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AS TRÊS ESPÉCIES DE TEMOR

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 89-93)

O INFERNO E AS NECESSIDADES ESPIRITUAIS DA NOSSA ÉPOCA

AS TRÊS ESPÉCIES DE TEMOR

Depois de termos visto o inferno e antes de passarmos a examinar o purgatório, não será má ideia expor com maior precisão o que deve entender-se pelo temor de Deus. Trata-se de uma matéria muito difícil, porque frequente­ mente se confundem três espécies de temor, muito diferentes entre si. Uma é má, as outras duas são boas, mas tão dis­ tintas uma da outra, que a primeira diminui com a caridade ao passo que a segunda aumenta com ela. Interessa ver, em particular, quais as relações que intercedem entre estas dife­ rentes espécies de temor e o amor a Deus, que deve preva­ lecer sempre.

O temor, em geral, traduz-se no abatimento da alma vencida pela gravidade de um perigo que a ameaça. Faz t tremer. D i l respeito ao mal terrível que se mostra iminente e àquilo que pode ser a causa desse mal. N ão passa muitas vezes, de uma emoção da sensibilidade, a dominar pela força; mas pode existir também na vontade espiritual e tanto pode ser bom como mau.

Quer os teólogos quer os autores espirituais distinguem três espécies de temor muito diferentes. São elas, a partir da inferior para a superior: 1.° o temor mundano ou temor da oposição do mundo, que nos afasta de Deus; 2.° o temor servil, temor dos castigos de Deus, que já é útil para a salvação; 3.° o temor filial ou temor do pecado, qae aumenta com o amor a Deus e subsiste no céu sob a forma de temor reverenciai. Vejamos o que ensinam a teo­ logia e especialmente São Tomás, a propósito destas três espécies de temor especificamente diferentes (-1).

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0 Cfr. S ã o T om ás, II, II, q. 19.

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O temor mundano leva a pessoa a recear de tal modo o mal temporal, causável pelo mundo, que, para escapar a ele, mostra-se até disposta a ofender a Deus.

Portanto, este temor mundano é sempre mau. Pode re­ vestir variadíssimas formas: temos primeiro o respeito hu­ mano ou timidez culposa, que se aterroriza com os juízos do mundo e impede de cumprir os deveres para com Deus, por exemplo, ir à missa ao domingo, comungar pela Páscoa, confessar-se; temem-se os juízos de tal ou tal pessoa ou receia-se perder a situação por fidelidade aos deveres de cristão. Em tempos de perseguição, o temor mundano po­ deria induzir a renegar da fé cristã, para evitar a perda dos bens materiais, da liberdade pessoal ou a perda da vida pelo martírio. Jesus disse: «N ão temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode lançar no inferno a alma e o corpo». (M at., X, 28). E noutro lugar (Luc., IX, 26): «Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma? Se alguém se envergonhar de mim ou das minhas palavras, o Filho do homem envergonhar-se-ia dele, quajido vier na sua ma­ jestade, e na de seu Pai e dos santos anjos».

Portanto, o temor mundano é sempre mau. Devemos pedir a Deus que nos livre dele. Aqueles que não querem ouvir falar do temor de Deus, como se não se tratasse dum sentimento muito nobre, sentem muitas vezes um respeito humano aviltante, indigno de uma consciência recta.

Ter vergonha de ir à missa representa uma inversão total da ordem dos valores, porque a missa, que perpetua sacra­ mentalmente o sacrifício da cruz, é o que há de mais ele­ vado. A missa tem um valor infinito. Sentir vergonha de assistir a ela, quando se nos concede uma grande honra, de valor inestimável para o tempo e para a eternidade!

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O temor servil difere muito dele. N ão são as perseguições

do mundo que se receiam, mas sim os castigos de Deus. É útil, na medida em que nos leva a cumprir os manda­ mentos divinos. Aparece mais no Antigo Testamento, cha­ mado a lei do temor, do que no N ovo, lei do amor. Este

temor, util para a salvação, pode apesar disso tornar-se mau

se se temem mais os castigos do que a separação de Deus e se apenas se foge do pecado para evitar os castigos, de tal m odo que se pecaria se não houvesse punição para isso na eternidade. Este temor, chama-se servilmente servil e quem o tem demonstra ter mais amor próprio do que amor de Deus. Neste caso, o temor servil não pode coexistir com a caridade, ou amor a Deus acima de tudo (■).

Porém, quando não é servilmente servil, o temor servil . dos castigos divinos revela-se útil, ajudando o pecador a aproximar-se de Deus. Mas nem por isso constitui uma virtude nem um dom do Espírito Santo. Catarina de Sena (2) compara-o a «um vento tempestuoso que sacode os peca­ dores». N ão basta para a salvação, mas pode conduzir à virtude. N o meio da tempestade, um marinheiro lembra-se de rezar e, mesmo que porventura se encontre em pecado mortal, solicita à sua maneira uma graça actual. Como a nenhuma pessoa se nega em casos semelhantes, tal graça não demora a ser-lhe concedida.

O temor servil não abandona nem sequer o justo, nem deàáparece seja quando for da superfície da terra, mas

í1) O temor servil é, pois, essencialmente bom, mas o seu modo (o servilismo) não deixa de ser mau quando se teme mais os castigos de D eus que o pecado e a separação do mesmo D eus; porque, nesse caso, já se ama mais do que a Deus e até se cometeria o pecado mortal, se não fossem as penas eternas.

(2) Diálogo, c. 94.

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diminui na medida em que a caridade aumenta. Quanto mais se ama a Deus, mais o egoísmo diminui e menos se atende ao bem próprio; e também, quanto mais se ama a Deus, maior a esperança de ser por Ele recompensado.

O temor servil ou dos castigos divinos deixa evidente­ mente de existir no céu.

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O temor filial difere muito dos dois anteriores. É o temor

de um filho e não o de um mercenário ou simples servo; é o temor, não dos castigos de Deus, mas do pecado que nos afasta de Deus. Difere, pois, essencialmente ou especificamente do temor servil e com maior razão do temor mundano (x). Este temor filial não serve apenas para a salvação, como o temor servil; constitui até um dom do Espírito Santo, que muito ajuda a resistir às fortes tentações. Por isso, diz o salmista: «Senhor, feri a minha carne de temor» (2), para que eu evite o pecado. Este temor filial é o menos elevado dos sete dons do Espírito Santo, mas constitui o começo da sabedoria, porque representa com o que o efeito inicial deste dom superior; é bastante sensato temer o pecado que nos afasta de Deus. Corresponde à felicidade dos pobres que temem o Senhor e o possuem já.

D e mais a mais, enquanto o temor servil ou dos castigos divinos diminui com o crescimento da caridade, o temor filial aumenta, porque, quanto mais se ama a Deus, mais se teme o pecado que nos separa dele. Os sete dons estão

0 ) Chama-se temor inicial o começo do temor filial que é acom ­ panhado do temor servil, vivo na alma, por não ter crescido ainda a caridade.

(2) Confige timore tuo, Domine, carnes meas ( Sa l m o CXIX, 120).

como as sete virtudes infusas, relacionados com a caridade. Representam as diversas funções do nosso organismo espi­ ritual que se desenvolvem tão harmoniosamente com o os cinco dedos da mão, diz São Tomás (*).

Catarina de Sena afirma igualmente que, com o pro­ gresso da caridade, o temor servil diminui, o temor filial aumenta e o temor mundano desaparece completamente (2).

«Foi por isso — diz ela — que os apóstolos, depois do Pentecostes, longe de temerem os sofrimentos, sentiram glória pelas tribulações e sentiam-se felizes, por terem sido achados dignos de sofrer pelo Senhor». Outrora, na tarde da Ascenção, sentiam-se sós e viam-se de todo impotentes para levar a cabo tamanha obra; temiam, além disso, as perseguições anunciadas. Mas, no Pentecostes, viram-se iluminados, fortificados e confirmados na graça.

N o céu, o temor filial permanece sob a forma de temor

reverenciai. Diz, com efeito, o salmista (3) : «O santo temor

» do Senhor permanecerá por todos os séculos» (4). Deixará de ser o temor do pecado, o temor da separação de Deus. A alma tremerá, de certo modo, ao ver o seu nada, a sua fragilidade, ante a infinita grandeza do Altíssimo e a ne­ cessidade absoluta de Deus, o único Ser por essência (5). Neste sentido, diz-se no prefácio da missa: «tremem as potestades» (6); mesmo os anjos superiores, aqueles que se denominam «potestades» tremem ante a infinita majes­ tade de Deus.

Este dom do temor reverenciai, assim como os restantes dons do Espírito Santo, existe mesmo na alma do Salva­ dor.'

( ! ) I , n , q. 6 1 , a. 2 .

(2) Diálogo, cap. 74.

( 3) Sa l m o X I X , 1 0 .

(4) Timor D om ini sanctus, permanens in saeculum saeculi. (5) Ego sum, qui sum.

(6) Tremunt potestates.

O temor reverenciai manifesta-se nos santos, cá na vida terrena. Pedro, depois da primeira pesca milagrosa, diz para Jesus: «Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador». E Jesus responde: «Não tenhas medo, doravante serás pescador de homens». Pedro, Tiago e João, neste momento, deixaram tudo para o seguirem. (.Luc., V, 8).

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Estas três espécies de temor são, como vemos, muito diferentes umas das outras. O temor mundano, que afasta de Deus, é sempre mau. O temor servilou o temor dos cas­ tigos é útil para a salvação, desde que não seja servilmente servil, isto é, desde que se não continue disposto a pecar, embora o mero medo das penas eternas leve à abstenção do pecado. O temor filial é sempre bom, aumenta a cari­ dade como os restantes dons do Espírito Santo e subsiste mesmo no céu, a título de temor reverenciai. — Senhor, li­ vrai-nos do temor mundano; diminuí em nós o temor servil e aumentai o temor filial.

A psicologia humana, entregue a si mesma, jamais poderia distinguir estes dois sentimento^; teve de intervir a revelação, expressão da Sabedoria divina.

Certos moralistas não cristãos ensinam uma moral in­ teiramente desinteressada, dizem eles, em que não há temor dos castigos divinos nem desejo de recompensa eterna. Con­ fessar que tiveram medo alguma vez, fá-los-ia corar, per­ turbaria a harmonia das suas lições (*).

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O É a posição de Kant, que os racionalistas fizeram sobres­ sair por significar uma negação das verdades sobrenaturais reveladas. Quando, pelo contrário, alguém se colQca no .ponto de vista da reve­ lação, muitos dos grandes filósofos aparecem com o espíritos poderosos mas falsos, que não revelaram mais que um engenho especial para

«Competia ao Espírito Santo reabilitar o temor» — como disse Gardeil (x). E fá-lo de três m odos: reprovando o temor mundano ou respeito humano, mostrando que o temor dos eternos castigos de Deus é útil ao pecador, porque o leva a converter-se, e mostrando, sobretudo, que o temor filial do pecado ou da separação de Deus constitui um dom sobre­ natural que cresce cada vez mais com a caridade. F oi este santo temor que inspirou as mortificações dos santos e a sua vida reparadora, para obterem a conversão dos peca­ dores. É este santo temor que se manifesta em Dom ingos, que se flagelava todas as noites até o sangue correr, para granjear a conversão dos pecadores que evangelizava. Foi este santo temor que inspirou ainda as mortificações de uma Catarina de Sena, de uma Rosa de Lima e de tantos outros santos. Mas, acima do temor filial, mesmo na sua forma mais sublime que permanece no céu, a doutrina cristã reconhece o lugar eminente do amor a Deus e às ..almas. Os efeitos desse amor encontram-se tão bem des­

critos na Imitação de Cristo (L. I ll, cap. 5), que seria útil ler essas passagens no fim deste estudo sobre o inferno, para ver melhor o contraste entre a condenação eterna e a eterna felicidade.

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a exposição do erro. N ã o passaram de grandes sofistas. Muitos deles aparecem com o monstros intelectuais, que falsearam completamente a noção de Deus, a do homem e a do nosso destino. Foi particular­ mente o caso de Espinoza, de Hume e de Hegel. Assim, pensa, no fundo, tode1 0 verdadeiro teólogo católico e pensava-o Santo Agostinho acerca da obra dos grandes sofistas: «Grande passo, mas fora da via». Vê-lo-emos claramente na eternidade, quando a visão horizontal do tempo, em que o erro aparece muitas vezes no mesmo plano da verdade, tiver dado o lugar à visão vertical que, lá do alto, tudo julga à maneira de Deus, causa suprema e fim último. Deste ponto de vista, as perspectivas de muitas histórias da filosofia serão singularmente modificadas e a superficialidade de muitos juízos servirá para melhor, avaliar o sentido e o significado dos juízos definitivos.

í1) Os dons do Espírito nos santos dominicanos, pág. 60.

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 89-93)