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3 COESÃO TEXTUAL: “DECRIFA-ME OU TE DEVORO”

3.2 DUAS GRANDES MODALIDADES DE COESÃO TEXTUAL

3.2.2 Coesão sequencial

Assumindo, em consonância com Weinrich (1964 apud KOCH, 2007a, p. 53), a noção segundo a qual o texto é “uma ‘estrutura determinativa’ cujas partes são interdependentes, sendo cada uma necessária para a compreensão das demais.”, Koch (2007a) considera que a coesão sequencial envolve alguns procedimentos linguísticos responsáveis pela tessitura de relações variadas - de caráter semântico e/ou pragmático - entre diferentes segmentos do texto. Assim sendo, argumenta que coesão sequencial diz respeito à materialização de relações de interdependência entre enunciados, partes de enunciados, parágrafos e sequências textuais; o que auxilia a progressão textual.

Essa definição pressupõe que a coesão sequencial seja um fenômeno que se circunscreve às conexões existentes entre os elementos presentes na superfície do texto; ou melhor, refere-se aos modos como palavras, sentenças, parágrafos e blocos supraparagráficos são interligados para construir uma unidade global de sentido (um texto coerente). Na ausência desses elementos de conexão (mecanismos de coesão sequencial), a construção da coerência fica sob a responsabilidade do leitor, que deve estabelecer “mentalmente as relações semânticas e/ou discursivas” (KOCH, 2007a, p. 66) presentes no texto.

Nessa perspectiva de entendimento da coesão textual, os elementos coesivos de sequenciação contribuem para a interpretação do texto, favorecendo a construção da coerência pelos leitores. Por isso, durante os atos de produção textual, escritores e falantes devem considerar as convenções a respeito do uso dos elementos de coesão sequencial, bem como as funções que esses elementos podem assumir em um texto, a fim de evitarem incompreensões que dificultem a construção da coerência pelo leitor ou ouvinte.

A coesão sequencial viabiliza, portanto, as relações de interdependência entre segmentos textuais distintos, favorecendo a progressão textual, que pode se desenvolver com ou sem elementos de recorrência estrita. Quando são acionados elementos de recorrência no fluxo da progressão textual, tem-se a sequenciação parafrástica; ou seja, a retomada por paráfrase, pela alteração de sentido ou por comentário de algo já posto na superfície textual. Quando não são acionados elementos de recorrência no desenvolvimento da progressão textual, tem-se a sequenciação frástica; isto é, a emissão de sinais verbais que fazem avançar o tema, sem retomar o que já foi posto.

Na coesão sequencial parafrástica, a progressão textual ocorre devido ao acionamento dos seguintes procedimentos:

- Retomada de termos, em que se reitera uma mesma palavra ou expressão; não havendo, necessariamente, entre a primeira ocorrência do termo e suas repetições, identidade

total de sentidos, pois cada ocorrência nova acrescenta instruções de sentido ao termo antecedente.

- Repetição de estruturas sintáticas (paralelismo), quando enunciados diferentes do texto apresentam a mesma estruturada sintática, formulada com itens lexicais distintos, que expressam conteúdos semânticos não-coincidentes.

- Retomada de conteúdos semânticos (paráfrase), em que se reitera o mesmo conteúdo semântico, escrevendo-o ou falando-o de forma diferente; isto é, preserva-se um conteúdo já posto no texto, apresentando-o sob nova forma. Convém salientar que a paráfrase é um procedimento bastante comum na produção de textos orais e escritos, mas que não deve ser entendido como mera repetição do já dito; pois, “a cada reapresentação do conteúdo, ele sofre alguma alteração, que pode consistir, muitas vezes, em ajustamento, reformulação, desenvolvimento, síntese ou previsão maior do sentido primeiro.” (KOCH, 2007a, p. 56).

- Recorrência de recursos fonológicos segmentais e/ou suprassegmentais, que consiste no reaparecimento de fones do alfabeto fonológico, como assonâncias e aliterações (recursos segmentais); ou no acionamento de elementos prosódicos, como metro, ritmo e rima (recursos suprassegmentais).

- Recorrência de tempo verbal, por meio da qual se fornecem informações ao leitor sobre: - a atitude comunicativa (mundo comentado ou mundo narrado) presente nas diversas sequências que compõem o texto; - as perspectivas temporais (tempos-zero, tempos retrospectivos e tempos prospectivos) das atitudes comunicativas assumidas no texto; - e a relevância das informações do mundo narrado (primeiro ou segundo plano).

- Recorrência de aspecto verbal, que, como fenômeno de sequenciação frástica, fornece ao leitor ou ouvinte informações sobre o tipo de estado ou processo representado pelo verbo, como também sobre a duração da ação verbal.

Na coesão sequencial frástica, a progressão textual ocorre pelo acionamento de procedimentos de manutenção e de progressão temática, como também pelo procedimento de encadeamento, em que sucessivas sequências textuais (palavras, enunciados ou conjuntos de enunciados) são conectadas, criando-se relações de sentido entre os constituintes do texto. O encadeamento de sequência textuais pode ocorrer por justaposição (com ou sem elementos sequenciadores) e por conexão (realizada por conectores interfrásticos).

O mecanismo da manutenção temática favorece a continuidade de sentidos de um texto pelo acionamento de palavras relacionadas ao tema que está em foco. A proximidade semântica entre os itens lexicais que compõem o texto tem a ver com o que Halliday & Hasan (1976) denominam de contiguidade semântica ou colocação; isto é, refere-se à escolha de

termos semanticamente próximos para que o locutor consiga desenvolver o tema sem interromper o fluxo de sentidos de um texto. Nessa visão, o uso de termos de um mesmo campo lexical constitui o principal procedimento do mecanismo da manutenção temática, por meio do qual o texto costuma progredir sem se desviar de seu tema principal.

A progressão temática também representa importante mecanismo de coesão sequencial. Se, por um lado, a manutenção do tema imprime ao texto uma unidade temática; por outro lado, a progressão temática possibilita que o texto se desenvolva, sem se repetir desnecessariamente. Noutros termos: a progressão temática torna possível dizer coisas distintas sobre o mesmo tema, sem comprometer a unidade de sentido.

A questão da progressão temática foi objeto de estudo da Escola Funcionalista de Praga (Danes, Firbas, Mathesius, Sgall etc.), que se ocupou, dentre outras coisas, “com a organização e hierarquização das unidades semânticas de acordo com seu valor comunicativo” (KOCH, 2007a, p. 63). Adotando o paradigma funcionalista para o estudo da língua, os linguistas de Praga formularam a teoria dos blocos comunicativos, segundo a qual a progressão temática se concretiza pela articulação entre tema (tópico dado) e rema (tópico novo). As concepções de tema e rema variam conforme a perspectiva (oracional ou contextual) de estudos adotada:

- a perspectiva oracional, que considera tema aquilo que se toma como base da comunicação, aquilo de que se fala, e rema, o cerne da contribuição, aquilo que se diz sobre o tema, não havendo, aqui, coincidência entre tema e dado, rema e novo; - a perspectiva contextual, que vê no tema a informação contextualmente deduzível e, no tema, a informação nova, desconhecida, não deduzível. A esta última interessa, pois, a estrutura informacional do texto, particularmente, os meios linguísticos para a caracterização sintática superficial sob a perspectiva funcional da sentença. (KOCH, 2007a, p. 63)

Essas duas perspectivas influenciaram o trabalho de Danes (1970 apud KOCH, 2007a, p. 63), que assume a progressão temática como o aspecto que dá sustentação a um texto. Como integrante da Escola Linguística de Praga, o autor em voga investigou, sob a perspectiva funcional da sentença, diversas possibilidade de organização textual, propondo cinco tipos de progressão temática, que viabilizam a organização e hierarquização das informações presentes em um texto. Nessa perspectiva, de acordo com o desenvolvimento do tema abordado no texto, a progressão temática pode ser assim classificada:

- Progressão temática linear - a informação nova de um enunciado (o rema) torna-se tema do enunciado seguinte;

- Progressão temática com tema constante – os enunciados evidenciam informações novas para um mesmo tema, ou seja, mantém-se o mesmo tema em todos os enunciados, acrescentando-lhes informações novas (remas) à medida que o texto progride;

- Progressão com tema derivado – de um mesmo tema são derivados outros temas parciais, assim o tema principal do texto funciona como uma espécie de hipertema, ou seja, como um tema gerador de outros temas.

- Progressão por desenvolvimento de um rema subdivido – o rema de um enunciado fornece os temas dos enunciados seguintes, atuando, portanto, como um rema super-ordenado. - Progressão com salto temático – o desenvolvimento temático do texto apresenta uma lacuna que pode ser preenchida por dedução a partir do contexto.

Cada um desses tipos de progressão temática pode ser acionado pelo produtor do texto como procedimento de coesão sequencial, para garantir a continuidade de sentido que, nessa proposta de análise da coesão, representa um critério para a construção da textualidade. A escolha de um, entre esses cinco tipos de progressão temática, fica condicionada às características do tema que está em foco, às opções do produtor do texto (seu projeto de dizer) e às especificidades do gênero textual a partir do qual se escreve e/ou fala.

Manutenção e progressão temáticas são, portanto, dois mecanismos de coesão sequencial que reúnem procedimentos ligados ao tratamento dado ao tema do texto: o primeiro envolve seleção lexical pertinente ao tema em foco, o que põe em destaque a relação entre léxico e semântica no ato de produção textual; o segundo reúne diferentes formas de garantir que o tema progrida, sem perder de vista o assunto principal de que trata o texto; o que põe em evidência o tipo de abordagem do tema priorizado durante o ato de produção textual.

O encadeamento, por seu turno, é um mecanismo de coesão sequencial que torna possível a construção de relações semânticas e/ou discursivas entre diferentes porções do texto (orações, períodos, parágrafos e sequências maiores). Envolve os procedimentos da justaposição e da conexão. No encadeamento por justaposição, partes do texto são justapostas (aproximadas) com ou sem o uso de elementos articuladores. No encadeamento por conexão, elementos conectores (conjunções, advérbios e outras palavras de ligação) unem sequências do texto, agregando alguns significados aos trechos conectados.

Para Koch (2007a), a justaposição sem elementos sequenciadores extrapola o âmbito da coesão textual, que “diz respeito ao modo como os componentes da superfície textual se encontram conectados entre si através de elementos linguísticos.” (KOCH, 2007a, p.66)13. A

13 Esta concepção de coesão textual foi superada pelos estudos de referenciação, haja vista que, em alguns casos, não há conexão direta entre os elementos de uma cadeia coesiva (ou referencial), como acontece com as anáforas indiretas, cuja relação entre o referente e o seu substituto anafórico não é visível na superfície textual. A última seção deste capítulo é dedicada a essa questão.

justaposição com elementos sequenciadores interliga diferentes porções do texto, colocando, entre as porções interligadas, sinais de articulação que funcionam em diferentes níveis hierarquizados (metacomunicativo, inter-sequencial, conversacional).

No nível metacomunicativo, os sinais de articulação introduzem trechos que sintetizam informações já postas no texto, funcionando como “sinais demarcatórios e/ou sumarizadores de partes ou sequências textuais” (KOCH, 2007a, p. 66). É o que acontece quando se usam expressões do tipo “por consequência”, “em virtude do exposto”, “dessa maneira”, “essa posição”, entre outras, centrando a linguagem sobre o que se diz no próprio texto. No nível inter-sequencial, os sinais de articulação marcam a transição entre as etapas de um texto, como a sequência dos episódios de uma narrativa e a segmentação espacial de uma descrição. No nível conversacional, os sinais de articulação funcionam como marcadores conversacionais, assinalando “introdução, mudança ou quebra do tópico” (KOCH, 2007a, p. 67).

O encadeamento por conexão ocorre quando se acionam outros tipos de sinais de articulação (advérbios e palavras de ligação, como as conjunções), que são denominados, pela Linguística Textual, de conectores interfrásticos. Esses sinais realizam ligações entre diferentes porções do texto e foram estudados por Halliday & Hasan (1976) como elementos da língua que expressam indiretamente relações de coesão, pois não levam o leitor a movimentos retrospectivos ou prospectivos no texto, mas ao entendimento das relações de sentidos que unem os fragmentos textuais ligados pelos conectores.

No encadeamento por conexão, os conectores podem estabelecer relações do tipo lógico-semânticas ou discursivas (ou argumentativas). Os conectores lógico-semânticos viabilizam relações de sentido entre os conteúdos das orações que unem. São assim denominados porque, segundo Koch (2007a, p. 68), esses conectores apresentam “semelhanças com os operadores lógicos propriamente ditos, não se confundindo, porém, com estes, já que a ‘lógica’ das línguas naturais difere, em muitos aspectos, da lógica formal.”. Os conectores discursivos ou argumentativos encadeiam enunciados produzidos por atos de fala distintos14, construindo uma relação discursiva (ou argumentativa), pois o primeiro enunciado é “tomado como tema” do segundo. (KOCH, 2007a, p. 71-72).

Os conectores lógico-semânticos unem orações de um mesmo período exprimindo relações de condicionalidade, causalidade, mediação (ou finalidade), disjunção (com valor inclusivo ou exclusivo), temporalidade e modo. Os discursivos (ou argumentativos)

14 Podem unir períodos de um mesmo parágrafo, parágrafos distintos ou até mesmo grupos de parágrafos de um texto.

proporcionam o encadeamento de enunciados distintos, evidenciando relações de conjunção, disjunção argumentativa, contrajunção, explicação ou justificativa, comprovação, conclusão, comparação, generalização/extensão, especificação/exemplificação, contraste, correção/redefinição, dentre outras.

Os valores expressos pelos conectivos podem variar conforme o contexto. É o que acontece com o conectivo “e”, que pode indicar tanto conjunção quanto contrajunção. Quando se diz, por exemplo, “O aluno esforçou-se bastante e ganhou a competição”, o elemento que une as duas orações exprime valor de adição (conjunção). Diferente do que ocorre em “O aluno esforçou-se e não obteve aprovação”, em que o conectivo “e” possui valor adversativo, estabelecendo relação de contrajunção entre as orações que une. Por essa razão, o estudo das relações tecidas pelos conectivos deve levar em conta outros aspectos (contexto, intenção do autor, modalidade de uso da língua etc.), e não apenas as funções estabelecidas por convenção. No entanto, conforme salienta Koch (2007a, p. 77), as convenções sobre o uso dos conectivos não devem ser ignoradas, para que não se dificulte a construção da coerência pelo leitor ou ouvinte.

Pelo exposto até aqui, é possível admitir que a proposta de Koch (2007a) para o entendimento da coesão textual, embora tente marcar diferença com a classificação formulada por Halliday & Hasan (1976), sobretudo no que diz respeito à não-diferenciação entre referência e substituição, mantém intenso diálogo com as concepções assumidas pelos autores de “Cohesion in English”; o que obviamente decorre da forte influência que os estudos de Halliday e Hasan (1976) exerceram nas pesquisas sobre coesão textual, até a década de 1990 (a primeira edição do livro no qual a proposta de Koch é apresentada data de 1989).

Por essa razão, naquele momento de estudos, ainda se concebia coesão como um fenômeno restrito à superfície linguística, ao conjunto de palavras que compõem o texto. Mas essa ideia vai se modificar substancialmente, e a autora em questão passa a admitir que o fenômeno da coesão textual extrapola os limites da superfície textual, como veremos na última seção deste capítulo. Tal modificação é impulsionada pelo trabalho de Lorenza Mondada (1994), que, em sua tese de doutoramento, defende que o referente não é algo dado; ou seja, ele não precede o discurso, pois sua construção emerge durante o movimento de produção discursiva (ou textual).