• Nenhum resultado encontrado

DO PURGATÓRIO

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 112-115)

Depois de termos discorrido sobre a natureza das penas do purgatório, é a altura de examinar como se suportam e de apreciar, de passagem, o estado das almas que nele se encontram, para vincar as notas que o caracterizam.

Antes do mais, tenhamos presente o que se disse atrás acerca do conhecimento da alma separada e do juízo par­ ticular (x).

Despojando-as do corpo, tais almas deixam de realizar as operações da vida sensitiva. Dispõem apenas radical­ mente das faculdades sensitivas, por exemplo, a imaginação e a memória sensitiva. Mas elas conservam as faculdades superiores da inteligência e da vontade. Conservam, também, os conhecimentos da ciência adquirida que possuíam, as virtudes adquiridas, as virtudes infusas (teologais e morais), e os sete dons do Espírito Santo; mas exercem-nos sem o concurso da imaginação.

O seu modo de ser preternatural (separado do corpo) é

acompanhado normalmente de um modo de agir preterna-

(*) Cfr. supra, IJ Parte.

O E S T A D O D A S A L M A S 209

tural, por ideias infusas, que lhes permite distinguir o sin­

gular do universal, em particular as pessoas que ficaram na terra e têm qualquer relação com elas.

Poi outro lado, vêem-se intuitivamente a si mesmas, como o anjo se vê, e conhecem, portanto, com clareza a sua espi­ ritualidade, a sua imortalidade e a sua liberdade; conhecem, também, com certeza absoluta, em si mesmas, como num espelho, Deus, autor da sua natureza e sofrem mais por não o poderem ver imediatamente. Finalmente, conhecem-se umas às outras.

O juízo particular realiza-se, dissemos, no próprio ins­ tante da separação do corpo, instante que constitui o termo do mérito e do demérito, e a sentença dada, graças a uma iluminação intelectual, versa sobre toda a vida terrestre, no que tinha de bem e de mal e é, portanto, definitiva. É à luz destes princípios e do juízo particular que se pode apreciar o estado destas almas.

CERTEZA D A SALVAÇÃO E CONFIRM AÇÃO N A G RAÇA Como consequência imediata do juízo particular, as almas do purgatório estão certas da salvação. A esperança delas já não conhece apenas, com o a nossa, uma certeza de tendência (*), mas sim a certeza de alcançarem a salvação. N a terra, para obter tal certeza, seria necessária uma reve­ lação especial (2). O juízo particular contém esta revelação, a alma passa a ter a certeza da sua predestinação. Tem

(x) Cfr. São Tomás, II, II, q. 18, a. 4: «Spes certitudinaliter tendit in suum finem, quasi participans certitudinem a fide».

(2) Cfr. Cone. Trid. Denz-, 805: «N isi ex speciali revelatione, sciri non potest, quos D eus sibi elegerit» Item n.° 826. Attamen «in D ei auxilio firmissimam spem collocare et reponere omnes debent».

Ibidem, n.° 806.

uma esperança não sòmente firme, mas também segura de chegar ao fim.

Além disso, sabe, por experiência, que não se encontra no céu, onde se vê a Deus, nem no inferno, onde se blasfema, mas num lugar passageiro de purificação, onde, se ama a Deus acima de tudo, embora sem o ver.

Por outro lado, estas almas encontram-se confirmadas na graça. E ainda uma consequência do juízo particular. Os teólogos ensinam-no continuamente, recordando que a Igreja condenou a seguinte proposição de Lutero (Denz., 779): «As almas do purgatório pecam constantemente: pro­ curam fugir das penas para encontrar o repouso». É em virtude desta confirmação na graça que se lhes chama «as santas almas do purgatório».

Como podem elas ser assim confirmadas na graça, sem terem recebido a visão beatífica que comporta a impecabi­ lidade? Quando se vê a Deus face a face, já não é possível afastarmo-nos dele, mas, antes de o ver, como evitar as mais pequenas faltas? Suarez invoca apenas, para tanto, uma protecção especial de Deus, que preserva tais almas do pecado, quer mortal quer venial, para que a sua entrada no céu não venha a protrair-se ainda mais. Os tomistas, para explicarem esta confirmação, aduzem uma razão in­ trínseca: estas almas, como os puros espíritos, julgam de

uma maneira imutável sobre o seu fim àltimo, assim como

nós julgamos sobre os primeiros princípios, e aderem a ele dessa maneira imutável. Encontram-se confirmadas no bem. E a posição defendida por São Tomás 0 . Esta adesão imutável ao fim último transcende o nosso tempo solar e mede-se pelo aevum ou eviternidade, ao passo que, numa

. O li q. 64, a. 2: «Angelus apprehendit immob'Iiter per intellectum, sicut et nos ímmobiliter apprehendimus prima principia... et voluntas ^ngeli adhaeret fixe et Ímmobiliter, scil. postquam libere adhaesif, immo- piliter adhaeret». Estamos perante um reflexo da imutabilidade dos- decretos livres de D eus. — D c Veritate, q. 24, a. 11: «Anima separata angelo conformatur quantum ad modum intelligence et quantum ad-

região inferior da alma separada, a sucessão dos pensa­ mentos e sentimentos mede-se pelo tempo descontínuo com seus instantes espirituais sucessivos O . Sucede uma coisa semelhante, na terra, com os santos confirmados em graça; a sua inclinação para Deus mantém-se imutável e, na parte imediatamente inferior da sua alma, sucedem-se os pensamen­ tos e sentimentos subordinados, a Deus, amado acima de tudo. Tudo isto se deduz fácilmente dos princípios atrás enun­ ciados. N o entanto, subsistem algumas dificuldades: as almas do purgatório, já confirmadas na graça, apresentam muitas vezes, no momento da morte, muitos pecados veniais; quando é que estes pecados lhe são perdoados? Mais: aquelas que se converteram precisamente no momento da morte, após uma vida de graves desordens, ao deixarem o corpo tinham predisposições muito defeituosas, consequências dos seus pecados; estas predisposições serão relevadas ime­ diatamente, ao entrar no purgatório, ou sê-lo-ão sòmente de uma maneira progressiva? A teologia esclarece-nos estes dois pontos.

A REMISSÃO DOS RESTANTES PECADOS VENIAIS FAR-SE-Á NO PRÓPRIO INSTANTE DO JUÍZO PARTICULAR? Os justos surpreendidos pela morte, por exemplo, du­ rante o sono ou numa altura em que não dispunham do suficiente uso da razão, viram-se impossibilitados de fazer, no último momento, um acto de contrição meritório, que. lhes teria obtido a remissão dos pecados veniais. Tais pe-

indivisibilitatem appetitus»; «tota vis appetitus tendit in unum».

Ibid., ad 4m. C. Gentes, 1. IV, c. 95: «Quando igitur anima erit a

cprpore separata, non erit in statu ut moveatur ad finem, sed ut in fine adepto semper quiescat». A sua disposição em relação ao fim último não mais mudará e ela julgará sempre do mesmo modo, se­ gundo esta predisposição ou inclinação,

(!) I.*, q. 10, a. 5, ad lm ,

212 O H O M E M E A E T E R N I D A D E

cados são-lhes perdoados pelo acto de caridade e de con­

trição que fazem imediatamente após a morte, no momento do juízo particular. Este acto, sem ser já meritório, é um

acto de caridade e de arrependimento perfeito, que basta para perdoar as faltas veniais; urge sofrer, a seguir, a pena devida por estas faltas.

Esta doutrina de S. Tomás 0 , admitem-na Suarez 0 e comummente os teólogos (3).

É, pelo menos, muito provável que estes pecados veniais sejam perdoados no instante em que a alma entra no pur­ gatório. A alma sabe nessa altura que, com o consequência das suas faltas, não pode ver ainda a Deus. Um a vez livre dos obstáculos do corpo e das paixões, nada a impede de fazer um acto de arrependimento. Bastaria, para remissão destes pecados veniais, uma contrição geral, mas, ao entrar no purgatório, sob a luz do juízo particular, a alma vê deta­

lhadamente todos os seus pecados e, portanto, arrepende-se

de cada um deles. Trata-se de um admirável complemento do último acto de contrição feito na terra, embora não meri­ tório. Já não conta para a remissão da pena devida por tais pecados, como teria contado, pelo menos em parte, o acto de contrição feito antes da morte. Teria, decerto, sido melhor fazer este acto de contrição antes de morrer, e oferecer ime­ diatamente a sua vida em união com ^s missas que então se celebravam; tal acto teria sido meritorio. O acto de que falamos já não o é, mas obtém, apesar disso, perdão dos pe­ cados veniais de que a alma se arrepende vivamente. Pode dizer-se que esta alma é santa, porque todos os seus pecados, mesmo veniais, lhe são perdoados e não pecará mais. Quem não achará reconfortante esta doutrina?...

(x) Cfr. IV Sent., d. 21, q. 1, a. 3, q. 1 e seg. — Apêndice ao Suple­

mento, a. 6. De M aio, q. 7, a. 11.

(2) Ob. cit., disp. XI, sect. IV.

(3) Cfr. Diet, théol. cath., art. Purgatòire, c. 1.249. Hugon, Trac-

tatus Dogmatici, D e Novissimis, pág. 825.

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 112-115)