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3 COESÃO TEXTUAL: “DECRIFA-ME OU TE DEVORO”

3.2 DUAS GRANDES MODALIDADES DE COESÃO TEXTUAL

3.2.1 Coesão referencial

Essa primeira grande modalidade de coesão textual respalda-se numa visão ampla do fenômeno da referência, não restrito à superfície textual (correferência), nem circunscrito a uma concepção representacionalista da linguagem humana; haja vista que o referente é (re)construído textualmente10, isto é, incorpora traços à medida que o texto vai sendo desenvolvido; e pode ser representado por itens linguísticos bem diversos: um nome, um sintagma, um fragmento de oração, uma oração ou todo um enunciado. Ademais, nessa visão de referência, a relação de remissão não depende apenas da (ou não se restringe à) identificação sintática entre o referente e sua forma remissiva, pois contempla também “os contextos que envolvem ambos” (KOCH, 2007a, p. 31).

No processamento da coesão referencial, a remissão pode ser prospectiva (catafórica) ou retrospectiva (anafórica). No primeiro tipo, a forma referencial faz remissão a um referente que aparece depois, exigindo do leitor um movimento para frente, a fim de que compreenda as relações sintático-semânticas entre ambos. No segundo tipo, a forma referencial remete ao que lhe foi anteposto, levando o leitor a voltar ao que foi dito antes, para recuperar o referente do recurso coesivo. Com o texto a seguir, exemplificamos esses dois tipos de remissão:

Sabe quando você se apaixona por um livro logo nas primeiras linhas, antes de virar a primeira página? Pois foi o que aconteceu com Breve História de Um Pequeno

10 Para sustentar essa posição, a autora dialoga com Blanche-Benveniste (1984 apud KOCH, 2007a, p. 31), afirmando: “o referente se constrói no desenrolar do texto, modificando-se a cada novo ‘nome’ que se lhe dê ou a cada nova ocorrência do mesmo ‘nome’.”.

Amor, da escritora Marina Colasanti e da ilustradora argentina Rebeca Luciani. O

livro venceu recentemente o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e

Juvenil (FNLIJ) deste ano nas categorias Criança Hors-Concours e recebeu o selo de Altamente Recomendável. (Bia Reis, Blog Estante de Letrinhas, 10/07/2014, grifos

nossos).

No texto em questão, o sintagma nominal indefinido “um livro” introduz textualmente um referente que só se torna conhecido depois, quando o leitor prossegue com a leitura e encontra, a posteriori, informações sobre o título e a autoria do livro de que se fala: Breve História de Um Pequeno Amor, da escritora Marina Colasanti”. Nesse caso, tem-se uma relação remissiva catafórica, pois as informações que servem de elemento de referência para a construção do referente aparecem depois do sintagma indefinido que o introduz no texto. Convém salientar que tais informações incorporam traços a esse referente, tornando-o mais definido; ou seja, mais conhecido para o leitor. Após essa incorporação, o referente continua sendo textualmente construído e passa a ser representado pela forma remissiva “O livro”, um sintagma nominal definido, que exerce remissão anafórica, já que remete ao que foi dito antes. Além de assumir que o referente é uma construção textual, realizada à medida que o texto se desenvolve, Koch (2007a, p. 32) contesta os estudos sobre coesão referencial que admitem a existência de “identidade de referência entre a forma remissiva e seu referente textual”, pois, segundo a autora, nem sempre há correferencialidade entre ambos. Noutros termos: a forma remissiva nem sempre recupera todo o conteúdo do sintagma nominal ao qual faz remissão, nem sempre apresenta identidade de categoria e/ou função com o seu referente, nem sempre remete a um elemento particular do texto. Para justificar essa posição, transcrevemos a seguir alguns exemplos utilizados pela autora:

1. A gravata do uniforme de Paulo está velha e surrada. A minha é novinha em folha. (KOCH, 2007a, p. 32)

2. Perto da estação, havia uma pequena estalagem. Lá costumavam reunir-se os trabalhadores da ferrovia. (KOCH, 2007a, p. 33)

3. No quintal, as crianças brincavam. O prédio vizinho estava em construção. Os carros passavam buzinando. Tudo isto tirava-me a concentração. (KOCH, 2007a, p. 33)

No primeiro exemplo, o possessivo “minha” atua como forma remissiva que não recupera todo o sentido do sintagma nominal ao qual faz remissão, que é “A gravata do uniforme de Paulo”. Na verdade, extrai deste apenas o seu elemento de referência “gravata”, modificando-o; ou seja, não se fala mais sobre a gravata do uniforme de Paulo, e sim daquela que pertence ao enunciador.

No segundo exemplo, a forma adverbial “Lá” faz remissão ao sintagma nominal “uma pequena estalagem”, que exerce função sintática de objeto direto da oração antecedente; não

há, portanto, identidade categorial entre referente (sintagma nominal) e forma remissiva (forma adverbial), nem identidade de função entre ambos: o referente exerce sintaticamente a função de complemento do verbo (objeto direto), e a forma remissiva exprime uma ideia circunstancial de lugar (adjunto adverbial).

No terceiro exemplo, a forma remissiva “Tudo isto” não faz referência a um elemento particular do texto, mas a todo o cotexto que a precede. Atua como elemento coesivo anafórico que sintetiza o conteúdo de tudo que foi dito antes, encapsulando um conjunto de informações previamente postas.

Koch (2007a, p. 34) destaca ainda que as principais formas remissivas (ou referenciais) em português podem ser gramaticais ou lexicais. As gramaticais apresentam similaridades de concordância (gênero e número) com os referentes aos quais remetem, geralmente não lhes acrescentando instruções de sentido. As lexicais, por sua vez, além das semelhanças de conexão (concordância de gênero e número) com os referentes, agregam-lhes instruções de sentido. As formas remissivas gramaticais podem ser classificadas em presas ou livres. São presas11 quando não possuem autonomia, apresentando-se sempre acompanhadas de um nome (o núcleo do sintagma do qual fazem parte). São livres12 quando exercem função pronominal, podendo substituir o nome, funcionando, por isso, com autonomia.

Pelo exposto, fica evidente que as formas remissivas gramaticais (presas ou livres) exercem importantes funções na coesão referencial, fornecendo instruções de conexão acerca dos referentes a que se reportam. Mas as formas gramaticais não são os únicos recursos da língua disponíveis para o funcionamento dessa grande modalidade de coesão textual, pois a remissão textual também pode ser feita por itens do léxico (sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos etc.), quando estes fazem referência a um conteúdo posto ou pressuposto no universo textual. As formas lexicais notabilizam-se por fornecerem, além das instruções de conexão, instruções de conteúdo acerca do referente; contribuindo, assim, para o fenômeno da construção textual do referente.

11 Os artigos definidos, os pronomes adjetivos (demonstrativos, possessivos, indefinidos, interrogativos) e o pronome relativo “cujo” funcionam como formas remissivas gramaticais presas.

12 Os pronomes pessoais, os pronomes substantivos (demonstrativos, possessivos, indefinidos, interrogativos relativos), os numerais, os advérbios pronominais, as expressões adverbiais e as formas verbais remissivas funcionam como formas remissivas gramaticais livres.