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A EXCELÊNCIA DA VISÃO BEATÍFICA

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 142-146)

Para se fazer uma ideia exacta desta visão, é necessário ver em que sentido é que ela é imediata, qual o seu prin­ cípio e depois qual o seu objecto primário e o seu objecto secundário (*).

VISÃO INTUITIV A E IM EDIATA Como ensinam a Igreja e Bento XII (Denz-, 530), este acto da inteligência analisa-se numa visão clara, intuitiva e imediata da essência divina; sem ser Compreensiva, permi­ te-nos conhecer a Deus «sicuti est», tal como é em si mesmo. Graças à sua clareza, esta visão distingue-se do conheci­ mento obscuro que temos de Deus, quer pela razão quer pela fé.

Dado o seu carácter intuitivo e imediato, esta visão u l­ trapassa de longe todo o conhecimento abstracto, discur­ sivo, analógico, que só a partir dos efeitos se guinda até

C1) C fr. São Tom ás, I, q. 12, toda esta questão e Comentários de

Ca it a n o, de Joãod e São Tom ás, etc. Ver, também, D iet, théol. cath., art. «Intuitive» (vision) por A. Michel.

Deus. Está muito acima de toda a abstracção, de todo o raciocínio, de toda a analogia. Trata-se da intuição imediata da Realidade suprema, do Deus vivo. Ultrapassa também de longe todas as visões intelectuais, que na terra recebem alguns místicos e não vão além da ordem da fé, porque não dão ainda a evidência intrínseca da Trindade. A visão bea­ tífica, pelo contrário, dá esta evidência e mostra que, se Deus não fosse trino, não seria Deus.

Portanto, somos chamados a ver a Deus, não apenas no espelho das criaturas, por muito perfeitas que sejam, não apenas pelo seu reflexo no mundo angélico, mas a vê-lo imediatamente, sem qualquer intermediário criado, cuja visão se interporia; vê-lo-emos melhor, mesmo, do que qualquer pessoa com quem falamos, porque Deus, sendo totalmente espiritual, estará intimamente presente na nossa inteligência, que esclarecerá e fortificará para lhe comunicar a força ne­ cessária para o ver.

t Como mostra São Tomás (I, q. 12, a. 2), entre Deus e nós não haverá, sequer, o intermediário de qualquer ideia, porque toda a ideia criada, mesmo infusa, por muito elevada que se suponha, constituirá sempre uma participação limitada da verdade e não poderá, portanto, representar, tal como é em

si mesmo, aquele que é o próprio ser, a verdade infinita,

a sabedoria sem limites, a fonte luminosa de todo o saber. Nunca uma ideia poderia representar, tal qual é em si mesmo, aquele que é o próprio pensamento, o «próprio

entender subsistente» (x), pura luminosidade intelectual,

eternamente subsistente. O balde de uma criança, observa Santo Agostinho, também não pode conter o oceano (2).

0 Ipsum intelligere subsistens.

(2) Por vezes, durante uma tempestade, de noite, vemos um re­ lâmpago que atravessa o céu de uma extremidade à outra; pensemos num relâmpago, não sensível, mas intelectual, um relâmpago de génio, eternamente subsistente, que será a própria Verdade, a própria Sabedoria e, ao mesmo tempo, uma chama viva de amor, o próprio Amor; teremos, de algum m odo, uma ideia de Deus.

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Também não poderemos, dizem os teólogos, exprimir a nossa contemplação numa palavra, mesmo com Uma pa­ lavra interior, um verbo mental, porque esta palavra criada e finita não poderia exprimir o infinito, tal como é em si mesmo. Esta contemplação imediata absorver-nos-á, de algum m odo em Deus, deixando-nos sem palavras para a traduzir, porque um único verbo pode exprimir perfeita­ mente a essência divina: o Verbo gerado desde a eternidade pelo Pai. A essência divina, sendo sumamente inteligível por si mesma e mais íntima a nós que nós próprios, desem­ penhará na nossa inteligência, fortalecida e esclarecida, o papel de ideia impressa e expressa (x). N ão pode conce­ ber-se, na ordem da inteligência, uma união mais íntima, embora comporte graus diversos.

N a terra, sempre que nos encontramos em presença de um espectáculo sublime, não encontramos palavras para o exprimir e dizemos que é inefável e inexplicável; com maior razão poderemos dizê-lo, quando virmos a Deus face a face.

Sendo intuitiva e imediata, esta visão não será, contudo,

compreensiva, como a que Deus tem de si mesmo. Só Ele

pode conhecer-se na medida em que é cognoscível. N ão há qualquer contradição. N a terra, muitas pessoas vêem melhor ou pior a mesma paisagem, segundo a maior ou menor per­ feição da sua vista, e, no entanto, cada^uma delas vê a pai­ sagem toda. D o mesmo modo, várias inteligências apre-

O Cfr. S ã o T om ás, I, q. 12, a. 2, e os seus comentadores C a it a n o , JóÃo d e SÃo T o m á s; G o n e t, S a lm a n tic e n s e s , B i l l u a r t : a própria essência divina desempenha aqui o papel de espécie impressa e de espécie expressa ou verbo mental. Cfr. D iet, théol. cath., art. «Intui­ tive» (vision) c. 2.375-2.380. Os teólogos têm com parado muitas vezes esta união tão íntima, na ordem da inteligência, à união hipostática da humanidade de Jesus com a pessoa do Verbo que a completa e possui e que pertence à ordem do ser. Se a segunda destas uniões não é impossível, a primeira por maioria de razão, deve ser possível também.

endem com maior ou menor profundidade a mesma ver­ dade enunciada, conforme são mais ou menos argutas. Cada uma delas apreende toda a proposição enunciada (sujeito, verbo e atributo), mas apreende-a melhor ou pior. N o céu, todos os bem-aventurados vêem Deus imediata­ mente, mas com penetração diferente, proporcionada aos seus

méritos, e nunca tão profundamente como Deus se conhece

a si mesmo, tanto quanto é cognoscível, em tudo o que é, em tudo o que pode, em tudo o que quer (x).

A LUZ D A GLÓRIA, PRINCÍPIO D A VISÃO BEATÍFICA Esta visão iiítuitiva e imediata atinge, assim, o próprio objecto da visão incriada que Deus tem de si mesmo; atinge-o menos perfeitamente que Ele, mas atinge-o.

Como sera isso possível? Seria absolutamente impossível para qualquer inteligência criada ou por criar, entregue unicamente às suas forças naturais, porque estas forças são proporcionadas ao seu objecto natural, infinitamente infe­ rior ao objecto próprio da inteligência divina. A inteligência criada, por muito elevada que seja, tem, pois, necessidade de uma luz sobrenatural que a eleve, que a fortaleça, para se tornar capaz de ver a Deus como Ele é em si mesmo; de outro modo ficaria diante d’Ele, como a ave nocturna diante do sol e não o poderia ver (2). Esta luz recebida per­ manentemente na inteligência dos bem-aventurados cha­ ma-se a luz da glória e é mais ou menos intensa, conforme o grau dos seus méritos e da sua caridade. O Concílio de Viena {D en z.,. 475) condenou aqueles que afirmavam que

(!) C fr. São Tom á s, I, q. 12, a. 6 e 7. D eu s, dizem os teó lo g o s é

v isto p elo s b e m -a v e n tu ra d o s, totus, sed non totaliter.

( a) C fr. São Tom ás, I, q. 12, a. 4 e 5.

«a alma humana não necessita de ser elevada pela luz da glória, para ver a Deus e gozar dele santamente».

A visão beatífica deriva assim, da faculdade intelectual dos bem-aventurados, como seu princípio fundamental e deriva da luz da glória, como princípio próximo que au­ menta até a vitalidade da nossa inteligência, para lhe comu­ nicar uma vida nova. Portanto, a virtude infusa da caridade aumenta a vitalidade da nossa vontade.

A luz da glória e a caridade infusa, recebidas em ambas as nossas faculdades superiores, derivam da graça santi- ficante consumada, recebida como um enxerto divino na própria essência da alma. Compreende-se, então, cada vez melhor, que a graça santificante mereça chamar-se partici­

pação da natureza divina, porque é um princípio fundamental

de operações que, quando plenamente desenvolvido, nos tom a capazes de ver Deus imediatamente, como Ele se vê a si mesmo. Em Deus, a natureza divina é o princípio das operações estritamente divinas, tais como a visão incriada de si mesmo; na alma justa, no céu, a graça santificante é princípio fundamental da visão intuitiva da essência divina, visão que tem o mesmo objecto que o conhecimento incriado, sem contudo penetrar tão profundamente nele.

O OBJECTO D A ^ISÃO BEATÍFICA O objecto primário e essencial é o próprio Deiis; o objecto secundário são as criaturas conhecidas em Deus.

Os bem-aventurados vêem Deus clara e intuitivamente, tal qual é, quer dizer: a sua essência, os seus atributos e as três pessoas divinas. O concílio de Florença (Denz., 693) diz: «intuem claramente o próprio Deus, tal qual é» (x). Por isso, a visão beatífica ultrapassa imensamente, não apenas

0 «Intuentur clare ipsum Deum trinum et unum sicuti est».

a mais sublime filosofia, mas o conhecimento natural dos anjos mais perfeitos, criados ou por criar. Os bem-aventu­ rados contemplam todas as perfeições divinas concentradas e harmoniosas, na sua fonte comum, a Essência divina, que as contém eminente e formalmente, mais e melhor que a luz branca contém as sete cores do arco-íris. Não têm difi­ culdade em perceber que a mais terna misericórdia e a mais inflexível justiça procedam de um só e mesmo Amor, infi­ nitamente generoso e infinitamente santo; nem que a memsa qualidade eminente do amor identifique em si atributos na aparência tão opostos. Os bem-aventurados assistem à sempre constante e sempre variada união da justiça e da misericórdia em todas as obras de Deus. Compreendem que o amor incriado, mesmo no seu arbítrio mais livre, se iden­ tifique com a pura sabedoria; que nada de menos sábio haja nele, nem na divina sabedoria seja o que for que se não converta em amor. Vêem este amor identificar-se com o . Bem supremo, amado desde toda a eternidade; a divina Sabedoria identificar-se com a Verdade primeira, sempre conhecida. E concebem todas estas perfeições como a mera essência daquele que é.

Eles contemplam esta simplicidade eminente de Deus, esta pureza e esta santidade absolutas, condensação de todas as perfeições, sem sombra de qualquer imperfeição.

Mediante uma mesma e única visão intelectual, nunca interrompida, vêem também a infinita fecundidade da natu­ reza divina desabrochar em três pessoas, assistem à eterna geração do Verbo, «esplendor do Pai e imagem da sua substância», a inefável espiração do Espírito Santo, termo do amor mútuo do Pai e do Filho, que os une eternamente na mais íntima difusão deles mesmos.

A í temos o objecto primário da visão beatífica.

N a terra, só conseguimos enumerar as perfeições divinas umas após outras, e não vemos de que maneira íntima elas se conciliam, de que forma a infinita bondade se harmoniza com a permissão do mal e, por vezes, de um mal terrível.

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Dizem os, é certo, que Deus permite o mal para maior bem, mas este bem não o vemos ainda a descoberto. Pelo con­ trário, no cóu, tudo se esclarecerá. Mediremos todo o valor dos sofrimentos suportados, veremos como concordam Inti­ mamente a justiça infinita, tão inflexível, e a infinita mise­ ricórdia, com o se conciliam no amor incriado da divina Bondade; com efeito, esta é essencialmente difusa de si mesma, constitui o princípio da misericórdia; e, por outro lado, esta infinita bondade tem direito a ser amada acima de tudo, na sua qualidade de princípio da justiça. N ós, na terra, somos como um homem que conhecesse as cores do arco-íris, mas que nunca tivesse visto a luz branca. N o céu, veremos a Luz incriada e, por isso mesmo, passaremos a compreender que as mais diferentes perfeições divinas se conciliem nela e formem uma coisa só.

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* *

Os bem-aventurados vêem também em Deus, in Verbo, a humanidade santa que o filho único assumiu para sempre, a fim de nos salvar. Contemplam nela a graça da união hipos- tática, a plenitude da graça, da glória e da caridade da alma santa de Jesus, o valor infinito dos seus'actos teândricos, o valor sem medida do mistério da redenção, o seu reflexo, o valor infinito de cada missa, a vitalidade sobrenatural de todo o corpo místico da Igreja, triunfante, purgante e mili­ tante. Contemplam, admirados, as prerrogativas de Cristo com o sacerdote eterno, como juiz dos vivos e dos mortos, como rei universal de todas as criaturas e com o pai dos pobres.

Pela própria visão beatífica, os santos contemplam em Deus a eminente dignidade da sua Mãe: a plenitude de giaça, as virtudes, os dons, a mediação universal e corre- dentora.

E, como a bem-aventurança encerra um estado perfeito que pressupõe todos os bens legítimos, cada santo no céu conhece em Deus os restantes bem-aventurados, sobretudo aqueles que conheceu anteriormente e que amou sobrena­ turalmente.

D o mesmo m odo, cada santo vê, quer em Deus quer fora dele, através de ideias criadas, aqueles que ainda vivem na terra ou que estão no purgatório e se encontram ligados a ele por determinada relação (x). Por exemplo, o fundador de uma ordem está a par de tudo o que diz respeito à família religiosa, e sabe das orações que os seus filhos lhe dirigem. Um pai e uma mãe conhecem as necessidades espirituais dos filhos que ainda vivem na terra; um amigo, chegado ao fim da viagem, encontra-se preparado para facilitar a viagem dos amigos que se dirigem a ele. São Cipriano(2) diz-nos: «Todos aqueles de nós que chegaram à pátria, esperam pelos outros e desejam-lhes ardentemente a mesma felicidade • e mostram-se cheios de solicitude para com eles».

A visão beatífica constitui, pois, um acto único, sempre idêntido, medido pelo único instante da imóvel eternidade que nos espera; trata-se, pois, de um acto inamissível, fonte da felicidade dos eleitos e, como vamos ver, da sua impecabilidade absoluta.

Neste conhecimento sobrenatural perfeito, tudo se har­ moniza; já não há o perigo de prestar demasiada atenção ao que é secundário, perdendo de vista o principal. N ão se

C) Cfr. SÂo T o m ás, I, q. 12, a. 10. O que os bem-aventurados vêem

em Deus, vêem-no, não sucessivamente, mas simultâneamente, porque a visão beatífica, medida pela eternidade participada, não comporta qualquer sucessão. O que os bem-aventurados apreendem sucessiva­

mente, apreendem-no extra Verbum, por um conhecimento inferior { à visão beatífica e por isso, lhe chamam a visão do crepúsculo, ao

passo que a primeira equivale a uma eterna manhã. Ctx.. Qi.çt... théol.

cath., art. «Intuitive» (vision), c. 2.387, e segs.

(2) De imortalitate, c. 25.

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 142-146)