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6 APROFUNDANDO A ESCUTA: TEXTOS E CONCEPÇÕES

6.1.3 Sou um evadido

No poema de Fernando Pessoa ele mesmo, ou Fernando Pessoa ortônimo, chamou-nos atenção o processo de construção de objetos de discurso para falar de si. Nele temos um enunciador que, já no título, introduz um referente categorizando a si, seu modo de pensar e agir: “Sou um evadido”. Observamos que o referente “evadido” pode funcionar textualmente como um rótulo de mão dupla (retrospectivo e prospectivo ao mesmo tempo), pois sua interpretação evoca conhecimentos socioculturais e cognitivos construídos pelo leitor antes da leitura do texto, levando-o para “antes do texto”; como também atua como âncora para o que é dito depois, servindo de gatilho para leitura de outros processos geradores de sentido que são indiciados na superfície textual. Evidentemente que a percepção dessa dupla funcionalidade do referente “evadido” depende das escolhas interpretativas que o leitor faz e de seus conhecimentos.

Assim fomos levados a interpretar o referente “evadido” como uma anáfora indireta (um rótulo retrospectivo sem antecedente explícito), haja vista que serve de pista textual para o diálogo com outros saberes recuperados por nossa memória. A interpretação que construímos acerca desse referente pautou-se nos conhecimentos que dispúnhamos sobre o fenômeno da heteronímia na poética de Fernando Pessoa, ou seja, nos saberes que tínhamos acerca do exercício criativo de construir vozes poéticas distintas, representadas literariamente pela criação de “poetas e prosadores que apresentam outra identidade, diferente da do criador” (MARTINS & COSTA, 2012, p. 79).

Noutros termos: a interpretação de “evadido” não foi feita por remissão a informações recuperáveis de forma pontual no texto, mas sim pela referenciação implícita a conhecimentos de mundo de que dispúnhamos, notadamente sobre a poética de Pessoa e de seus heterônimos. O processamento textual colocou, portanto, um referente novo no foco de nossa memória discursiva, que, sem retomar algo posto no texto, nos mobilizou para outros saberes,

inferencialmente construídos por sociocognição. Essa leitura inferencial demonstra que a coesão é coconstruída pelos interlocutores, ou seja, que a participação do leitor é decisiva para o processamento da coesão textual.

Interpretado como uma anáfora indireta, que categoriza o enunciador e nos remete a conhecimentos “extratextuais”, o referente “evadido” funciona como um rótulo retrospectivo sem referente explícito ou implícito no texto. Visualizamos, pois, um processo anafórico entre texto e conhecimento de mundo que “[...] ultrapassa a definição tradicional da noção de anáfora como estratégia de retomada [...]” (JUBRAN, 2013, p. 226-7). Além disso, percebemos que o mesmo referente funciona como rótulo prospectivo, haja vista que “[...] serve para encapsular ou empacotar uma extensão do discurso” (FRANCIS, 2014, p. 195). No poema, o referente “evadido” categoriza o enunciador e funciona como âncora para tudo que é dito/sugerido no texto.

O poema de Pessoa também nos pareceu uma escolha pertinente para o aprofundamento do diálogo com os sujeitos de nossa pesquisa sobre a função dos articuladores discursivo-argumentativos no processamento textual. A necessidade de aprofundar essa questão foi-nos estimulada por comentários feitos pelas professoras nos momentos anteriores de entrevistas, quando recorreram a termos como “conjunções”, “operadores argumentativos” e “conectivos” para falarem dos recursos/processos de sequenciação (ou de coesão sequencial).

Por isso consideramos necessário apresentar-lhes um texto em que o uso desses articuladores sugere-nos funções variadas, a fim de compreender se, ao falarem de elementos/processos de sequenciação, as professoras manifestariam uma visão formal acerca da coesão sequencial, isto é, se conceberiam o uso dos articuladores como determinado pela gramática; ou se demonstrariam uma compreensão textual-discursiva desse mesmo fenômeno, segundo a qual a escolha dos articuladores é feita em função dos sentidos que se pretende sugerir ao leitor.

No poema de Pessoa, essa função dos articuladores pode ser evidenciada, dentre outras ocorrências, pelo acionamento do “mas” em duas passagens do texto. Em ambas, o uso dessa palavra não apenas cumpre a função de conectar trechos, encadeando conteúdos em virtude de suas relações lógico-semânticas; mas demonstra escolhas feitas pelo enunciador em razão dos sentidos pretendidos. No quarto verso, por exemplo, o uso do “mas” revela a intenção do enunciador de dizer, em tom de triunfo (MARTINS & COSTA, 2012), a sua atitude de evasão. Enuncia-se, assim, um argumento que prevalece no texto: a evasão como alternativa

às amarras da vida, como atitude do sujeito que se divide e se transforma em vozes poéticas distintas para viver plenamente suas possibilidades de expressão.

Martins e Costa (2012, p. 77) enfatizam que, na primeira estrofe, o enunciador relata- nos “a experiência do nascimento, configurada como aprisionamento”, o que “representa uma circunstância dramática, marcada por intervenção violenta, causadora de angústia”. Ao concluir essa estrofe com “uma expressão de triunfo” reveladora da atitude que lhe permitiu romper com as angústias provocadas pelo nascimento, o enunciador conclama o interlocutor a aderir ao seu argumento. Por essa razão, o “mas”, presente no último verso da primeira estrofe, assume uma dupla função: indicia o contraste entre aprisionamento (três primeiros versos) e evasão/libertação (a partir do quarto verso), como também sugere ao leitor que o enunciador o convida a aderir aos argumentos que justificam a atitude de “ser um evadido”.

Esse convite à adesão ao ponto de vista do enunciador promove a transformação da voz poética, que deixa de falar na primeira pessoa do singular (ou falar de si) e passa a incluir o outro “Se a gente se cansa”, convidando o leitor a pensar sobre o aprisionamento do ser e suas possibilidades de libertação. Fica evidente, portanto, que o articulador “mas” não apenas relaciona conteúdos opostos. Ele indicia uma mudança de perspectiva no poema, a partir da qual o leitor é convidado a pensar/refletir sobre o que se diz, para aderir aos argumentos do enunciador.

O último verso do poema também evidencia que a escolha da palavra “mas” foi feita em virtude dos sentidos que o enunciador pretendia sugerir para a sua atitude de evasão. O referido articulador sobressai-se como recurso gerador de sentido por meio do qual se indicia uma quebra de expectativa. Representa, desse modo, uma opção feita pelo enunciador em função do seu querer-dizer, pois:

[...] anuncia que o final dessa conversa reserva uma informação que contraria as expectativas. Ora, desde o ponto de vista do evadido, viver fugindo não tem conotação negativa, não implica viver mal. Livre da prisão da personalidade e portanto desfrutando da multiplicidade, ele estará em condições de viver intensamente. Na fuga libertadora é que ele “vive a valer”. (MARTINS & COSTA, 2012, p. 78)

Salientamos que os comentários analíticos sobre as funções do articulador “mas” no poema de Fernando Pessoa revelam nossas compreensões desse texto, como também nossos modos de conceber os processos de sequenciação textual, com destaque para o encadeamento por conexão. Não coadunamos com a ideia de que os recursos usados para promover o encadeamento por conexão possuem sentidos aprioristicamente estabilizados, haja vista que a relação entre as palavras da língua e as coisas que elas representam é constitutivamente

instável (MONDADA, 2002); por essa razão, os sentidos emergem durante o processamento textual.

Assim sendo, preparamo-nos para possivelmente ouvir outras formas de compreensão dos sujeitos de nossa pesquisa e, a partir disso, investigar suas concepções sobre a coesão sequencial (ou por sequenciação). Ao lerem o poema, as professoras assumiram o papel de interlocutoras, construindo interpretações que revelam, dentre outras coisas, seus modos de conceber coesão e coerência. Informamos que, para isso, os diálogos tecidos no terceiro momento de entrevista foram motivados por questões formuladas a partir das repostas que os sujeitos de nossa pesquisa nos forneceram nos dois momentos anteriores. Desse modo, as questões norteadoras (APÊNDICE A) desse terceiro momento foram particularizadas, haja vista que abordaram, em suas formulações, dizeres prévios dos sujeitos de nossa pesquisa.