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NO PURGATÓRIO SUA NATUREZA

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 109-112)

A pena da privação de Deus, como vimos, pune o homem por se ter afastado dele. A pena dos sentidos pune-o por se ter voltado para a criatura sem a referir a Deus. N o pecado venial verifica-se esta segunda desordem, independentemente da primeira.

Que no purgatório há uma pena dos sentidos é ponto de doutrina assente na Igreja, tanto grega como latina: aflição positiva, dor, tristeza, vergonha de consciência; e a maior parte dos teólogos admite que todas as almas do purga­ tório têm de suportar até ao fim esta\pena dos sentidos (x). Os gregos cismáticos, porém, embora admitam sem ambages esta pena dos sentidos e reconheçam a existência do fogo do inferno, negam a do purgatório. O Concílio de Florença não condenou esta opinião da Igreja grega.

A Igreja latina, pelo contrário, admite que a pena dos sen­ tidos se traduz no fogo do purgatório. (Denz-, 3.047, 3.050) C2) Após longas discussões e buscas históricas sobre este ponto, parece prudente concluir, na peugada de Belarmino

(x) Cfr. Diet, théol. cath., art. Purgatòire, c. 1.292. (2) Cfr. Ibid., art., Feu du purgatòire. c. 2.258-2.261.

: e Suarez, como conclui o autor do artigo Feu du purgatòire 0 : «Embora a existência do fogo do purgatório seja menos certa do que a existência do fogo do inferno, a doutrina que admite um fogo real no purgatório deve qualificar-se de

probabilíssima e a opinião contrária de improvável. Isto por

muitas razões: 1.° o consenso dos teólogos escolásticos, 2,° a autoridade de São Gregório (Diálogo, 1. IV, c. 39, 45); 3.° a autoridade de Santo Agostinho (Enchir., c. 69, D e Civ.

Dei, 1. XXI, c. 26); 4.° testemunhos concordes de São Ci-

priano, São Basílio, São Cesário, da liturgia que pede a refri­

geração das almas; 5.° o consenso unânime dos Padres la­

tinos no concílio de Florença; 6.° o fundamento bastante provável na epístola de São Paulo, I Cor., III, 13-15 (2); 7.°, finalmente, as revelações particulares, (por exemplo, as de Catarina de Ricci, a que já fizemos referência).

Segundo os mesmos testemunhos, este fogo do purga­ tório é um fogo real e mesmo corpóreo, como o do inferno. O que se acaba de dizer leva-nos a pensar nas vibrações moleculares, aptas para produzirem uma sensação de calor.

Como é que o fogo do purgatório pode fazer sofrer as almas separadas do corpo, já naturalmente desprovidas das faculdades sensitivas?

A esta questão deve responder-se do mesmo modo que se respondeu lá atrás, em relação ao fogo do inferno (3). Este fogo actua na alma, não por virtude própria, mas a título de instrumento de justiça divina, da mesma maneira que a água do baptismo produz, sob a influência de Deus, a graça nas nossas almas. Se não se receberam bem os ins­ trumentos da misericórdia divina, deverá sofrer-se os ins­ trumentos da sua justiça.

(-1) Vide E. Hu g o n, Tract, dogmatici-, D e Novissimis, 1927, pág.

824. Vide também Diet., théol. cath., c, 2.260.

(2) «O fogo provará qual seja a obra de cada um». (3) Cfr. supra: III Parte.

Este modo da actuação do fogo continua a ser misterioso;

tem por efeito, segundo afirma São Tomás (x) ligar, manietar de certo modo a alma, isto é, impedi-la de agir como e onde gostaria de agir. Sofre, assim, a humilhação de de­ pender de uma criatura material. Sofrimento que' não deixa de ter certa analogia com o que experimenta uma pessoa paralisada, impedida de fazer os movimentos que gostaria de fazer.

AS PENAS D O PURGATÓRIO SERÃO VOLUNTÁRIAS? À pergunta que na epígrafe se formula, São Tomás (2) responde afirmativamente. As penas do purgatório são vo­ luntárias, uma vez que a alma quer suportá-las, como meio imposto pela justiça divina para chegar ao fim ultimo; quere-o tanto mais, quanto melhor conhece a conveniência perfeita desta viva dor; realmente, a aceitação voluntária da dor purifica as profundezas da vontade, já que remove todo o egoísmo ou busca de si mesma. A alma não teria a coragem de impor a si mesma uma pena tão íntima e tão profunda, mas aceita-a voluntàriamente.

Serão estas almas purificadas só pela justiça divina ou deverão, por outro lado, sofrer por» parte dos demónios? São Tomás dá uma resposta profunda (3): «Os eleitos, no purgatório, sofrem apenas por parte da justiça divina; não têm de sofrer por parte dos demónios, porque alcançaram vitória sobre eles; e Deus não se serve também dos anjos bons para realizar esta purificação dolorosa». É, portanto, inflingida pela justiça divina, que anda sempre unida à mi­ sericórdia.

(!) Cfr. C. Gentes, I. IV, c. 90 e III a, Suppl., q. 70, a. 3. (2) Apêndice ao Suplemento, a. 4.

(3) Loc. cit., a. 5.

Que pensar acerca do lugar do purgatório ? N ão se pode determinar com certeza. A revelação não é suficientemente explícita a esse respeito. Apenas são lícitas as simples con­ jecturas. O que é certo é que as almas separadas do corpo já não têm relações com os que vivem na terra, embora ex­ cepcionalmente possam manifestar-se a nós, para nos ins­ truírem e pedirem os nossos sufrágios.

Os sofrimentos do purgatório diminuirão progressiva­ mente O ? Diminuem sob certo ponto de vista, na medida em que os restos do pecado desaparecem pouco a pouco como ferrugem nas nossas faculdades e na medida também em que a pena a suportar diminui. Mas, por outro lado, estes sofri­ mentos aumentam com o desejo veemente de ver a Deus. A duração do purgatório, como se disse atrás (2) não se identifica com o nosso tempo contínuo. Parece-se é certo, com ele, enquanto há uma sucessão de pensamentos e de sentimentos medidos por um tempo descontínuo, em que j:ada pensamento ou sentimento tem por medida um ins­

tante espiritual, seguido de outro (3). Um instante espiri­ tual do purgatório pode durar vários dias do nosso tempo solar.

POR Q UAN TO TEMPO PODEM PERM ANECER AS ALM AS N O PURGATÓRIO? (4)

O purgatório em si durará até ao juízo final, segundo várias declarações da Igreja (5) baseadas na Tradição e nas palavras da Escritura relativas ao juízo universal: «Esses irãfl^para o suplício eterno e os justos para a vida eterna»

(M at., XXV, 46). Deixará, nesta altura, de haver purgatório,

(*) Cfr. D iet, théol. cath., art. Purgatoire, c. 1295. (2) Cfr. supra, II Parte.

(3) SAo Tom ás, I, q. 10, a. 5 e ad lm . (4) Crf! Diet, théol■ cath., ibid., col. 1.289.

(?) Denz., 464, 693, 3.035, 3.047, 3.050.

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mas os últimos dos eleitos serão suficientemente purificados antes de morrer: {Mat., XXIV, 24): «Levantar-se-ão falsos Cristos e falsos profetas e farão grandes prodígios e coisas extraordinárias, para seduzirem, se fosse possível, os pró­ prios eleitos». Um pouco antes (v. 22), diz-se: «Se estes dias não fossem abreviados, ninguém escaparia, mas serão abreviados em atenção aos escolhidos». O fim do purgatório chegará quando o número dos eleitos estiver completo e já não tiver razão de ser a sucessão das gerações humanas. Portanto, o purgatório terá fim.

Porém, tratando-se de uma alma em particular, deve dizer-se que a pena será tanto mais longa e mais intensa,

quanto maior expiação exigir.

Segundo São Tomás C1) «o rigor da pena do purgatório corresponde propriamente à gravidade da falta e a duração será tanto maior quanto mais radicada no sujeito ela se en­ contrar; pode acontecer que alguém fique lá mais tempo e seja menos atormentado que outrém que dele seja libertado mais depressa, depois de ter sofrido mais intensamente».

N ão é difícil compreender que assim seja. O mesmo acontece na vida presente. Se, por exemplo, se comete,uma; falta grave contra a pátria, deve sofrer-se uma pena muito dura, mas breve; se se comete uma falta premeditada, enrai­ zada no sujeito, a pena pode ser de prisco perpétua. O mesmo se dá ainda na vida espiritual; requer-se uma penosa e breve purificação para um pecado grave e uma purificação mais longa, mas ménos penosa, para um pecado menos grave, mas enraizado no sujeito desde há muito.

D om ingos Soto (2) e Maldonat ensinaram que os sofri­ mentos do purgatório são tão penosos e os sufrágios da Igreja tão eficazes que nenhuma alma, seja qual for a sua dívida, deve permanecer nele por mais de vinte, ou mesmo

(x) IV Sent., d. 21, q. 1, a. q. 3, 1 m e Apêndice ao Suplemento, a. 8. (2) IV Sent., d. 19, q. 3, a. 2 .. . , .

dez anos. Quase todos os teólogos rejeitam esta opinião; pode conceber-se que certas almas, convertidas no último momento, após uma vida de graves desordens não expiadas, permaneçam no purgatório por mais tempo. Os teólogos, em geral, pronunciam-se a favor de uma duração bastante longa (1).

Sabe-se, através de certas revelações, que o purgatório chega a durar três a quatro séculos ou mais, no caso de faltas muito graves, perdoadas no último momento, antes da morte, sobretudo se tais almas tiveram grandes responsa­ bilidades em altos cargos.

Lembremo-nos, aliás, de que no purgatório já não se dá o tempo contínuo, tempo solar, horas, dias e anos; o que existe é a eviternidade ou aevum, que mede o que há de imutável na substância das almas e também o que há de imutável no conhecimento de si mesmas e de Deus, enfim, do que há de imutável no seu amor; e há o tempo descon­

tínuo que mede a sucessão dos seus pensamentos e dos seus

sentimentos.

Este tempo descontínuo, como vimos, compõe-se de instantes espirituais sucessivos, e cada um destes instantes pode corresponder a dez, vinte, trinta ou sessenta horas do nosso tempo solar, da mesma maneira que uma pessoa pode permanecer trinta horas absorvida pelo êxtase, a contas com um só pensamento. Portanto, não há proporção entre o nosso tempo solar e o tempo descontínuo do pur­ gatório. Se porventura alguém vem a saber, por revelação, que determinada alma é libertada do purgatório em determinado instante do nosso tempo, este instante corresponde ao ins­ tante espiritual da sua libertação.

C1) Cfr. R. Belarmino, De gemitu columbae, 1. II, c. 9.

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 109-112)