguística Textual contemporânea, de viés sociocognitivo-interacionista (KOCH, 2014).