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3 COESÃO TEXTUAL: “DECRIFA-ME OU TE DEVORO”

3.4 ESTUDOS DE REFERENCIAÇÃO

Os estudos sobre os processos de referenciação pautam-se numa concepção interacionista e discursiva de língua (MONDADA & DUBOIS, 2014), que é concebida como meio de negociação de sentidos entre sujeitos produtores de práticas discursivas, cognitivas e socioculturalmente situadas. Por essa razão, as autoras em tela argumentam que as construções de linguagem são fabricadas em cooperação, pois sempre são negociadas durante as interações realizadas por sujeitos sócio-historicamente situados, que, no curso de suas atividades discursivas, produzem representações para as coisas e estados de coisas do mundo. Segundo Cavalcante (2013, p. 125), “é da inter-relação entre língua e práticas sociais que emergem os referentes, ou ‘objetos-de-discurso’, por meio dos quais percebemos a realidade que, por sua vez, nos afeta”. Nessa perspectiva, a língua não representa um código de etiquetação de ideias, objetos, seres etc., nem de atribuição de rótulos aos protótipos criados pela psicologia individual dos falantes. Não se admite, portanto, que exista ligação direta entre as palavras e as coisas, haja vista que os processos de referenciação (ou de produção de referentes) emergem de atividades discursivas por meio das quais sujeitos em interação constroem entidades constitutivamente instáveis, que podem ser reelaboradas ao longo da interação verbal.

Os processos de construção e reconstrução de referentes nas atividades de discursivação e textualização do mundo evidenciam a instabilidade constitutiva entre as palavras e as coisas, haja vista que um mesmo referente pode sofrer modificações (recategorizações) ao longo do texto, para se adequar ao projeto de dizer do locutor, conforme se pode ver no seguinte trecho:

Em nossa cultura intelectual e jornalística surge uma nova forma retórica. Trata-se da arte de escrever para idiotas que, entre nós, tem feito muito sucesso. Pensávamos ter atingido o fundo do poço em termos de produção de idiotices para

idiotas, mas proliferam subformas, subgêneros e subautores que sugerem a criação de uma nova ciência.

Estamos fazendo piada, mas quando se trata de pensar na forma assumida

atualmente pela “voz da razão” temos que parar de rir e começar a pensar.

(TIBURI, Márcia; CASARA, Rubens. A arte de escrever para idiotas. Revista Cult, versão online, abril de 2015, grifos nossos)

Os trechos em destaque constituem os dois primeiros parágrafos do artigo de opinião intitulado “A arte de escrever para idiotas”, no qual Márcia Tiburi e Rubens Casara criticam a forma como os articulistas da grande mídia escrevem, polarizando o debate público, a fim de

produzirem, segundo os autores, confrontos entre cidadãos alinhados a formas diferentes de pensamento (direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e oposicionistas, machistas e feministas).

Como a intenção de possibilitar aos leitores acesso à realidade reconstruída no texto, os autores introduzem-na com a expressão referencial “uma nova forma retórica”. Tal expressão designa o objeto de discurso construído pelos autores para negociar sentidos com seus interlocutores. Para fazerem o texto progredir, esse objeto vai sendo transformado (recategorizado) e, a cada retomada anafórica, novos sentidos são agregados ao referente inicialmente introduzido no texto.

Por essa razão, ainda que as expressões referenciais “a arte de escrever para idiotas”, “produção de idiotices para idiotas”, “a criação de uma nova ciência” e “na forma assumida atualmente pela ‘voz da razão’” retomem um mesmo referente, a cada retomada o objeto é modificado por processos de recategorização, construindo referenciações anafóricas que sugerem novas interpretações para o objeto de discurso introduzido no texto pela expressão referencial “uma nova forma retórica”. Tais alterações indiciam o modo como os locutores (re)elaboram a realidade, apresentando-a ao leitor sob um ponto de vista crítico, convidando- lhe a aderir a essa referencialidade.

A recategorização referencial insere-se na progressão textual como uma atividade de negociação de sentidos e interpretações. Constitui estratégia discursiva de convite à adesão ao ponto de vista consubstanciado no texto. A compreensão e/ou aceitação desse ponto de vista depende também da atividade interpretativa realizada pelos leitores, de suas convicções, crenças e conhecimentos de mundo. Por isso, os estudos de referenciação consideram que os objetos de discurso resultam de compreensões intersubjetivas desenvolvidas pelos atores participantes dos atos de interação verbal.

Isso significa que a língua é uma prática social exercida pelos sujeitos para construírem significações sobre o mundo, fundadas em suas percepções/cognições da realidade. Em outras palavras: “[...] a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade.” (BLIKSTEIN, 1995, p. 17). Nesses termos, os referentes – objetos de discurso construídos com a língua para representar as percepções/cognições dos sujeitos sobre o mundo – são entidades cognoscíveis que mantêm vinculações com a significação linguística, pois representam aquilo que o locutor deseja sugerir ao ouvinte/leitor (BLIKSTEIN, 1995, p. 45).

A atividade de referenciação constitui um processo dinâmico e criativo que emerge das práticas discursivas, nas quais linguagem e realidade exercem uma relação mutuamente constitutiva; o que, segundo Mondada (2013), pressupõe a construção ad hoc dos referentes. Isto é: os referentes não preexistem às práticas de linguagem, pois são instaurados durante o desenvolvimento das atividades discursivas. São, portanto, objetos sociocognitivos e discursivos (objetos de discurso), intersubjetivamente negociados durante as práticas de interação verbal. Cientes disso, alguns pesquisadores afirmam que a “referenciação é um processo em permanente elaboração, que, embora, opere cognitivamente, é indiciado por pistas linguísticas e completado por inferências várias.” (CAVALCANTE et al., 2010, p. 234).

Em seus estudos sobre referenciação, Koch (2009a) considera que língua e sujeito são categorias indissociáveis, pois são os sujeitos - seres ativos e dinâmicos, (re) construtores de sentidos – que mobilizam a língua para (re)elaborar suas versões de mundo. Essa (re)elaboração se dá em eventos discursivos nos quais modelos sociocognitivos, percepções e contingências históricas intervêm nas representações construídas para designar as entidades no fluxo da interação verbal. Essas entidades não são concebidas como objetos do mundo, mas sim como objetos de discurso; uma vez que suas formulações dependem de reelaborações linguístico-cognitivas, discursivas e interacionais, consubstanciadas visando à compreensão dos fatos, fenômenos, ideias, objetos etc. referenciados no texto; como também do próprio texto, que é visto como evento propiciador da compreensão entre os interlocutores. Nessa linha de raciocínio, argumenta:

[...] a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam e fora dos eventos discursivos nos quais eles intervêm e nos quais mobilizam suas percepções, seus saberes quer de ordem linguística, quer de ordem sociocognitiva, ou seja, seus modelos de mundo. Estes todavia não são estáticos, (re)constroem-se tanto sincrônica como diacronicamente, dentro das diversas cenas enunciativas, de modo que, no momento em que se passa da língua ao discurso, torna-se necessário invocar conhecimentos – socialmente compartilhados e discursivamente (re)construídos -, situar-se dentro das contingências históricas, para que se possa proceder aos encadeamentos discursivos. (KOCH, 2009a, p. 56 e 57)

Essa visão não-referencial de língua e a concepção de referente como um objeto de discurso põem em xeque a ideia de Halliday & Hasan (1976) sobre coesão referencial. Para esses pesquisadores, apenas a referência endofórica seria coesiva, haja vista que possibilitaria a interligação, por retomada, de diferentes porções da superfície textual. Os estudos de referenciação não respaldam essa ideia, pois consideram que a noção de referência não se restringe aos elos visíveis entre diferentes constituintes da superfície textual.

Com base nisso, as pesquisas sobre referenciação extrapolam o âmbito do significante, priorizando, sobretudo, a significação, que é entendida como produto da interação sociocognitiva humana; por isso, uma construção social, intersubjetiva e historicamente situada. Nesses termos, propõem um alargamento da noção de anáfora. Cavalcante, Custódio Filho e Paiva Brito (2014) inserem-se entre aqueles que evidenciam que o fenômeno da anáfora é mais complexo e dinâmico do que propunham os estudos de Halliday & Hasan (1976), sugerindo-nos distinção entre as anáforas correferenciais (endofóricas) e as não correferenciais.

As primeiras representam processos por meio dos quais retomamos um referente já previamente introduzido no texto. Costumam ser caracterizadas como anáforas diretas, uma vez que evidenciam ligações explícitas entre a forma anafórica e o seu referente textual. As segundas não retomam um referente explícito, pois “remetem ou a outros referentes expressos no cotexto, ou a pistas cotextuais de qualquer espécie, com as quais se associam para permitir ao coenunciador inferir essa entidade.” (CAVALCANTE; CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 68). As anáforas não correferenciais recebem a designação de anáforas indiretas, pois a compreensão do processo referencial que indiciam depende de interpretações associativas ou inferenciais que requisitam a ativação de conhecimentos não explícitos no cotexto.

Para exemplificar a distinção entre anáforas diretas e indireta, citamos:

Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias. [...] Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que o barco não estava lá. (MARCUSCHI, 2013, p. 53)

Nesse trecho, a primeira ocorrência da expressão referencial “o barco” é um caso representativo de anáfora indireta, uma vez que não retoma um referente explícito. A introdução desse referente na progressão textual apoia-se sociocognitivamente no conhecimento de mundo dos interlocutores, qual seja: para se chegar a uma ilha, os seres humanos necessitam de um meio de transporte marítimo. Há, portanto, uma associação inferencial entre “ir a uma ilha passar férias” e “barco”, que pode ser recuperada pelos conhecimentos armazenados na memória dos interlocutores. É, portanto, uma anáfora indireta, pois, a partir de informações indiciadas na cotextualidade, o locutor realiza uma interpretação inferencial, a fim de ativar um novo referente no universo textual; fato que, segundo Marcuschi (2013, p. 59), distingue a anáfora indireta da direta.

Já a segunda ocorrência da mesma expressão referencial – “Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que o barco não estava lá” – é um caso típico de anáfora direta, pois retoma um objeto já posto na superfície textual. Nesse

caso, a retomada ocorre por repetição de um item lexical, mas poderia ter sido feita por um pronome, se o texto tivesse sido escrito da seguinte forma: “Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que ele não estava lá”. A identidade referencial entre o pronome de terceira pessoa e o sintagma “o barco” possibilitaria ao leitor calcular a referência da forma anafórica, associando-a ao referente anteposto no cotexto.

Segundo Cavalcante, Custódio Filho e Paiva Brito (2014), a retomada anafórica pode ser realizada por expressões de estruturas linguísticas diversificadas, como os pronomes substantivos, os sintagmas nominais, os sintagmas adverbiais etc. A escolha pelo tipo de expressão referencial que exerce textualmente uma função anafórica depende das intenções do locutor e da natureza do seu projeto de dizer. Em alguns casos, a retomada ocorre por elipse, ou seja, pela ausência de expressão referencial que a indique. É o que alguns pesquisadores denominam de substituição por zero (ANTUNES, 2005) e que pode ser visto no seguinte texto:

Um beco. Estado inerte. A neblina vasta e densa que envolve pensamentos adormecidos em outras outroras. É o estrangeiro que reside, entre o amontoado de carnes distorcidas, pele e espasmos. O que somos? O que fomos? De repente, a máscara cai. Aquele olhar no espelho é fome? ânsia? descontentamento? Deveria ser uma nota musical. Deveria ser o canto de um encanto rimado e ritmado. Mas parece ser ego ferido. Apenas um negativo cifrão. O desenho no espelho é fosco. Linhas retas meio tortas. Parece você. Se reafirma você. Mas não rima com teu nome.

E você diz: “mas esse sou eu”. Ainda assim, não rima com teu nome. (MARTINZ, 2015)

Na crônica em destaque, o enunciador constrói um objeto de discurso para falar do estranhamento de alguém diante da imagem de si, de como as transformações sofridas com o tempo projetam no ser humano mudanças profundas, tornando-o, algumas vezes, irreconhecível a si mesmo, sem identidade; por isso, com um nome próprio que não combina com o olhar refletido no espelho. Para a construção desse objeto, referentes são alternados ao longo do texto – “Um beco”, “A neblina”, “o estrangeiro”, “passado”, “presente”, “a máscara” – até que se chega a “Aquele olhar no espelho”, um dos poucos referentes que, na superfície textual, é retomado por um processo anafórico correferencial.

O enunciador demonstra intenção de levar o coenunciador a refletir sobre o estranhamento de si, apresentando objetos que fabricam no universo textual o estado de espírito daquele que não se reconhece, pois apresenta identidade neblinada, dividida entre o que se foi e o que se é. Daí a opção por introduzir referentes no texto e, logo em seguida, desativá-los, introduzindo um novo objeto de discurso que passa a ocupar o foco de atenção na mente do coenunciadores. Esse procedimento se repete no texto até a introdução do referente “Aquele olhar no espelho”, por meio do qual o enunciador busca demonstrar como

as contradições entre aquilo que se é e o que se desejaria ser afeta o estado de espírito do ser humano.

Para apresentar essas contradições, o referente “Aquele olhar no espelho” é retomado algumas vezes pelo procedimento da elipse, conforme destacamos na transcrição a seguir:

Aquele olhar no espelho é fome? Ø ânsia? Ø descontentamento? Ø Deveria ser uma nota musical. Ø Deveria ser o canto de um encanto rimado e ritmado. Mas Ø parece ser ego ferido. Ø Apenas um negativo cifrão. O desenho no espelho é fosco. Linhas retas meio tortas. Parece você. Se reafirma você. Mas não rima com teu nome. (MARTINZ, 2015, grifos nossos)

Assim, o enunciador retoma um referente previamente posto na superfície textual, sem necessitar de uma nova expressão referencial para designá-lo, pelo menos até a retomada operada por “O desenho no espelho”, um caso de anáfora direta recategorizadora. Destacamos que nas anáforas diretas – seja por elipse, repetição lexical, uso de pronomes ou construção de recategorizações - o mesmo referente costuma ser preservado no universo textual, garantindo a manutenção do tópico discursivo em foco.

Para Marcuschi (2013, p. 55), as anáforas diretas funcionam como substitutas dos elementos por elas retomados. Esse pesquisador enfatiza que, nos estudos clássicos sobre o fenômeno da referência textual, a noção de anáfora direta pressupunha correferencialidade, ou seja, identidade de referência (concordância de gênero e número entre a forma anafórica e o item retomado), e cossignificação (equivalência semântica entre a expressão anaforizante e o termo anaforizado).

Todavia os estudos de referenciação comprovam que, embora em muitos casos a identidade de referência seja necessária para evitar ambiguidades, nem sempre a expressão anafórica preserva o conteúdo semântico do termo retomado, uma vez que, como processo dinâmico, a referenciação possibilita a reconstrução dos objetos do discurso no fluxo do processo de textualização, conforme demonstramos com as retomadas anafóricas recategorizadoras presentes no texto de Márcia Tiburi e Rubens Casara, analisado no início desta seção.

As anáforas indiretas, por sua vez, não ratificam um referente já posto na superfície textual, uma vez que, no processo dinâmico e instável da referencialidade, esse tipo de processo anafórico torna-se responsável pela introdução de um novo objeto de discurso no processamento textual. Esse novo objeto costuma emergir a partir de pistas indiciadas na cotextualidade, mas a sua construção depende dos conhecimentos de mundo dos interlocutores e requisita o acionamento de estratégias interpretativas, como a associação

estereotípica entre unidades do léxico ou a produção de inferências a partir de conhecimentos ativados pelo contexto.

Koch (2009a, 2009b) propõe distinção entre os diversos tipos de anáforas que não retomam um referente específico presente na superfície textual, classificando-as em anáforas indiretas, associativas e encapsuladoras. As anáforas indiretas são mais inferenciais e recebem essa designação porque surgem a partir de pistas cotextuais que proporcionam a construção, por inferência, de um novo objeto de discurso. As associativas surgem de associações entre termos de um mesmo campo lexical, indiciando, por meronímia, a construção de um novo objeto de discurso. As anáforas encapsuladoras aparecem no cotexto como uma expressão referencial nova que sintetiza partes do texto. A fim de exemplificar as distinções entre esses tipos de anáforas não correferenciais, citamos:

(1) Administério

[...]

Meia-noite, livro aberto Mariposas e mosquitos pousam no texto incerto Seria o branco da folha, luz que parece objeto? Quem sabe o cheiro do preto, Que cai ali como um resto? Ou seria que os insetos Descobriram parentesco Com as letras do alfabeto?

(Paulo Leminsky apud CAVALCANTE, 2013, p. 128)

(2) A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A antirrosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada

(3) Epigrama nº 8

Encostei-me a ti, sabendo bem que era somente onda. Sabendo bem que eras nuvem depus a minha vida em ti. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil, Fiquei sem poder chorar, quando caí.

(Cecília Meireles apud CAVALCANTE, 2013, p. 140)

Os textos supracitados são acionados por Cavalcante (2013) para exemplificar distintos processos anafóricos não correferenciais. No primeiro, o referente “livro aberto” atua como âncora que possibilita a construção de outros objetos de discurso, a saber: “no texto incerto”, “o branco da folha”, “o cheiro do preto” e “as letras do alfabeto”. Esses novos objetos são construídos textualmente pelo procedimento da anáfora associativa, uma vez que há relação de ingrediência (meronímia) entre cada um desses novos objetos (partes de um todo) e a âncora “o livro”, que representa o todo.

No segundo texto, as expressões referenciais “crianças mudas telepáticas”, “meninas cegas inexatas”, “mulheres rotas alteradas” e “feridas como rosas cálidas” funcionam como anáforas indiretas, pois foram construídas, por inferência, a partir dos conhecimentos de mundo que são ativados pelo objeto de discurso recategorizado no título do poema, uma representação discursiva para a tragédia provocada pela bomba atômica lançada na cidade japonesa de Hiroxima, durante a segunda guerra mundial.

O terceiro texto evidencia um caso típico de anáfora encapsuladora, uma vez que a expressão referencial “tudo isso” sintetiza as informações esparsamente antepostas na superfície textual. Cavalcante (2013, p. 140) salienta que, nesse caso de encapsulamento, ocorre um encontro em anáfora e dêixis, pois a expressão referencial anafórica é formada por um dêitico discursivo, o pronome indefinido “isso”, que remete não ao tempo e espaço dos interlocutores, mas “a porções do discurso em andamento” (CAVALCANTE, 2000, p.53), a fim de fazer referência a informações ativadas no cotexto.

É importante salientar que algumas anáforas encapsuladoras promovem uma rotulação das informações que sintetiza. Isso costuma correr quando a expressão anafórica tem como núcleo um sintagma nominal que evidencia a intenção do locutor de emitir uma avaliação sobre o conteúdo que sintetiza, construindo um rótulo. Segundo Gill Francis (2014, p. 195), um rótulo sugere ao leitor como as informações sintetizadas pela anáfora encapsuladora devem ser interpretadas, “e isso fornece o esquema de referência dentro do qual o argumento subsequente é desenvolvido”. Por essa razão, a rotulação anafórica costuma cumprir uma

dupla função no processamento textual: conecta porções distintas do texto e organiza o discurso indicando-lhe uma orientação argumentativa. É o que podemos ver em:

[...] o sistema imunológico dos pacientes reconheceu os anticorpos do rato e os rejeitou. Isto significa que eles não permanecem no sistema por tempo suficiente para se tornarem completamente eficazes.

A segunda geração de anticorpos agora em desenvolvimento é uma tentativa de contornar este problema através da “humanização” dos anticorpos do rato, usando uma técnica desenvolvida por [...] (FRANCIS, 202014, p. 195, grifos nossos)

No trecho supracitado, destacamos dois exemplos de anáforas encapsuladoras. A primeira, materializada pelo demonstrativo “isto”, retoma um conjunto de informações esparsamente distribuídas no cotexto, cumprindo função coesiva, pois conecta porções distintas da superfície textual. A segunda, representada pela expressão referencial “este problema”, propõe que o leitor interprete “a rejeição aos anticorpos do rato como um problema” (FRANCIS, 2014, p. 196). Desse modo, além de encapsular informações precedentes, o sintagma nominal “este problema” rotula essas informações, indicando a avaliação que o locutor faz sobre os fatos reconstruídos no mundo textual.