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“Assassino em série com traços de psicopatia”: a medicalização do crime

Após a detenção de Marinésio, a reportagem “Maníaco que matou Letícia e Genir diz ter assediado ao menos 10 mulheres”, de Mirelle Pinheiro, para o jornal

Metrópoles, em 2019, destacou que o homicida não demonstrava remorso pelas

mortes de Genir e Letícia, lamentando somente a prisão e a repercussão dos acon- tecimentos. A notícia trouxe, ainda, a informação de que ele costumava circular de carro à procura de mulheres que estivessem sozinhas, com o intuito de assediá-las. Esta postura foi interpretada como típica de um indivíduo dotado de frieza doen- tia. Nem mesmo quando o criminoso confessou ter molestado pelo menos 10 mu- lheres, o gênero foi mencionado como fator essencial para a análise da motivação dos crimes.

Narrar os crimes de Marinésio como a história de um louco que assassinou inocentes, de maneira aleatória, aparece como ângulo de abordagem mais promis- sor para a imprensa, norteada por critérios de noticiabilidade como o impacto, a intensidade, a excepcionalidade e a imprevisibilidade dos fatos. (SODRÉ, 2012) Além disso, tal enquadramento está afinado com o processo de medicalização que pauta a existência no mundo contemporâneo, caracterizada por um alargamento da jurisdição da área da saúde para novos domínios, em particular aqueles que dizem respeito à ordem moral. (AGUIAR, 2004; FREIRE FILHO; BAKKER, 2019)

Nas reportagens que compõem o nosso estudo de caso, prevaleceu a explicação dos delitos calcada no entendimento do sujeito criminoso como um assassino em série, com um perfil de psicopata. Tal abordagem foi validada por 38 dos 58 textos que examinamos. A matéria “Marinésio tem perfil de assassino em série com traços de psicopatia”, de Alan Rios e Alexandre de Paula, publicada pelo Correio Braziliense em 2019, exemplifica bem esse enfoque. O jornal afirmou, de início, que a polícia

“ainda” evitava identificar Marinésio como um criminoso em série, porque estaria aguardando avaliações psicológicas e psiquiátricas “mais profundas”. Os autores da notícia deixaram transparecer seu descontentamento pela demora na confirmação de algo que lhes parecia evidente. Recorreram, então, à palavra de uma autoridade que ratificasse o sentido desejado: Ilana Casoy, enaltecida, na matéria, como uma das principais especialistas do país em serial killers. A criminóloga disse acreditar que Marinésio poderia ser incluído na categoria dos assassinos em série – rótulo atribuído ao indivíduo que cometeu “dois ou mais assassinatos, envolvendo ritual com as mesmas necessidades psicológicas” e com uma “assinatura particular”.

Outra justificativa de Casoy para classificar Marinésio como serial killer – “mesmo sem se aprofundar especificamente nos detalhes do caso” – foi que es- tes delinquentes não iniciam sua carreira de infrator como homicidas. Tendem a começar praticando estupros, nos quais a fonte de satisfação é a própria violên- cia, em vez do sexo. Sob uma perspectiva de gênero, seria possível ponderar que o prazer da violação e do domínio do corpo feminino são condições onipresentes nas agressões sexuais — marcadas pela força e pelo ódio. (TELES; MELO, 2017) A criminóloga, todavia, apontou este fato como um indício da atuação dos assas- sinos em série, acrescentando que eles agem munidos pela raiva e interessados na humilhação da vítima.

Profissionais de outras áreas também se pronunciaram na reportagem. A de- legada Jane Klébia declarou que Marinésio não agiu com coerência nem possuía motivação para os crimes cometidos, sugerindo que os assassinatos decorressem de um transtorno mental. As relações de poder envolvidas no abuso sexual não foram consideradas por ela. Assim como Ilana Casoy, a delegada não discerniu, na atuação do assassino, um problema de violência de gênero, mas sim um caso clínico. A au- sência de motivações consistiria numa particularidade do serial killer, caracterizado por escolher suas vítimas ao acaso e por matá-las apenas por prazer. Estaríamos, pois, diante de um indivíduo que, devido a uma desordem mental, age sem outra intenção que não seja a maldade pela maldade. Esse ponto de vista ofusca outra pos- sibilidade de enxergar o fenômeno: sob a perspectiva de um crime de ódio contra as mulheres, os assassinatos não são encarados como ocorrências que se destacam inteiramente da realidade cotidiana – figuram como práticas que reafirmam, por meio da violência, as relações de poder vigentes na sociedade patriarcal.

O psiquiatra Raphael Boechat, da Universidade de Brasília, foi mais um a expor seu parecer. Para chegar a uma conclusão sobre o assunto, ele admitiu que seria

necessária uma análise específica do caso. Apesar disso, também não se furtou a for- mular o diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial, com o apoio dos elementos fornecidos pela mídia. “É um quadro muito difícil, mas é o quadro geral desses crimes mais bizarros e que não envolvem a perda do juízo. A pessoa sabe o que está fazendo exatamente”, argumentou. O transtorno de personalidade antis- social mencionado pelo psiquiatra é conhecido, popularmente, como “psicopatia”. De acordo com o DSM-5, os indivíduos com essa desordem mental demostram ausência de arrependimento pelos atos praticados e “não têm êxito em ajustar-se às normas sociais referentes a comportamento legal”. (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 660)

As figuras do “doente” ou do “anormal” surgem, então, como chaves expli- cativas para dar sentido a desvios comportamentais. O fenômeno da patologi- zação dos crimes, delineado a partir do processo de internação em manicômios (FOUCAULT, 2014), é frequente em situações de inconformismo social, quando uma coletividade não encontra justificativas para um evento e não compreende a violência gerada pelo comportamento desviante. Isso acontece, em parte, devido à incapacidade de perceber o ódio como uma emoção que integra e, por vezes, con- figura a existência humana e a vida em sociedade.

Ao patologizar a conduta de Marinésio, o relato jornalístico se concentrou mais na análise da personalidade do criminoso do que na discussão do contex- to cultural e social do crime. O nexo causal entre homicídios e distúrbio mental – prontamente estabelecido, sem maiores esforços analíticos – rechaça qualquer ligação entre a violência contra a mulher e a lógica de funcionamento da sociedade patriarcal. Outra consequência da patologização é a possível vinculação do crime de ódio apenas a delitos que geram horror e enorme revolta na população, banali- zando e apagando violações diárias, comuns e “menores” que são vivenciadas pelas mulheres. O perigo e o ódio são desconectados das instituições e da estrutura so- cial; toda a atenção se concentra na figura do criminoso transtornado.

Os crimes qualificados de “assassinatos em série” ocorrem, entretanto, em um contexto patriarcal, desvelando o caráter extremo da cultura de misoginia na qual estamos imersos. (WATTIS, 2017, p. 2) Esta cultura misógina se manifesta, por exemplo, em discursos sobre a necessidade de a mulher “se valorizar”, em críticas a expressões de sua sexualidade, na tolerância perante atos de violência considera- dos “menores” e no processo de culpabilização de mulheres que sofrem agressões. A figura do criminoso lunático que agride uma sequência de mulheres pode ser

avaliada, historicamente, como uma construção típica da modernidade. (WATTIS, 2017, p. 7) Este indivíduo doentio representaria uma degeneração do homem mo- derno ideal, que possui sexualidade exaltada, mas que controla seus impulsos com racionalidade. Como a noção moderna – e misógina – da mulher como objeto sexual que instiga o desejo masculino também influi na formação do imaginário sobre assassinos em série, pode-se argumentar que estes infratores refletem os va- lores sociais, ainda que de maneira distorcida ou hiperbólica.

Uma entrevista da esposa de Marinésio publicada pelo Correio Braziliense, na matéria de Isa Stacciarini (2019), “Filha de Marinésio está sem ir para escola desde divulgação de assassinatos”, demonstra como o assassino compartilhava princípios misóginos que podem ser relacionados aos crimes cometidos, mas que a mulher menciona como atributos positivos, sem conexão com os atos violentos – uma vi- são reproduzida pela mídia, de maneira acrítica. O diferencial desta abordagem foi apresentar a perspectiva de alguém próximo do assassino e que tentava humani- zá-lo, conferindo-lhe predicados morais. A esposa (cujo nome não foi divulgado) garantiu que Marinésio era uma pessoa “normal”, que gostava de criança, traba- lhava, não fumava nem bebia e tampouco usava drogas. Além disso, contou que abandonara o seu emprego para cuidar do lar, a pedido dele. Este comportamento, valorizado moralmente por ela, não foi correlacionado pela matéria às dinâmicas de opressão de gênero. Vale notar que os elogios à conduta habitual de Marinésio serviram como fundamento para que a esposa sustentasse que os assassinatos de Letícia e Genir foram consequência de “algum surto”. Ela acrescentou, ainda, que as novas acusações de estupro e assédio contra o cônjuge deveriam ser investigadas com cautela, mostrando desconfiança em relação às denúncias e corroborando a ideia de que os homicídios praticados por Marinésio foram ocorrências isoladas.

Em outra reportagem sobre o caso, “Mulher de feminicida do DF: ‘Era um marido ótimo, carinhoso e trabalhador’”, de Jéssica Nascimento (2019), publicada no portal UOL, a noção de fenômeno patológico extremo também foi enfatizada. Dessa vez, contudo, mediante um contraste entre o relato da esposa de Marinésio e as opiniões de dois peritos: a delegada Jane Klébia e o psiquiatra Fábio Coelho. A companheira do assassino reiterou suas qualidades positivas – “um marido óti- mo, carinhoso e trabalhador” – a fim de realçar a ideia do caráter totalmente atípico e transtornado de suas ações criminosas. Jane Klébia reafirmou, por sua vez, que Marinésio é um “maníaco” que mata por matar, sem saber explicar o motivo, agin- do totalmente por impulso. Novamente, a delegada não levou em conta a hipótese

da misoginia como motivação para os crimes – quer dizer, o fato de as vítimas de assassinatos brutais serem mulheres e terem sofrido abuso sexual não foi examina- do como um dos possíveis fatores explanatórios para a execução dos homicídios.

O ponto de vista da representante da lei, baseado em noções como impulsivida- de e irracionalidade, divergiu das ideias apresentadas pelo psiquiatra Fábio Coelho. Segundo ele, foi possível constatar que o assassino de Brasília demonstrou frieza ao falar sobre os crimes, sem manifestar arrependimento ou ansiedade, uma conduta característica dos psicopatas. A frieza de Marinésio foi salientada, também, em di- versas notícias, como uma evidência de condição patológica. A estranheza diante de um ser humano que cometeu crimes cruéis sem esboçar “nenhuma emoção” foi amplamente explorada. Conforme anunciou o jornal Metrópoles, teriam vindo à tona “[...] revelações chocantes que comprovam [...] o comportamento frio e calcu- lista do serial killer”. (SPIES; CARONE, 2019) O texto destaca o fato de o “maníaco” ter participado de um churrasco, após matar Genir, como se nada tivesse ocorrido.

Há duas ideias centrais nas reportagens. Em determinados momentos, favo- receu-se a hipótese de descontrole emocional, em que o ímpeto agressivo aparece como absolutamente inusitado. Em outros trechos, a frieza e a ausência de emo- ções é que foram destacadas como características insólitas. Estas formulações se complementam para criar o panorama do transtorno de personalidade antissocial, marcado tanto por desejos incontroláveis quanto por falta de profundidade ou de envolvimento emocional. (MORALES, 2005) Em ambos os casos, ocorre, assim, uma interpretação patologizante do crime, na qual o cerne do problema estaria situado no âmbito individual, na mente do sujeito. Ao descrever detalhes da vida de Marinésio, o homem desviante foi posto em evidência, na busca por entender as razões de tamanha violência, desprovida de motivações específicas, segundo a mí- dia. A questão social e política da misoginia e da violência de gênero é minimizada ou completamente eclipsada.

A negação da animosidade existente nas relações sociais é uma característica proeminente da cultura brasileira. Como se sabe, “cordialidade”, “bondade”, “sim- patia” e “alegria” aparecem, desde os anos 1930, como elementos definidores da identidade ou do caráter nacional, mascarando a intolerância, os preconceitos e a brutalidade presentes em nossa história, nossas relações sociais e nossa vida políti- ca. (FREIRE FILHO, 2015) O machismo e o ódio às mulheres também são negados ou encobertos pela sociedade, ainda que fenômenos concretos como a violência de gênero façam parte do cotidiano de qualquer cidade. (TELES; MELO, 2017)

Lewis, Rowe e Wiper (2018) argumentam que relacionar os crimes contra as mulheres ao ódio é uma forma de tornar mais visível a prevalência da misoginia (etimologicamente, “ódio às mulheres”). Este tipo de delito evidencia as divisões sociais e uma ampla intenção excludente, para além dos danos causados à vítima principal, o que torna imprescindível sua abordagem crítica. As reportagens exa- minadas neste tópico colaboraram, entretanto, para reforçar o imaginário de uma sociedade naturalmente harmoniosa, na medida em que atribuem um caráter ex- traordinário e patológico ao crime. O papel do ódio nos delitos cometidos não foi sequer mencionado nas notícias. Uma análise profícua desta emoção permite enxergá-la como parte inerente das instituições e das relações sociais, com pro- pósitos diversos. No caso do ódio direcionado às mulheres, percebe-se um meca- nismo de controle dos corpos femininos, mantendo-os em seus “devidos lugares”, de acordo com a ideologia patriarcal. (GING; SIAPERA, 2019) Como veremos no próximo tópico, outras matérias procuraram situar os atos de Marinésio neste con- texto de violência contra mulheres, sem explorar adequadamente, contudo, este eixo analítico.

“Não me escutaram”: os crimes de Marinésio como

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