Depois de termos discorrido sobre a natureza das penas do purgatório, é a altura de examinar como se suportam e de apreciar, de passagem, o estado das almas que nele se encontram, para vincar as notas que o caracterizam.
Antes do mais, tenhamos presente o que se disse atrás acerca do conhecimento da alma separada e do juízo par ticular (x).
Despojando-as do corpo, tais almas deixam de realizar as operações da vida sensitiva. Dispõem apenas radical mente das faculdades sensitivas, por exemplo, a imaginação e a memória sensitiva. Mas elas conservam as faculdades superiores da inteligência e da vontade. Conservam, também, os conhecimentos da ciência adquirida que possuíam, as virtudes adquiridas, as virtudes infusas (teologais e morais), e os sete dons do Espírito Santo; mas exercem-nos sem o concurso da imaginação.
O seu modo de ser preternatural (separado do corpo) é
acompanhado normalmente de um modo de agir preterna-
(*) Cfr. supra, IJ Parte.
O E S T A D O D A S A L M A S 209
tural, por ideias infusas, que lhes permite distinguir o sin
gular do universal, em particular as pessoas que ficaram na terra e têm qualquer relação com elas.
Poi outro lado, vêem-se intuitivamente a si mesmas, como o anjo se vê, e conhecem, portanto, com clareza a sua espi ritualidade, a sua imortalidade e a sua liberdade; conhecem, também, com certeza absoluta, em si mesmas, como num espelho, Deus, autor da sua natureza e sofrem mais por não o poderem ver imediatamente. Finalmente, conhecem-se umas às outras.
O juízo particular realiza-se, dissemos, no próprio ins tante da separação do corpo, instante que constitui o termo do mérito e do demérito, e a sentença dada, graças a uma iluminação intelectual, versa sobre toda a vida terrestre, no que tinha de bem e de mal e é, portanto, definitiva. É à luz destes princípios e do juízo particular que se pode apreciar o estado destas almas.
CERTEZA D A SALVAÇÃO E CONFIRM AÇÃO N A G RAÇA Como consequência imediata do juízo particular, as almas do purgatório estão certas da salvação. A esperança delas já não conhece apenas, com o a nossa, uma certeza de tendência (*), mas sim a certeza de alcançarem a salvação. N a terra, para obter tal certeza, seria necessária uma reve lação especial (2). O juízo particular contém esta revelação, a alma passa a ter a certeza da sua predestinação. Tem
(x) Cfr. São Tomás, II, II, q. 18, a. 4: «Spes certitudinaliter tendit in suum finem, quasi participans certitudinem a fide».
(2) Cfr. Cone. Trid. Denz-, 805: «N isi ex speciali revelatione, sciri non potest, quos D eus sibi elegerit» Item n.° 826. Attamen «in D ei auxilio firmissimam spem collocare et reponere omnes debent».
Ibidem, n.° 806.
uma esperança não sòmente firme, mas também segura de chegar ao fim.
Além disso, sabe, por experiência, que não se encontra no céu, onde se vê a Deus, nem no inferno, onde se blasfema, mas num lugar passageiro de purificação, onde, se ama a Deus acima de tudo, embora sem o ver.
Por outro lado, estas almas encontram-se confirmadas na graça. E ainda uma consequência do juízo particular. Os teólogos ensinam-no continuamente, recordando que a Igreja condenou a seguinte proposição de Lutero (Denz., 779): «As almas do purgatório pecam constantemente: pro curam fugir das penas para encontrar o repouso». É em virtude desta confirmação na graça que se lhes chama «as santas almas do purgatório».
Como podem elas ser assim confirmadas na graça, sem terem recebido a visão beatífica que comporta a impecabi lidade? Quando se vê a Deus face a face, já não é possível afastarmo-nos dele, mas, antes de o ver, como evitar as mais pequenas faltas? Suarez invoca apenas, para tanto, uma protecção especial de Deus, que preserva tais almas do pecado, quer mortal quer venial, para que a sua entrada no céu não venha a protrair-se ainda mais. Os tomistas, para explicarem esta confirmação, aduzem uma razão in trínseca: estas almas, como os puros espíritos, julgam de
uma maneira imutável sobre o seu fim àltimo, assim como
nós julgamos sobre os primeiros princípios, e aderem a ele dessa maneira imutável. Encontram-se confirmadas no bem. E a posição defendida por São Tomás 0 . Esta adesão imutável ao fim último transcende o nosso tempo solar e mede-se pelo aevum ou eviternidade, ao passo que, numa
. O li q. 64, a. 2: «Angelus apprehendit immob'Iiter per intellectum, sicut et nos ímmobiliter apprehendimus prima principia... et voluntas ^ngeli adhaeret fixe et Ímmobiliter, scil. postquam libere adhaesif, immo- piliter adhaeret». Estamos perante um reflexo da imutabilidade dos- decretos livres de D eus. — D c Veritate, q. 24, a. 11: «Anima separata angelo conformatur quantum ad modum intelligence et quantum ad-
região inferior da alma separada, a sucessão dos pensa mentos e sentimentos mede-se pelo tempo descontínuo com seus instantes espirituais sucessivos O . Sucede uma coisa semelhante, na terra, com os santos confirmados em graça; a sua inclinação para Deus mantém-se imutável e, na parte imediatamente inferior da sua alma, sucedem-se os pensamen tos e sentimentos subordinados, a Deus, amado acima de tudo. Tudo isto se deduz fácilmente dos princípios atrás enun ciados. N o entanto, subsistem algumas dificuldades: as almas do purgatório, já confirmadas na graça, apresentam muitas vezes, no momento da morte, muitos pecados veniais; quando é que estes pecados lhe são perdoados? Mais: aquelas que se converteram precisamente no momento da morte, após uma vida de graves desordens, ao deixarem o corpo tinham predisposições muito defeituosas, consequências dos seus pecados; estas predisposições serão relevadas ime diatamente, ao entrar no purgatório, ou sê-lo-ão sòmente de uma maneira progressiva? A teologia esclarece-nos estes dois pontos.
A REMISSÃO DOS RESTANTES PECADOS VENIAIS FAR-SE-Á NO PRÓPRIO INSTANTE DO JUÍZO PARTICULAR? Os justos surpreendidos pela morte, por exemplo, du rante o sono ou numa altura em que não dispunham do suficiente uso da razão, viram-se impossibilitados de fazer, no último momento, um acto de contrição meritório, que. lhes teria obtido a remissão dos pecados veniais. Tais pe-
indivisibilitatem appetitus»; «tota vis appetitus tendit in unum».
Ibid., ad 4m. C. Gentes, 1. IV, c. 95: «Quando igitur anima erit a
cprpore separata, non erit in statu ut moveatur ad finem, sed ut in fine adepto semper quiescat». A sua disposição em relação ao fim último não mais mudará e ela julgará sempre do mesmo modo, se gundo esta predisposição ou inclinação,
(!) I.*, q. 10, a. 5, ad lm ,
212 O H O M E M E A E T E R N I D A D E
cados são-lhes perdoados pelo acto de caridade e de con
trição que fazem imediatamente após a morte, no momento do juízo particular. Este acto, sem ser já meritório, é um
acto de caridade e de arrependimento perfeito, que basta para perdoar as faltas veniais; urge sofrer, a seguir, a pena devida por estas faltas.
Esta doutrina de S. Tomás 0 , admitem-na Suarez 0 e comummente os teólogos (3).
É, pelo menos, muito provável que estes pecados veniais sejam perdoados no instante em que a alma entra no pur gatório. A alma sabe nessa altura que, com o consequência das suas faltas, não pode ver ainda a Deus. Um a vez livre dos obstáculos do corpo e das paixões, nada a impede de fazer um acto de arrependimento. Bastaria, para remissão destes pecados veniais, uma contrição geral, mas, ao entrar no purgatório, sob a luz do juízo particular, a alma vê deta
lhadamente todos os seus pecados e, portanto, arrepende-se
de cada um deles. Trata-se de um admirável complemento do último acto de contrição feito na terra, embora não meri tório. Já não conta para a remissão da pena devida por tais pecados, como teria contado, pelo menos em parte, o acto de contrição feito antes da morte. Teria, decerto, sido melhor fazer este acto de contrição antes de morrer, e oferecer ime diatamente a sua vida em união com ^s missas que então se celebravam; tal acto teria sido meritorio. O acto de que falamos já não o é, mas obtém, apesar disso, perdão dos pe cados veniais de que a alma se arrepende vivamente. Pode dizer-se que esta alma é santa, porque todos os seus pecados, mesmo veniais, lhe são perdoados e não pecará mais. Quem não achará reconfortante esta doutrina?...
(x) Cfr. IV Sent., d. 21, q. 1, a. 3, q. 1 e seg. — Apêndice ao Suple
mento, a. 6. De M aio, q. 7, a. 11.
(2) Ob. cit., disp. XI, sect. IV.
(3) Cfr. Diet, théol. cath., art. Purgatòire, c. 1.249. Hugon, Trac-
tatus Dogmatici, D e Novissimis, pág. 825.