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A N ENH UM A PERPEIÇÃO DIVINA

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 73-76)

Tem-se objectado muitas vezes que a perpetuidade dos castigos divinos opõe-se à perfeição da justiça divina, porque a pena deve ser proporcionada à falta; ora, a falta, muitas vezes, dura apenas um instante; como pode ela merecer um castigo eterno? Além disso, as penas todas elas eternas, se­ riam iguais, quando se destinam a punir pecados muito diversos. Finalmente, a dor da pena seria muito maior do que o deleite encontrado no pecado.

São Tomás responde (x) : a pena deve ser proporcional não à duração do pecado actual, mas à sua gravidade. N a justiça humana, o asáassinato que apenas dura alguns minutos merece a pena de morte ou a prisão perpétua. D o mesmo modo, aquele que num momento traiu a Pátria, merece ser excluído dela para sempre. Ora, como vimos, o pecado mortal, sendo uma ofensa feita a Deus, apresenta uma gra­ vidade infinita; além disso, quando o pecado actual cessou, o pecado habitual continua como uma desordem irreparável, que merece uma pena sem limites (2).

(x) Suppl., q. 99, a. 1, ad 1.

O Cfr. SAo Tom ás, I, II, q. 87, a. 3, 5. 6, respostas às objecções.

Apesar da identidade de duração, as penas eternas são muito desiguais no rigor, na aspereza proporcional à gra­ vidade das faltas a expiar.

Finalmente, se as penas do inferno causam mais sofri­ mento que o deleite proporcionado pelo pecado mortal, estão, todavia, muito longe de ser mais dolorosas do que a gravidade de tal pecado. Como ofensa feita a Deus, a sua gravidade é incompreensível. O princípio continua a ser o mesmo: a pena proporciona-se à gravidade da falta e não ao prazer maior ou menor que nela se encontra.

Há quem tenha afirmado: mas, se é verdadeira a Reve­ lação interpretada pela Igreja, deve ir-se mais longe e afirmar que a justiça divina exigiria antes a redução ao nada ou aniquilação dos condenados, porque, pela sua ingratidão, mereceram perder o benefício da existência.

Primeiro, deve responder-se que a- Revelação divina, a única coisa que nos pode esclarecer nesta matéria, não nos diz que os condenados são aniquilados, mas sim eternamente punidos. Além disso, Deus que, pelo seu poder absoluto, poderia aniquilar as almas espirituais por natureza incor­ ruptíveis, prefere conservá-las e a Revelação anuncia mesmo a ressurreição geral dos corpos. Por outro lado, se a pena infligida por todo o pecado mortal sem arrependimento fosse a aniquilação, seria igual para todos os pecados mortais, quaisquer que fossem. Finalmente — como diz São Tomás O — , «embora aquele que peca gravemente contra Deus, autor da existência, mereça perdê-la, todavia, considerando a de­ sordem mais ou menos grave da falta cometida, o que lhe é devido não é a perda da existência, porque esta se pres­ supõe para o mérito e para o demérito e não se corrompe pela desordem do pecado».

Como muito bem diz Lacordaire (2) : «O pecador obsti­ nado o que quer é a aniquilação, porque esta livrá-lo-á de

(x) Suppl., q. 99, a. 1, ad 6.

(2) Conferências de Notre-Dame, 72.ft conf.

Deus (justo juiz) e livrá-lo-á pára sempre... Deus ver-se-ia assim obrigado a desfazer o que tinha feito e o que tinha feito para existir sempre... O Universo não pereceria, e seria possível que uma alma perecesse porque não quis conhecer Deus!... As almas viverão para sempre, como a obra mais preciosa do Criador; poderão sujar-se, mas não ser destruí­ das e Deus, pondo aí o selo da sua justiça, porque assim o quiseram, até da própria perdição extrairá expressões de ordem e arautos da sua glória».

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Os origenistas afirmaram que a eternidade das penas se opunha à infinita misericórdia, segundo a qual D eus está

sempre pronto a perdoar. ...

A isto responde São Tomás, (Suppl., q. 99, a. 2, ad lm): «Deus, em si mesmo, é de uma misericórdia sem limites-; * esta regula-se, portanto, pela sabedoria e daí não se esten­ der a certas pessoas que se tornaram indignas da mise­ ricórdia, isto é, aos demónios e aos condenados obstinados na sua malícia. Todavia, pode dizer-se que, mesmo em relação a eles, a misericórdia divina se exerce ainda, não para pôr fim à sua pena, mas para serem menos punidos do que mereciam (-1).

Além disso (2), se a misericórdia não se aliasse, mesmo no inferno, à justiça, os condenados sofreriam mais ainda. Como se diz no Salmo XXIV, 10: «Todos os caminhos do Sjginhor são misericórdia e justiça»; embora, por vezes, se manifeste mais a misericórdia e outras vezes mais a justiça, procedem ambas da soberana bondade e a justiça só se exerce secundàriamente quando a misericórdia divina foi

k - ...

(*) In quantum citra condignum puniuntur. . (2) Em I, q. 21, a. 4.

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desprezada; todavia, mesmo então intervém, não para su­ primir a pena, mas para a tornar menos pesada e menos dolorosa.

A objecção a que acabámos de responder, supõe que o condenado implora a misericórdia, pede perdão e não a pode obter. Ora, o condenado nunca pede perdão; obsti­ nou-se no seu pecado e delibera sempre segundo a sua in­ clinação criminosa; se lhe surgisse um meio para voltar a Deus, seria o caminho da humildade e da obediência mas, por causa do seu orgulho, não quer saber deste caminho.

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Mas... — insiste o incrédulo — Deus, sendo sábio, não pode querer a pena por si mesma, porque constitui um mal. Deus não pode deleitar-se nela; se Deus a quer é apenas para corrigir o culpado. Portanto, a pena infligida por Deus não pode ser perpétua, há-de ter um fim: a cor­ recção dos condenados. Finalmente, aquilo que não se baseia na natureza das coisas, que é acidental, como üma pena, não poderá ser eterno.

O doutor angélico examinou tambénji esta objecção: (x) «As penas infligidas pela sociedade àqueles que se não èxcluem dela para sempre, chamam-se medicinais, isto é, or­ denam-se à correcção dos culpados. Mas a pena de morte ou a prisão perpétua não se destinam à correcção do delin­ quente; são medicinais para outros que o medo destes cas­ tigos afasta do crime e além disso, dão a paz às pessoas dè bem. D o mesmo modo, a condenação dos ímpios é útil para correcção daqueles que estão na Igreja». Neste sentido,

O Suppl., q. 99, a. 1, ad 3 m e ad 4 m.

diz-se que o inferno tem salvado muitas almas, isto é, que o medo do inferno tem sido o começo da sabedoria 0).

Insistem os adversários: aquilo que não se funda na natureza das coisas, que é acidental, como uma pena que contraria a natureza, não pode ser eterna.

O Santo Doutor responde (2) : «embora a pena seja aci­ dental relativamente à natureza da alma, corresponde, to­ davia, por si mesma, à alma manchada pelo pecado mortal,

$ sem arrependimento e, como este pecado dura sempre, como desordem habitual, a pena que lhe corresponde dura sempre também».

Além disso, como diz ainda São Tomás (3), as penas 1 eternas servem para manifestar os direitos imprescritíveis de Deus a ser amado acima de tudo, para fazer conhecer o esplendor da sua infinita justiça. Deus, que é bom e miseri­ cordioso, não se compraz nos sofrimentos dos condenados,

m a s sim na sua infinita bondade que merece ser preferida

. a todo o bem criado, e os eleitos contemplam o esplendor *da justiça suprema, agradecendo a Deus tê-los salvado.

É o que diz São Paulo no texto já citado (Rom., IX, 22...): «Se Deus, querendo mostrar a sua ira (a sua justiça vinga­ dora), e tornar manifesto o seu poder, suportou (ou per­ mitiu) com muita paciência os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de mostrar as riquezas da sua glória sobre os vasos de misericórdia que preparou para a glória (onde está a justiça)? (4).

Deus ama, sobre todas as coisas, a sua infinita bondade;

* ora, esta, enquanto essencialmente comunicativa, constitui I o gpncípio da misericórdia, e na medida em que tem um

O Cfr. Sã o To m á s, II, II, q. 19, a. 7: «Timor servilis est sicut prin- cipium extra disponens ad sapientiam, in quantum aliquis timore poenae discedit a peccato... Timor autem filialis est initium sapientae, , sicut primus sapientiae effectus». Cfr. I, II, q. 87, a. 3, ad 2 m. AÍ" (2) Suppl., q. 99, a. 1, ad 5 m.

(3) Suppl., ibid, ad 4 m.

(4) São Tom ás, I, q. 23, a. 5, ad 3.

direito imprescritível a ser amada acima de tudo, constitui o princípio da justiça. Neste sentido, escreveu Dante sobre a porta do inferno:

Eu dou entrada à hórrida cidade, Quem me passar vai ter à dor eterna, Perder-se-á no meio da maldade. Só justiça inspirou o meu autor; Sou obra da divina potestade,

Saber supremo e primeiro amor (x).

Lacordaire diz a este respeito (2) : «Se fosse só a justiça que cavòu o abismo, haveria remédio, mas foi o amor também, f o i o primeiro amor que o criou: isto dissipa toda a esperança. Quando se é condenado por justiça, pode re­ correr-se ao amor mas, quando se é condenado por amor, a quem poderá recorrer-se? Tal é a sorte dos condenados. O amor que deu o sangue por eles é aquele mesmo que os amaldiçoa. Um Deus que desceu à terra por vós, terá tomado a vossa natureza, falado a vossa língua..., curado as vossas feridas, ressuscitado os vossos mortos..., e por fim, morto por vós numa cruz! Depois disto, pensais que será permi­ tido blasfemar, zombar e festejar sem temor as núpcias de todas as vossas paixões! N ão. Enganais-vos, com o amor não se brinca; não se é amado impunemente por um Deus, não se é amado impunemente até à cruz. Neste caso, não se trata da justiça sem misericórdia, trata-se do amor. O amor, têmo-lo experimentado muitas vezes, representa a vida ou a morte; e, se se trata do amor de um Deus, re­ presenta a vida eterna ou a eterna morte».

í 1) Per, me si va nella città dolènta, Per me si va nell’etèrno dolore, Per me si va tra la perduta gente. Giustizia mósse il mio alto fattore: Fécemi la divina potestate,

La somma sapienza e il primo amore. (a) Conferências de Notre-Dame, 72.a conf., fim.

NATUREZA DA PENA DE DANO.

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 73-76)