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O CONHECIMENTO PRETERNATURAL A alma separada, por já não dispor de corpo, deixa de

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 59-63)

O II P edro , III, 12,

O CONHECIMENTO PRETERNATURAL A alma separada, por já não dispor de corpo, deixa de

proceder às operações sensitivas dos, sentidos externos e internos, em particular da imaginação, porque tais opera­ ções constituem apanágio de um órgão animado. Além disso, só radicalmente possui as faculdades sensitivas ;'estas- faculdades em acto, só podem èxistir no composto humano. A imaginação humana, assim como a animal, deixa de èxistir actualmente após a corrupção do órgão respectivo, acontecendo o mesmo com os hábitos das faculdades sen­ sitivas, por.exemplo, as recordações da memória sensitiva. . -Deixam de existir em acto, passam a existir só radical­ mente. Portanto, uma alma separada, sensitivamente, não vê, não ouve, não imagina.

. N o entanto, conserva actualmente as faculdades supe­

riores, puramente espirituais', a inteligência e a vontade e os hábitos destas. Mas é preciso estabelecer uma diferença

entre as almas condenadas e as restantes. As almas conde­ nadas podem conservar certos conhecimentos adquiridos, mas não as virtudes, quer as adquiridas quer as infusas: perderam a fé e a esperança infusas. Pelo contrário, as almas do purgatório conservam a ciência adquirida que possuíam e as virtudes quer adquiridas quer infusas das faculdades superiores, designadamente a fé, a esperança, a caridade, a prudência, a piedade, a penitência, a justiça e t a humildade. Isto é muito importante.

£)o mesmo m odo, a alma separada conserva os actos. destas faculdades superiores e dos hábitos que nela perma­ necem. N o entanto, o exercício destes actos vê-se de certo modo limitado, porque já não conta com o concurso da

imaginação nem da memória sensitiva, concurso muito útil { para se poder servir das ideias abstractas das coisas sen­

síveis. Que aconteceria a um pregador que já não tivesse o uso da imaginação ao serviço da sua inteligência?

Por isso, os teólogos ensinam coinummente que o modo

de ser da alma separada do corpo, além de ser preternatural

(porque a alma foi feita para animar o corpo), dispõe tam­ bém de um modo de ir preternatural, que recebe de Deus

no momento da separação, e de ideias infusas quase se­ melhantes às dos anjos, das quais pode servir-se sem o con­ curso da imaginação (J). Se, cá neste mundo, determinado teólogo cegar, na impossibilidade de ler, talvez se torne sobre­ tudo um homem de oração e passe a receber inspirações superiores para melhor conhecer o próprio espírito da teo­ logia. Talvez antes, trabalhasse muito e não rezasse bas­ tante; agora, dedica-se à oração interior, o que representa um progresso.

Mas, destas ideias infusas, recebidas pela alma separada, deriva uma outra dificuldade, muito diferente da anterior. Se o uso das ideias abstractas e adquiridas se torna difícil sem o concurso da imaginação, também é mais fácil a utili­ zação das ideias infusas, por elas serem de certo modo

muito elevadas para a inteligência humana, a última de todas

as inteligências, aparelhada para aprender apenas o último dos inteligíveis na sombra das coisas sensíveis. Estas ideias infusas ultrapassam, por assim dizer, a alma, como os con­ ceitos metafísicos excedem um espírito não preparado ou uma armadura gigante atrapalha um jovem combatente. David preferia a sua funda à armadura de Golias.

Mas, apesar de encontrar estas duas dificuldades na sua actividade cognoscitiva, a alma tem em compensação o poder

de se ver a si mesma intuitivamente como o anjo se vê (I, q. > 89 a. 2). Conhece com nitidez, sem nenhuma dúvida possível,

a sua espiritualidade, a sua imortalidade, a sua liberdade, em si mesma, como num espelho; conhece com uma certeza

perfeita Deus, autor da sua natureza. Resolve os grandes

problemas filosóficos com perfeita clareza. São Tomás chega

(') I, q. 89, a. I,

mesmo a dizer: «a alma neste estado, fica, de certo modo, mais livre para entender» (x).

Segue-se daí que as almas separadas conhecem-se natu­

ralmente umas às outras, embora menos perfeitamente que

os anjos.

Através das ideias infusas que receberam, conhecem não

somente o universal, mas os singulares, por exemplo as p e s­

soas que ficaram na terra e que têm uma relação especial

com elas, quer pelos laços de família e de amizade, quer por uma ordenação divina. A distância local não impede este conhecimento que não provém dos sentidos, mas das ideias infusas (cfr. ibid., a. 4 e 7). Assim, a alma de uma boa mãe cristã, no purgatório, recorda-se dos filhos que, deixou na terra.

Conhecerão estas almas o que se passa à superfície da terra? São Tomás {ibid., a. 8) responde: por natureza, ignoram-no porque se encontram separadas da sociedade daqueles que vão ainda a caminho. Todavia, se se trata das almas dos bem-aventurados, é mais provável que conheçam como os anjos o que acontecerá na terra, sobretudo àqueles que lhes são queridos; isso faz parte da sua beatitude aci­ dental.

As que estão no purgatório podem pensar em nós, mesmo que ignorem o nosso estado actual, assim como nós rezamos por elas, embora ignoremos o que lhes acon­ tece, por exemplo, se ainda estão no purgatório ou se já foram libertadas.

A EVITERNIDADE

' E O TEMPO DESCONTÍNUO

Qual será a duração para as almas separadas (2)? Distinguem-se três principais durações: o tempo, a eter­

O «Anima quodammodo sic liberioi est ad intelligendum» {ibid.).

( 2) S ã o Tomás trata esta questão I, q. 10, a. 4-8, sobretudo a. 5. c. e ad 1 m; cfr. Ca i t a n o, Jo ã o d e Sã o To m á s, Go n e t.

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nidade e uma duração intermédia, chamada o aevum ou eviternidade, da qual vamos falar.

A duração que nos corresponde na terra é o tempo con­

tínuo, medida do movimento contínuo, sobretudo do movi­

mento aparente do sol; por intermédio dele distinguimos as horas, os dias, os anos e os séculos. Quando a alma se separou do corpo, mas ainda não se encontra beatificada, tem uma dupla duração: o aevum, a eviternidade e o tempo descontínuo. A eviternidade é a duração daquilo que há de

imutável nos anjos e nas almas separadas, a duração da sua

substância, do seu conhecimento natural, de si, de Deus e do amor que dele resulta. A eviternidade não encerra va­ riação, sucessão, é um perpétuo presente; mas difere da eternidade, porque de facto começou e porque está unida ao témpo descontínuo que pressupõe antes e depois.

O tempo descontínuo ou discreto, oposto ao tempo con­

tínuo ou solar, constitui, nos anjos e nas almas separadas, a medida dos pensamentos e afectos sucessivos. Um pensa­ mento dura um instante espiritual, o pensamento seguinte dura outro instante espiritual. Fazemos dele uma ideia, ao reflectir que, cá na terra uma pessoa em êxtase pode perma­ necer duas horas solares e mais com um só pensamento, que representa para ela um só instante espiritual. Na mesma ordem de ideias, a história costuma caracterizar os séculos, por exemplo, o século XIII ou o século X\^II, pelas ideias que predominam em cada um deles. Diz-se: o século de São Luís, o século de Luís XIV. Segue-se daqui que um instante espi­ ritual na vida dos anjos ou das almas separadas pode durar muitos dias e mesmo muitos anos do nosso tempo solar, como uma pessoa em êxtase durante trinta horas seguidas, pode estar absorvida por um só pensamento.

Para as almas beatificadas, a esta dupla duração da eviternidade e do tempo descontínuo junta-se a eternidade

partiçipada, que mede a visão beatífica da essência divina

e o amor que dela resulta. É o único instante da imóvel eternidade, sem nenhuma sucessão. A eternidade participada

difere, portanto, da eternidade essencial, própria de Deus, como o efeito difere da causa e, porque teve começo. De mais a mais a eternidade essencial de Deus mede tudo o que além disso há nele: a sua substância e todas as suas operações, ao passo que a eternidade participada só mede na alma beatificada a visão beatífica e o amor de Deus dela resultante. A eternidade constitui como que o ponto indi­ visível representado pelo cimo de um cone ou de uma mon­ tanha; o tempo contínuo equivale à base deste cone; a eviternidade e o tempo descontínuo situam-se entre os dois como uma secção cónica circular e como o polígono nela inscrito.

O tempo contínuo corre sem cessar; o seu presente inunc

fiuens) derrama-se sempre entre o passado e. o futuro; por

isso, a nossa vida presente encerra uma variada sucessão de horas de trabalho, de oração, de sono. A eternidade, pelo contrário, é um perpétuo presente (nunc stans) sem jmssado nem futuro, o único instante de uma vida que se possui de uma só vez (tota simul). A eviternidade aproxi­ ma-se disto; permite conceber melhor a imutabilidade da ■vida da alma separada, não beatificada ou não beatificada ainda: a imutabilidade do conhecimento que tem de si mesma, a imutabilidade do querer que se dirige para o fim último escolhido, a imutabilidade de querer o bem ou o mal, consequência da imutabilidade do juízo sobre o fim último, a partir do instante da separação do corpo.

Convém lembrar as palavras de Santo A gostinho: «Une-te à eternidade de Deus e serás eterno; une-te à eter- nickrdè de Deus e espera na companhia dele os aconteci­ mentos que se passam à tua volta» (x). Consideremos os diversos momentos da vida terrestre não apenas na linha

horizontal do tempo que corre entre o passado e o futuro,

mas também sobre a linha vertical que os liga ao único

(') Comra. in Salmo 91.

^ Si an^ da ÍmÓVel eterni^ e . Nessa altura, os nossos actos cada vez mais m entonos e praticados por amor de D eus’ passarao do tempo à eternidade, onde permanecerão e s ’ critos para sempre no «livro da vida». maneCeiao es'

Esta atitude teológica a respeito das diversas espécies tmRt í r amelhora i T * ’ d° pUrgatÓrÍO e do céu> permite dis-

guir melhor, ja na vida presente, aquilo a que se node

c m m " o temno ' ° “ mp° * ”,ma' ° temP“ d»

corpo e o tempo solar que, mede a duração do nosso orea

™ e, sob este pomo de vista, quem tem o Z m X

muito jbvenu ^ Ve'h° ' M “ “ SUS a,ma P °de

. "iSSIm como se distinguem três idade na vida do coroo — a mfancia, a ldade adulta e a velhice - distinguem-seTam bem no justo três idades da vida da alma: a vida purgativa unitiva dao fp S;4 to s a ilUr” ína,iVa d° S adiamad0S 6 a vida vir ^ T a lv Ír ^ J ^ d 6’ aclueles 9ue se salvam ou hão-de

, n J ’ m tCr Praticado àlgum acto relevante

nao retratado mais tarde. Embora depois disso não tenha os s'uTfrutTs ^ eXtra0rdÍnário> aq - l a acção produziu Conhecemos um rapaz israelita, filho de um banqueiro de Viena de Áustria que, tinha ele vinte e cinco ano^m os^ IdvT rírio dPa°Sf° T Um Pr° CeSS^ COntra 0 mai°r

vtram lhe 1 ,

"’ PTOCeSSO * * ° teria enriquecido. Vieram-lhe entao a memona as palavras do Pai N os,o cue

inha ouvido recitar algumas vezes: «Perdoai-nos as nossas dido>>aSpen ™u te™ n° S perdoamos a quem nos tem ofen-

Pensou de si para si: e se, em limar de mover este processo que me encheria de dinheiro, eu lhe perdoasse? E perdou inteiramente, renunciando para sempre à propo-

ura da acçao. N o mesmo momento, passou a acreditar

Z qT a °, a í » montanha d

uz que tal livro representa, por este atalho que era a m

lavra do

Pai Nono.

O rd e n o u ^ sacerdote, enTou p a r/o s '

dominicanos e morreu com cinquenta anos de idade, mas a alma permaneceu ao nível a que se tinha elevado no mo­ mento da conversão e aproximou-se insensivelmente da eterna juventude que a vida do céu constitui. O Senhor pode por vezes pedir-nos actos de certo relevo, e temos de prestar muita atenção. Talvez um grande acto de entrega venha assim a decidir não só toda a nossa vida espiritual cá na terra, mas a vida da eternidade. Medimos uma cadeia de montanhas pelos seus cumes. Jesus emprega o mesmo sistema para avaliar a vida dos justos.

No documento O Homem e a Eternidade (páginas 59-63)