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A imprensa na divulgação dos crimes

O papel social da imprensa de viabilizar a divulgação dos acontecimentos é garan- tido pelo direito de livre expressão, previsto no artigo 5º, inciso IX, da Constituição

2 “Après avoir salué l’accès à une mémoire enfin intégrale, la société connectée commence de fait à en redouter les excès, et à réclamer aux experts techniques et juridiques l’instauration d’un droit à l’oubli.”

Federal de 1988, que prescreve que é livre a expressão da atividade intelectual, ar- tística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O direito à informação se apresenta de forma bilateral, na medida em que também assegura o direito de informar, descrever os fatos. O desenvolvimento pessoal e so- cial está vinculado à liberdade de pensamento e de expressão, sendo a liberdade de informação jornalística fruto deste direito de liberdade de pensamento, pois, segun- do Caldas, (1997, p. 65) “na raiz da liberdade de imprensa […] está a liberdade de pensamento”. A produção das notícias é parte fundamental da vida social e cultural contemporânea, considerando a inserção da comunicação em todos os campos da vida humana e da história da humanidade.

O crime e o jornalismo sempre tiveram relações estreitas. A história do jorna- lismo comercial é permeada por expressões como “sensacionalismo”, “espetáculo”, “tragédia”. Pelo fato de a relação entre o crime e o jornalismo ser extremamente interdisciplinar, tem-se que a atuação da mídia merece ser analisada, notadamente quanto à forma de abordagem do crime na mídia, especialmente devido ao poten- cial poder da imprensa de influenciar a opinião pública. Para a população, em geral, notícias envolvendo atos criminosos são atrativas e interessantes, o que, de igual modo, move a atração e o interesse da imprensa. A atenção das pessoas é chamada pelas coberturas acontecimentais, que conduzem a grandes emoções ou comoções, positivas ou negativas. Nesse viés, a cobertura de crimes costuma ser recorren- te na mídia, pois, ao que parece, representa algo sempre de interesse do público. Os crimes dos quais resultam mortes seriam, por sua vez, “critério de noticiabilida- de por excelência”. (LEAL, 2012, p. 91)

Conforme Traquina, (2016, p. 233) “o objetivo declarado de qualquer órgão de informação é o de fornecer relatos dos acontecimentos julgados significativos e inte- ressantes.” Ainda nesta linha, ao fazer menção à morte como acontecimento jornalís- tico, Benetti (2012, p. 153) assim se pronuncia: “A morte é o que chamo, pensando no campo jornalístico, de evento fascinante, porque mobiliza uma série de percepções que provêm do imaginário e vão além do fato narrado.” Esse ir além do fato narrado converge com o que Hall e demais autores (2016) comentam sobre como os meios estão sensibilizados para a potencialidade do crime como fonte de notícias devido à quantidade de situações fáticas que desencadeia através da deflagração e da conclusão das investigações criminais, prisões e condenações de envolvidos. Quando cometido com o uso de violência, destacam os autores, o crime atrai ainda mais a atenção da mídia e do público em comparação com um crime cometido sem violência. Além de

representar uma ruptura fundamental na ordem social,3 a violência compreende o

maior exemplo de consequências negativas dos valores-notícia.

Crimes de ampla repercussão despertam a atenção, provocam na população a ideia de que um suspeito deve ser preso, processado e punido como exemplo. Todavia, há que se resguardar a conduta ética do agir jornalístico pela imprescindibilidade de se resguardar o direito à ampla defesa, à justa investigação e ao esclarecimento dos fatos. Não se pode rotular um acusado de criminoso antes da condenação, nem tampouco expor o condenado a tal condição após o cumprimento da pena. É nesse ponto que o jornalismo precisa ter cautela ao divulgar informações de fatos, em tese, criminosos, imputados a alguém, pois a forma de veiculação de informações pode acometer às partes uma série de danos que podem ser irreparáveis e irreversíveis, como, por exemplo, no caso de posterior absolvição de um acusado que tenha sido apontado como criminoso pela imprensa, com base nas investigações que o tenham indicado como suposto autor de um crime.

A abordagem jornalística habitualmente evidencia um framing, um enqua- dramento do fato que noticia, utilizando certas palavras, expressões e, por vezes, adjetivos que promovem uma abordagem que molda o acontecimento, recortan- do determinado ângulo do fato ou do problema tratado, tornando-o mais evi- dente. Presentemente, diante da facilidade e da instantaneidade de divulgação das informações e notícias, as exigências em relação aos cuidados que a imprensa precisa tomar na cobertura de fatos criminosos devem ser sólidas e rigorosas, pois determinadas formas de conduzir uma matéria jornalística podem levar inocen- tes a serem julgados socialmente, o que implica em danos muito mais graves do que a própria pena imposta pela lei. Uma vez cumprida pena, o condenado tem o direito de voltar ao convívio social e tomar novo rumo em sua vida. A possível estigmatização praticada no discurso jornalístico impede essa ressocialização e reinserção profissional, já que a perda da dignidade moral acontece muitas vezes através da forma como o indivíduo é tratado em textos jornalísticos.

3 Conforme define Rodrigues (2016, p. 51): “É acontecimento tudo aquilo que irrompe na superfí- cie lisa da história entre uma multiplicidade aleatória de fatos virtuais. Pela sua natureza, o acon- tecimento situa-se, portanto, algures na escala das probabilidades de ocorrência, sendo tanto mais imprevisível quanto menos provável for a sua realização. É por isso, em função da maior ou menor previsibilidade, que um fato adquire o estatuto de acontecimento pertinente do ponto de vista jornalístico; quanto menos previsível for, mais probabilidade tem de se tornar notícia e de integrar assim o discurso jornalístico. No caso dos crimes, o crime cometido com violência que se transforma em notícia ganha visibilidade pelo interesse que ganha no âmbito social.”

A atribuição do jornalismo é fundamental nesse processo, quando da impor- tância da notícia sobre o relato do acontecimento, mas é fundamental considerar que não se pode ir além da realidade que sustente a criação da notícia. “As notí- cias não podem ser vistas como emergindo naturalmente dos acontecimentos do mundo real; as notícias acontecem na conjugação de acontecimentos e de textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia também cria o acontecimento”. (TRAQUINA, 2016, p. 234) O que se quer dizer com isso é que o jornalista, ao criar a notícia, está também moldando o acontecimento; os jornalistas não observam passivamente o que se passa, são participantes ativos nesse processo de construção da realidade. Com a produção de sentidos que emerge das redes a partir dos co- mentários, o jornalismo passa a ser ampliado a partir dessa atividade que se estende na publicação. A leitura não se esgota no texto jornalístico emitido pelo veículo, pois os sentidos não partem apenas de um único ator. A pluralidade de vozes se manifesta nos comentários, que acabam compondo um conjunto de sentidos di- versos, refletindo a (in)tolerância sobre o assunto da matéria. No caso discutido aqui, o jornalismo e o direito se atravessam, para pensar as práticas jornalísticas em um ambiente de múltiplos atores que compõem um cenário midiático pautado por práticas comunicacionais e normas jurídicas.

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