• Nenhum resultado encontrado

DA PENA DOS SENTIDOS

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 81-85)

À pena de dano acresce, no inferno, a pena dos sentidos que aflige positivamente a alma e após a ressurreição geral, também o corpo. Vamos analisar a existência desta pena,. * apreciar a sua configuração nas Escrituras, explicar a natu­

reza do fogo do inferno e o seu modo de actuação O .

A EXISTÊNCIA DESTA P E N A . COMO A CO NFIG UR AM AS ESCRITURAS; N o Evangelho, afirma-se sem sombra de dúvida a exis­ tência desta pena (M at., X , 28): «Temei antes aquele que- pode lançar no inferno a alma e o corpo» (2).

A existência desta pena, que se junta à pena de dano,.

(1) Cfr. SSo T om ás, IV, Sent., d. 44, q. 3, a. 3; C. Gentes, 1. IV, c. 9 0 -

De Anima, q. 2, a. 21; De Veritate, q. 26, a. 1, III; Suppl., q. 70, a. 3,

q. 97, a. 5; Tabula aurea: Anima, n . ° 140. — Jo ã o d eS ã o T om ás, De

Angelis, disp. XXIV, a. 3: Quomodo spiritus torqueantur ab igne T Gonet, Billuart, ibidem Diet, de théol. cthéol., art. Feu de 1’enfer (A .

Michel).

(2) Item (Luc., XII, 5; M a t., V, 29; XVIIT, 9; M a r c ., IX, 42, 46).

justifica-se, segundo São TomásC1), pelo seguinte: ao cometer o pecado mortal, o homem não só se afasta de Deus, mas volta-se também para um bem criado que prefere a Deus; o pecado mortal merece assim uma dupla pena: a privação de Deus e o tormento que deriva da criatura.

Finalmente, concebe-se perfeitamente que o corpo que concorreu para o pecado e que encontrou nele um prazer proibido, participe da pena que atormenta a alma. Segundo a Revelação, isso verificar-se-á após a ressurreição geral.

Em que consiste a pena dos sentidos? A Escritura di-lo quando nos descreve o inferno como uma prisão tenebrosa (2), lugar de choro e ranger de dentes, onde os condenados se encontram presos e como que algemados. Fala-nos, além disso, num lago de fogo e de sofrimento (3). Nestas descri­ ções afloram sempre duas ideias conexas: a de uma prisão fechada para sempre e a da pena do fogo. Os teólogos in­ sistem ora sobre uma ora sobre outra, porque elas escla- xecem-se mutuamente. Lê-se em M at. (XXII, 13): «O rei ■diz para os seus ministros: Atai-o de pés e mãos e lançai-o nas trevas exteriores: aí haverá pranto e ranger dos dentes». Fala-se, muitas vezes, no mesmo Evangelho da «geena do fogo» (M at., V, 22, 40; XVIII, 9, 50); e do «fogo eterno inex­ tinguível» que atormenta os condenados (M at., XVIII, 8;

M arc., IX, 42). \

O FOGO DO INFERNO SERÁ REAL O U METAFÓRICO? É doutrina comum dos Padres e dos teólogos tratar-se -de um fogo real. Funda-se esta doutrina em que, na inter­ pretação da Escritura, não se deve recorrer ao sentido figu­ rativo senão quando o contexto ou outras passagens mais

í 1) I, II, q. 87, a. 4.

(2) II Pedro, II, 4, 6; III, 7. ,(3) Apoc., X X , 14.

D A P E N A D O S S E N T I D O S 151

í claras excluem o sentido liberal ou contra este se levanta alguma impossibilidade. Ora, no caso presente não sucede uma coisa nem òutra, como consegue demonstrar exube­ rantemente A. Michel (x). Todo o contexto exige uma inter­ pretação realista: ide para o fogo eterno da mesma maneira que os bons irão para a vida eterna, para aquele fogo pre-

í parado para o demónio e seus anjos. Além disso, Jesus {M at.,

X, 28) atribui ao fogo, não apenas o suplício dos espíritos renegados, mas também o dos corpos. (M arc., IX, 42, 48;

M at., V, 22; XVIII, 9). Os Apóstolos falam desta pena

eterna do fogo com idêntico realismo: (II Tess., I, 8; Tiago, III, 6; Jud., 1, 23). Pedro considera também, como tipo dos jjastigos que hão-se vir, o fogo caído do céu sobre Sodoma

e Gomorra (II Pedro, II, 6; Jud., 7). A interpretação meta­ fórica, ao supor que o fogo, tal como a tristeza ou o re­ morso, não passa de uma afecção penosa da alma, vai contra o sentido evidente dos textos da Escritura e da Tra- * dição.

Os Padres, à excepção de Orígenes e seus discípulos, falam quase sempre de um fogo real que comparam aos fogos terrestres e, por vezes, até a um fogo corpóreo. É o que afirmam sem sombra de dúvida São Basílio, São João Cri­ sóstomo, Santo Agostinho e São Gregório Magno (2). A. M i­ chel examina detalhadamente, no artigo citado, os textos destes escritores e conclui: «Quando os Padres afirmam sim­ plesmente a crença tradicional, falam sem hesitação do fogo do inferno. Mas quan£it>.se lhes apresenta a difícil questão ' do m odo de actuação do fogo sobre os espíritos, nota-se

dgftà hesitação no seu pensamento» (col. 2.207).

Quanto à natureza deste fogo real, São Tomás, (Suppl., q. 97, a. 5 e 6), pensa tratar-se de um fogo corpóreo, da mesma natureza do fogo terrestre, mas que difere dele aci-

(*) D iet, de théol. c a t h art. Feu de I’enfer, c. 2.198 e segs. (2) Cfr. Ro u e t d e Jo u r n e l, Enchiridion patristicum , index theo-

logicus, n.° 592 e segs.

dentalmente, por não precisar de ser alimentado por ele­ mentos estranhos, ser escuro, sem chama nem fumo, durar sempre e queimar os corpos sem os destruir. Dir-se-ia hoje que o calor é, numa substância corpórea, o resultado de vibrações moleculares capazes de produzir uma sensação contínua de ardor C1).

O M ODO D E ACTUAÇÃO DO FOGO D O INFERNO Como pode este fogo material produzir efeito sobre a alma separada do seu corpo e sobre puros espíritos, como os demónios? Os teólogos respondem comummente: não pode ser senão a título de instrumento da justiça divina, tal como os sacramentos, por exemplo, a água do baptismo, pro­ duzem na alma o efeito espiritual que é a graça. Aqueles que desprezaram os sacramentos, instrumentos da miseri­ córdia de Deus, sofrem os instrumentos da sua justiça.

Os teólogos dividem-se neste ponto, como se dividem a respeito dos sacramentos: uns admitem uma causalidade instrumental física, outros somente uma causalidade moral. A causa moral não produz directamente o efeito desejado; estimula apenas o agente capaz de o produzir e de o realizar. U m pedido que dirigimos a alguém só depois o leva a agir. A ser assim, o fogo do inferno não produziria directamente o efeito que lhe é atribuído; este efeito seria unicamente produzido por Deus.

Os tomistas e muitos outros teólogos admitem, como a respeito dos sacramentos, uma causa instrumental física do fogo do inferno sobre as almas dos condenados. Mas é di-

0 Lê-se na vida de Santa Catarina de Ricci que teve de sofrer, por um defunto, o fogo do purgatório durante quarenta dias. N in­ guém dava por isso, mas uma noviça, por descuido, toca-lhe com a mão e exclama: «Madre, está a escaldar» — «Estou, sim, minha filha» — responde ela.

fícil explicar o seu modo de actuação. São Tomás e os seus melhores comentadores í1) admitem que o fogo do inferno

Í

' • recebe de Deus a virtude de atormentar os renegados, impe­ dindo-os de agir onde querem e comò querem. Verifica-se uma alligatio, uma ligação dos espíritos pelo fogo, que os im­ pede de agir. É pouco mais ou menos o que sucede com uma ( pessoa paralítica ou atacada de perturbação mental devido

a intoxicação. Os condenados sentem, além disso, a humi­ lhação de dependerem de um elemento corpóreo, quando a imaterialidade deles o domina perfeitamente. Esta explica­ ção harmoniza-se com os textos da Escritura que descrevem o inferno como uma prisão onde se retem os condenados contra vontade (Jud., 6; II Pedro, II, 4; Apoc., XX, 2). São Tomás sustenta que o fogo não actua no espírito para o alterar, mas para o impedir de agir a seu bel-prazer. Muitos teólogos aderiram a esta maneira de ver; não será fácil avan­ çar mais na explicação deste m odo rMsterioso de actuação. . Finalmente, como poderá o fo g o \d o inferno, após a ressurreição geral, queimar os corpos dos condenados sem os consumir? A tradição e a Escritura (2) afirmam a incorrupti­ bilidade dos corpos dos condenados. São Tomás (3) sustenta que estes corpos tornados incorruptíveis sofrerão de uma maneira especial, sem se alterarem. O ouvido, por exemplo, sofre ao ouvir uma voz estridente e o gosto ao saborear uma coisa amarga (4).

Será sempre difícil explicar o modo de actuação deste fogo, mas tal dificuldade não é razão para negar a possibi­ lidade e a realidade da sua acção, afirmada pela revelação crisía. Já na ordem natural é difícil explicar como os objectos exteriores produzem nos nossos sentidos uma impressão,

(x) C. Gentes, IV, c. 90, III.a; Suppl., q. 70, a. 3.

( 2) Da n i e l, XII, 2; Ma t., XVIII, 8, 9; Ma r c., IX, 29, 49. (s) C. Gentes, 1. IV, c. 89; D e Potentia, q. 5, a. 8.

(4) O sofrimento explicar-se-á sobretudo por parte do objecto, sem alteração do sujeito.

154 O H O M E M E A E T E R N I D A D E

uma representação de ordem psicológica que ultrapassa a matéria bruta. N ão surpreende, pois, que os efeitos preter- naturais que se produzem segundo a revelação, na outra vida, sejam ainda mais difíceis de explicar.

Aliás, a pena dos sentidos, como afirma toda a tradição, não é a principal; o que há de essencial na condenação é a privação de Deus e o vasio imenso que ela causa na alma, vazio que manifesta, por contraste, a plenitude da vida eterna à qual todos nós somos chamados.

Derivam daí, para nós, as grandes lições da outra vida da qual esta deve ser o prelúdio. Daí se deduz o valor imenso do tempo do mérito relativamente à eternidade feliz que deve conquistar-se (*).

c1) Em La Vie Spirituelle, Dezembro de 1942, pág. 435, Les deux

flammes, Tomás D e h a u escrevia a respeito destas palavras do rico

avarento, crucior in hac flamma (Luc., XVI, 24): «O rico avarento, lá nas profundezas do inferno, encontra-se, por assim dizer, crucificado para o céu ; este mundo da felicidade e da paz conserva-se inacessível e fechado para ele... Esta ideia da crucifixão atroz do inferno encon­ tra-se expressa na Divina Comédia. Dante, ao percorrer estas moradas sombrias, reconhece Caifás crucificado em três estacas fixas na terra e envolto em chamas: un crocifisso in terra con tre pali. Apreciai esta crucifixão nas chamas, crucior in hac flamma, e vede que este fogo constitui simultâneamente gelo, porque os condenados não amam. Satanás, no mais profundo do inferna, vê-se todo ele rodeado de gelo... pois é, por essência, aquele que não ama,

«N o outro extremo do mundo, encontra-se o Sagrado Coração de Jesus. Infinitamente afastado do que acabamos de dizer, e no mais alto das regiões do lado de lá, este coração aparece-nos também envolto em chamas... e circundado por uma coroa de espinhos. Em baixo, o sangue, as lágrimas de sangue que correm gota a gota, e no alto a chama. Sim, mais uma vez a chama, crucior in hac flamma... D esde o primeiro instante da sua existência, ingrediens mundum, já esta chama lhe ardia no meio do coração, a chama e a ferida do amor».

Assim, esta palavra misteriosa, crucior in hac flamma, pronunciada clamorosamente no fundo do inferno pelos condenados, profere-a docemente, num sentido diametralmente oposto, o Coração adorável de Jesus. Evidentemente, ele já não sofre no céu, mas tudo o que havia de perfeição no seu sofrimento terrestre subsiste eminentemente no seu amor imortal.

A DESIGUALDADE DAS PENAS

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 81-85)