A pena da privação de Deus, como vimos, pune o homem por se ter afastado dele. A pena dos sentidos pune-o por se ter voltado para a criatura sem a referir a Deus. N o pecado venial verifica-se esta segunda desordem, independentemente da primeira.
Que no purgatório há uma pena dos sentidos é ponto de doutrina assente na Igreja, tanto grega como latina: aflição positiva, dor, tristeza, vergonha de consciência; e a maior parte dos teólogos admite que todas as almas do purga tório têm de suportar até ao fim esta\pena dos sentidos (x). Os gregos cismáticos, porém, embora admitam sem ambages esta pena dos sentidos e reconheçam a existência do fogo do inferno, negam a do purgatório. O Concílio de Florença não condenou esta opinião da Igreja grega.
A Igreja latina, pelo contrário, admite que a pena dos sen tidos se traduz no fogo do purgatório. (Denz-, 3.047, 3.050) C2) Após longas discussões e buscas históricas sobre este ponto, parece prudente concluir, na peugada de Belarmino
(x) Cfr. Diet, théol. cath., art. Purgatòire, c. 1.292. (2) Cfr. Ibid., art., Feu du purgatòire. c. 2.258-2.261.
: e Suarez, como conclui o autor do artigo Feu du purgatòire 0 : «Embora a existência do fogo do purgatório seja menos certa do que a existência do fogo do inferno, a doutrina que admite um fogo real no purgatório deve qualificar-se de
probabilíssima e a opinião contrária de improvável. Isto por
muitas razões: 1.° o consenso dos teólogos escolásticos, 2,° a autoridade de São Gregório (Diálogo, 1. IV, c. 39, 45); 3.° a autoridade de Santo Agostinho (Enchir., c. 69, D e Civ.
Dei, 1. XXI, c. 26); 4.° testemunhos concordes de São Ci-
priano, São Basílio, São Cesário, da liturgia que pede a refri
geração das almas; 5.° o consenso unânime dos Padres la
tinos no concílio de Florença; 6.° o fundamento bastante provável na epístola de São Paulo, I Cor., III, 13-15 (2); 7.°, finalmente, as revelações particulares, (por exemplo, as de Catarina de Ricci, a que já fizemos referência).
Segundo os mesmos testemunhos, este fogo do purga tório é um fogo real e mesmo corpóreo, como o do inferno. O que se acaba de dizer leva-nos a pensar nas vibrações moleculares, aptas para produzirem uma sensação de calor.
Como é que o fogo do purgatório pode fazer sofrer as almas separadas do corpo, já naturalmente desprovidas das faculdades sensitivas?
A esta questão deve responder-se do mesmo modo que se respondeu lá atrás, em relação ao fogo do inferno (3). Este fogo actua na alma, não por virtude própria, mas a título de instrumento de justiça divina, da mesma maneira que a água do baptismo produz, sob a influência de Deus, a graça nas nossas almas. Se não se receberam bem os ins trumentos da misericórdia divina, deverá sofrer-se os ins trumentos da sua justiça.
(-1) Vide E. Hu g o n, Tract, dogmatici-, D e Novissimis, 1927, pág.
824. Vide também Diet., théol. cath., c, 2.260.
(2) «O fogo provará qual seja a obra de cada um». (3) Cfr. supra: III Parte.
Este modo da actuação do fogo continua a ser misterioso;
tem por efeito, segundo afirma São Tomás (x) ligar, manietar de certo modo a alma, isto é, impedi-la de agir como e onde gostaria de agir. Sofre, assim, a humilhação de de pender de uma criatura material. Sofrimento que' não deixa de ter certa analogia com o que experimenta uma pessoa paralisada, impedida de fazer os movimentos que gostaria de fazer.
AS PENAS D O PURGATÓRIO SERÃO VOLUNTÁRIAS? À pergunta que na epígrafe se formula, São Tomás (2) responde afirmativamente. As penas do purgatório são vo luntárias, uma vez que a alma quer suportá-las, como meio imposto pela justiça divina para chegar ao fim ultimo; quere-o tanto mais, quanto melhor conhece a conveniência perfeita desta viva dor; realmente, a aceitação voluntária da dor purifica as profundezas da vontade, já que remove todo o egoísmo ou busca de si mesma. A alma não teria a coragem de impor a si mesma uma pena tão íntima e tão profunda, mas aceita-a voluntàriamente.
Serão estas almas purificadas só pela justiça divina ou deverão, por outro lado, sofrer por» parte dos demónios? São Tomás dá uma resposta profunda (3): «Os eleitos, no purgatório, sofrem apenas por parte da justiça divina; não têm de sofrer por parte dos demónios, porque alcançaram vitória sobre eles; e Deus não se serve também dos anjos bons para realizar esta purificação dolorosa». É, portanto, inflingida pela justiça divina, que anda sempre unida à mi sericórdia.
(!) Cfr. C. Gentes, I. IV, c. 90 e III a, Suppl., q. 70, a. 3. (2) Apêndice ao Suplemento, a. 4.
(3) Loc. cit., a. 5.
Que pensar acerca do lugar do purgatório ? N ão se pode determinar com certeza. A revelação não é suficientemente explícita a esse respeito. Apenas são lícitas as simples con jecturas. O que é certo é que as almas separadas do corpo já não têm relações com os que vivem na terra, embora ex cepcionalmente possam manifestar-se a nós, para nos ins truírem e pedirem os nossos sufrágios.
Os sofrimentos do purgatório diminuirão progressiva mente O ? Diminuem sob certo ponto de vista, na medida em que os restos do pecado desaparecem pouco a pouco como ferrugem nas nossas faculdades e na medida também em que a pena a suportar diminui. Mas, por outro lado, estes sofri mentos aumentam com o desejo veemente de ver a Deus. A duração do purgatório, como se disse atrás (2) não se identifica com o nosso tempo contínuo. Parece-se é certo, com ele, enquanto há uma sucessão de pensamentos e de sentimentos medidos por um tempo descontínuo, em que j:ada pensamento ou sentimento tem por medida um ins
tante espiritual, seguido de outro (3). Um instante espiri tual do purgatório pode durar vários dias do nosso tempo solar.
POR Q UAN TO TEMPO PODEM PERM ANECER AS ALM AS N O PURGATÓRIO? (4)
O purgatório em si durará até ao juízo final, segundo várias declarações da Igreja (5) baseadas na Tradição e nas palavras da Escritura relativas ao juízo universal: «Esses irãfl^para o suplício eterno e os justos para a vida eterna»
(M at., XXV, 46). Deixará, nesta altura, de haver purgatório,
(*) Cfr. D iet, théol. cath., art. Purgatoire, c. 1295. (2) Cfr. supra, II Parte.
(3) SAo Tom ás, I, q. 10, a. 5 e ad lm . (4) Crf! Diet, théol■ cath., ibid., col. 1.289.
(?) Denz., 464, 693, 3.035, 3.047, 3.050.
206 O H O M E M E A E T E R N I D A D E A P E N A D O S S E N T I D O S 207
mas os últimos dos eleitos serão suficientemente purificados antes de morrer: {Mat., XXIV, 24): «Levantar-se-ão falsos Cristos e falsos profetas e farão grandes prodígios e coisas extraordinárias, para seduzirem, se fosse possível, os pró prios eleitos». Um pouco antes (v. 22), diz-se: «Se estes dias não fossem abreviados, ninguém escaparia, mas serão abreviados em atenção aos escolhidos». O fim do purgatório chegará quando o número dos eleitos estiver completo e já não tiver razão de ser a sucessão das gerações humanas. Portanto, o purgatório terá fim.
Porém, tratando-se de uma alma em particular, deve dizer-se que a pena será tanto mais longa e mais intensa,
quanto maior expiação exigir.
Segundo São Tomás C1) «o rigor da pena do purgatório corresponde propriamente à gravidade da falta e a duração será tanto maior quanto mais radicada no sujeito ela se en contrar; pode acontecer que alguém fique lá mais tempo e seja menos atormentado que outrém que dele seja libertado mais depressa, depois de ter sofrido mais intensamente».
N ão é difícil compreender que assim seja. O mesmo acontece na vida presente. Se, por exemplo, se comete,uma; falta grave contra a pátria, deve sofrer-se uma pena muito dura, mas breve; se se comete uma falta premeditada, enrai zada no sujeito, a pena pode ser de prisco perpétua. O mesmo se dá ainda na vida espiritual; requer-se uma penosa e breve purificação para um pecado grave e uma purificação mais longa, mas ménos penosa, para um pecado menos grave, mas enraizado no sujeito desde há muito.
D om ingos Soto (2) e Maldonat ensinaram que os sofri mentos do purgatório são tão penosos e os sufrágios da Igreja tão eficazes que nenhuma alma, seja qual for a sua dívida, deve permanecer nele por mais de vinte, ou mesmo
(x) IV Sent., d. 21, q. 1, a. q. 3, 1 m e Apêndice ao Suplemento, a. 8. (2) IV Sent., d. 19, q. 3, a. 2 .. . , . ■
dez anos. Quase todos os teólogos rejeitam esta opinião; pode conceber-se que certas almas, convertidas no último momento, após uma vida de graves desordens não expiadas, permaneçam no purgatório por mais tempo. Os teólogos, em geral, pronunciam-se a favor de uma duração bastante longa (1).
Sabe-se, através de certas revelações, que o purgatório chega a durar três a quatro séculos ou mais, no caso de faltas muito graves, perdoadas no último momento, antes da morte, sobretudo se tais almas tiveram grandes responsa bilidades em altos cargos.
Lembremo-nos, aliás, de que no purgatório já não se dá o tempo contínuo, tempo solar, horas, dias e anos; o que existe é a eviternidade ou aevum, que mede o que há de imutável na substância das almas e também o que há de imutável no conhecimento de si mesmas e de Deus, enfim, do que há de imutável no seu amor; e há o tempo descon
tínuo que mede a sucessão dos seus pensamentos e dos seus
sentimentos.
Este tempo descontínuo, como vimos, compõe-se de instantes espirituais sucessivos, e cada um destes instantes pode corresponder a dez, vinte, trinta ou sessenta horas do nosso tempo solar, da mesma maneira que uma pessoa pode permanecer trinta horas absorvida pelo êxtase, a contas com um só pensamento. Portanto, não há proporção entre o nosso tempo solar e o tempo descontínuo do pur gatório. Se porventura alguém vem a saber, por revelação, que determinada alma é libertada do purgatório em determinado instante do nosso tempo, este instante corresponde ao ins tante espiritual da sua libertação.
C1) Cfr. R. Belarmino, De gemitu columbae, 1. II, c. 9.