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AS RAZÕES TEOLÓGICAS CERTAS DA EXISTÊNCIA DO PURGATÓRIO

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 100-104)

. O dogma definido do purgatório não tem o seu funda­ mento apenas na Escritura e na Tradição; pode ainda de­ duzir-se com certeza de verdades reveladas mais universais, onde se encontra implicitamente contido. Aí temos as razões teológicas da necessidade e da existência do purga­ tório a demonstrá-lo. N ão devem confundir-se com as razões de conveniência de que acabámos de faiar e que podem ser propostas aos incrédulos. Trata-se de razões certas, apoiadas em princípios revelados aceites pela fé.

São Tomás (x) começa por formular a seguinte pergunta:

(’) Vide, sobre todo este assunto, São Tomás, Comentário sobre

as Sentenças, 1. IV, dist. 21, q. 1, a. 1, q.a I e segs. Estas páginas

foram reproduzidas integralmente num Apêndice ao Suplemento da

Sum a Teológica: quaestio unica de purgatorio.

Em certas edições da Suma Teológica, este Apêndice aparece inserto no Suplemento depois da questão 72 e só compreende dois artigos; nas melhores edições, como a leonina (Roma, 1906) colo­ cam-no no fim do Suplemento e compreende 8 artigos, reproduzindo então tudo o que se diz sobre esta matéria no Comentário das Sen­ tenças. Como as citações deste comentário são muito complicadas, Citamos aqui o Apêndice completo ao Suplemento.

«Haverá um purgatório depois da morte?» E apresenta logo a seguir dois argumentos de autoridade: o texto clássico do Livro II dos Macabeus, XII, 45 e um texto de São Gre­ gório Nisseno, e passa depois a expor uma razão teológica da existência do purgatório.

Segundo a justiça divina, é necessário que quem morre arrependido dos seus pecados, sem ter sofrido ainda a pena temporal que eles merecem, a sofra na outra vida. Ora, no momento da morte, apesar da contrição que apaga o pecado e redime da pena eterna, acontece muitas vezes que

a pena temporal, devida pelos pecados remidos, continua p o r cumprir, pelo menos em parte e sucede também permane­

cerem na alma pecados veniais. É preciso, portanto, que, segundo a justiça divina, a alma destes defuntos sofra uma pena temporal na outra vida. São Tomás acrescenta: «Aque­ les que negam o purgatório, falam, pois, contra a justiça divina e caem na heresia, como disse São Gregório Nisseno».

Esta razão teológica, baseada na necessidade de satis­ fação, é apodítica e desfaz o fundamento da negação pro­ testante do purgatório (-1). Invoca-a o concílio de Trento

(Denz., 904), quando define como «absolutamente falso e

contrário à palavra de Deus sustentar que o pecado jamais pode ser perdoado, sem que, ao mesmo tempo, seja remida

toda a pena p o r ele devida» (2). Isto só é verdadeiro, diz o Con­

cílio C3), relativamente aos pecados perdoados pelo baptismo, mas não àqueles qüe foram cometidos por maior ingratidão, após o baptismo e perdoados pela contrição e sacramento da penitência. Fica, muitas vezes, por sofrer uma pena tenjporal devida pelos pecados já perdoados.

C1) Diet, théol. cath., art. Purgatoire (A. Michel), col. 1,179, esegs, 1.285. — Esta razão teológica é apresentada por Suarez no seu tra­ tado De Purgatorio (Opera, Vivès t. X X II, pág. 879). Teólogos mais recentes não lhe têm dedicado a devida atenção.

(2) Cfr. ibid,, cân. 12 e 15; Denz., 922, 925. (3) Ibid., 904.

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Quanto ao baptismo dos adultos, as coisas passam-se de outro modo, porque o Senhor concede-lhes, como pre­ sente de boas-vindas, a remissão de todas as penas. Era por isso que outrora, algumas pessoas adiavam o baptismo para o mais tarde possível.

Esta razão teológica baseia-se no que a Escritura diz a respeito da penitência (x). Já no Antigo Testamento se vê que, mesmo após a remissão do pecado, resta muitas vezes uma pena temporal a sofrer. O Livro da Sabedoria (X ,l) diz que Deus «tirou Adão do seu pecado» e, entretanto, ele teve de continuar a cultivar o solo com o suor do seu rosto

(Gén., III, 17). Moisés, em punição de uma falta já perdoada,

não entrou na terra prometida (Números, XX, 12; Deut., XXXIV, 4). Embora David se tivesse arrependido do seu adultério e tivesse recebido já o perdão, foi punido devido a ele com a morte do filho (II Reis, XII, 14). Jesus e os apóstolos pregam a necessidade da penitência e das boas obras satisfatórias para expiação dos pecados já perdoados. Paulo (II Cor., VI, 5) fala «dos trabalhos, vigílias, jejuns» que a Igreja considerou sempre como «dignos frutos de penitência», conforme a palavra do Precursor (M at., III, 8) í2). Diz-se muitas vezes na Escritura que a esmola liberta da pena devida pelo pecado (3). As boas obras meritórias são ao mesmo tempo satisfatórias; supõem, pois, o estado de graça ou a remissão dos pecados e constituem uma repa­ ração (4). Acontece o mesmo na ordem natural; não basta que o raptor da filha do rei a restitua; é necessário, além

(*) Cfr. Catecismo do Concílio de Trento, 1, cap. 2 4 , 1 1 , Neces­ sidade da satisfação.

(*) Cfr. Cone. de Trento, Denz., 806, 807.

( 3) T o b . , IV, 1 1 ; Xn, 9 ; E c l e s . , m, 3 3 ; D a n . , IV, 2 4 ; L u c . , XI, 4 1 . Cfr. S A o T o m á s , Suppl., q. 1 5 , a . 3 .

(4) Cfr. SAo T o m á s , Suppl., q . 1 4 , a. 2: «Sine caritate opera facta non sunt satisfactoria, sec. illud Pauli: «Si distribuero in cibos pau- perum, caritatem autem non habuero, nihil prodest» I C or., XIII, 3.

disso, que repare a injúria, sofrendo uma pena proporcio-

t nada.

Com efeito, não basta deixar de pecar, nem mesmo arrepender-se, é preciso que a ordem da justiça violada seja restabelecida mediante a aceitação voluntária de uma pena compensadora 0 ). A vontade criada, que se insurgiu contra a ordem divina, deve, mesmo após o arrependimento,

t . sofrer uma pena: por se ter afastado de Deus, vê-se privada da sua posse durante certo tempo e, por ter preferido a Ele um bem criado, deve sofrer uma pena chamada a pena dos sentidos.

Mas... — objectaram os protestantes — Cristo, redentor, já satisfez superabundantemente por todos os nossos pe­ cados. A Tradição respondeu sempre: os méritos satisfa­ tórios de Cristo são certamente suficientes para resgate de todos os homens, mas é ainda preciso que eles nos sejam

aplicados, para serem eficazes em nós (2). São-nos aplicados

..pelo baptismo, e, após alguma eventual recaída, pelo sacra­ mento da penitênc;a, do qual faz parte a satisfação. Assim como a causa primeira não'torna inúteis as causas segundas, mas antes lhes confere a dignidade da causalidade, também os méritos de Cristo, em vez de tornarem inúteis os nossos, fazem com que eles apareçam, para trabalharmos com Ele, por Ele e n’Ele, para salvação de todas as almas e da nossa em particular. Por isso, Paulo pode dizer (Coloss. I, 24): «Agora alegro-me nos sofrimentos por vós e completo na

m i n h a carne o que falta aos sofrimentos de Cristo, pelo

!! seu corpo (místico) que é a Igreja».

-•"A' negação da necessidade de satisfação neste mundo e da satispaixão no purgatório leva à negação da vida repa­ radora e até à negação luterana da necessidade dás boas

( J) SÃ O T o m á s , I, II, q . 87, a. 6 e Apêndice ao Suplemento, a. 7. (2) Cfr. B e l a r m i n o , De Purgatorio, c. XIV.

obras, como se a fé serri obras bastasse para a justificação e salvação.

Um dia, após uma conferência que fazíamos em Génova, um protestante muito instruído e de inteligência penetrante, veio ao nosso encontro. Dissemos-lhe: Como é que Lutero pôde chegar à conclusão de que, para a salvação basta a fé nos méritos de Cristo e que não é necessário cumprir os mandamentos, mesmo os que ordenam o amor a Deus e ao próximo? Ele respondeu: «É muito simples» — «Muito simples?» — «Sim, é diabólico» — acrescentou ele. — «Eu não teria coragem de lho ter dito — respondi — ; mas então, porque é luterano?» — «Na minha família — respondeu — todos o somos, pai e filhos, mas entrarei na Igreja católica brevemente».

Monsabré (x) chegou a escrever: «Para ser coerente com os seus princípios relativos à justificação, o protestantismo negou o dogma do purgatório. Se basta a fé nos méritos de Cristo para salvar o homem, sem o cuidado das obras após a morte não surge evidentemente questão alguma com a justiça divina. Nesta altura, só subsiste a audaciosa e imper­ turbável confiança na virtude redentora daquele cujos mé­ ritos se explora, apesar de se violarem todos os seus manda­ mentos. Mas é evidente que a negação derivada destes prin­ cípios, inventados pelos celerados, teip tanto de odiosa como de absurda... Revela-se incompreensível e bárbara, porque não há nada mais conforme à razão nem mais con­ solador para o coração humano do que a doutrina da Igreja. ...Para o protestantismo, à última hora, só subsiste a hor­ rível perspectiva de ou tudo ou nada. É impossível contar com o céu quando há a consciência de se ter sido miserável durante a vida toda e só se ter oferecido a Deus um arrepen­ dimento tardio, desacompanhado da reparação de tantas ofensas. Permanece apenas a perspectiva da maldição».

^ onf er^ncias de Notre-Dame, ano de 1889, 97.a Coiif., pág. 30

Aí temos a principal razão a favor da existência do pur­ gatório: necessidade de uma satisfação para os nossos pe­ cados (quer mortais quer veniais) já perdoados. N o purga­ tório dá-se uma satisfação voluntária, que supre o que faltou na terra como satisfação propriamente dita.

*

f * *

Dispomos de mais duas razões teológicas para justificar a necessidade da existência do purgatório: muitas vezes, subsistem na alma do justo, no momento em que ela se separa do corpo, pecados veniais, e, depois, há também as consequências dos pecados já perdoados, que se chamam

restos do pecado. Como nada que apresente manchas entra

no céu, tem de interceder uma purificação para remover esses obstáculos à visão de Deus.

* Que muitas vezes subsistem pecados veniais não há a menor dúvida. «A morte pode surpreender durante o sono uma pessoa em estado de graça que não se chegou a arre­ pender de um pecado venial (habitual) observa, a exemplo, São Tomás (x). «Para que o pecado venial seja perdoado, basta sem dúvida que nos cause pesar de uma maneira geral, e além disso, que esse pesar seja actual (2). Mas múitas almas que morrem em estado de graça apresentam ainda numerosos pecados veniais no momento da morte.

X Há ainda restos dos pecados perdoados, reliquiae peccati, cuj^jiatureza analisa São Tomás (3) : «Obtém-se remissão do pecãdo mortal — diz ele — na medida em que a graça ha­ bitual converte a Deus a alma que dele se havia afastado. Mas pode ficar uma inclinação mais ou menos desordenada

í 1) Apêndice ao Suplemento, a. 6, e D e M a lo , q. 7, a. 11.

(2) Cfr. D e M a lo , l. cit., ad 4 m «displicentia actualis». (8) U I, q. 86, a. 5.

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para um bem criado (como a que se encontra no pecado venial, conciliável com o estado de graça). E, portanto, nada impede que após o perdão do pecado mortal permaneçam em nós disposições desordenadas, causadas pelos actos pre­ cedentes, chamadas restos do pecado; estas disposições encontram-se sem dúvida enfraquecidas ou diminuídas na alma em estado de graça. É certo que não predominam, mas levam a recair no pecado, como a fom es peccati, isto é, o foco da cobiça no baptizado».

Pode verificar-se experimentalmente o que são as conse­ quências do pecado já perdoado, quando se pensa, por exemplo, num homem que tem o inveterado hábito do vinho e se confessou pela Páscoa. Recebeu, pela absolvição, a graça santificante e a virtude infusa da temperança; o pecado foi-lhe perdoado; mas de forma alguma dispõe da virtude adquirida da temperança; continua a manifestar inclinação para recair no pecado e, se não evita as ocasiões e não se mantém alerta, recairá.

Acontece o mesmo quando nutrimos uma antipatia que nos leva a dizer mal de alguém. Se nos confessamos com atrição bastante, o. pecado é perdoado, mas restam conse­ quências do pecado, uma certa inclinação para recair nele. Se não temos cuidado bastante, se não tomamos a resolução firme de evitar a maledicência, voltamos a cair nela. O pur­ gatório destina-se precisamente a eliniinar, além do mais, estas consequências do pecado, que subsistam para além da morte.

Pode objectar-se que tais consequências não subsistem naqueles que receberam bem a extrema-unção, porque este sacramento tem como efeito eliminar os restos do pecado.

Deve responder-se que nem todos aqueles que morrem em estado de graça recebem a extrema-unção, muitos não a recebem nas condições devidas e, além disso, como de­ monstra São Tomás (x), «a extrema-unção, (que tem por fim

(J) Suplemento, 30, a. 1, ad 2m. .

fortalecer a alma para o combate da agonia), diminui a fraqueza da alma de tal m odo que os hábitos desordenados, consequências dos pecados já remidos, não podem preju­ dicar-nos no momento derradeiro». Mas estes hábitos per­ manecem como ferrugem nas nossas faculdades e é preciso que sejam eliminados após a morte por meio da purificação, porque nada que esteja manchado pode entrar na glória.

Aqui temos as razões teológicas que fundamentam a necessidade e existência do purgatório: há, muitas vezes, uma pena temporal a sofrer pelos pecados já perdoados; é de acrescentar, em muitos casos, pecados veniais ainda não perdoados e hábitos defeituosos, equivalentes a restos de pecados já perdoados. Estes hábitos defeituosos, adquiridos na terra, desaparecem com a morte no que têm de sensitivo, mas permanecem como disposições desordenadas da von­ tade. Destas três razões, a principal é a primeira, e conside­ ramo-la até apodítica, a partir dos princípios revelados em que assenta í1).

í1) Vide Imitação, I, c. 24: D o Juízo e das penas dos pepadqres,

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