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Obstáculos do reconhecimento na arena política: retrocesso cultural e despolitização

Na seção anterior, indicamos que a Teoria do Reconhecimento entende que a ex- periência de dano e desrespeito pode vir a motivar resistência coletiva, o ques- tionamento de normas sociais e, ainda, reconstruir os quadros de expectativas recíprocas nas interações sociais. Assim sendo, as “lutas por reconhecimento” re- querem uma série de ações para transformação social, que vão desde a capacidade dos sujeitos desfavorecidos de articularem a crítica social e se engajarem em discus- sões coletivas na esfera pública, passando pela representação política e pela pressão sobre decisões em processos de institucionalização em instâncias políticas formais. Em consonância com as teorias dos movimentos sociais, sabemos que esses proces- sos dependerão, naturalmente, de uma série de fatores em cada situação concreta. (DELLA PORTA, 2013, DELLA PORTA; DIANI, 2006; GAMSON, 1992; MAIA, 2018a) Claro está que cada conflito social precisa ser estudado a partir de sua pró- pria especificidade. Contudo, como podemos distinguir entre ações estrategicamen- te orientadas de combate e confronto, ligadas a formas de participação progressista, e aquelas ligadas à participação conservadora-autoritária na arena política?

As lutas por reconhecimento moralmente motivadas remetem a distintos pro- cessos de politização. (CAL, 2016; HONNETH, 2003a; GARCÊS, MAIA, 2009; MAIA, 2014, 2017; MENDONÇA, 2012; WOOD, FLINDERS, 2014; WOOD, 2016) Com base na tipologia proposta por Colin Hay (2007) de 3 formas de politização, podemos dizer o tipo mais básico de politização (tipo 1) refere-se à construção de significados a partir da perspectiva dos participantes dos conflitos sociais. Este processo – fundante das lutas por reconhecimento – ocorre quando há questiona- mento do status, de poderes ou de papéis que antes pertenciam à ordem natural ou ao reino do fato. Dentro da abordagem teórica do reconhecimento, as respos- tas individuais aos sentimentos de injustiça – ligados às experiências negativas de

exclusão, estigmatização, dominação e exploração, frequentemente vivenciadas nas interações cotidianas – estão associadas à capacidade desses sujeitos de tema- tizar os danos como problemas socialmente construídos, de modo que eles não sejam mais vistos como destino ou como parte da “ordem natural” da sociedade. A capacidade dos cidadãos de falar sobre suas próprias aspirações e necessidades, a fim de identificar fatores estruturais e obstáculos sociais à própria emancipação ou autorrealização, é um requisito crucial para o desenvolvimento de sua autonomia, bem como para garantir a inteligibilidade da injustiça. (HONNETH, 2011, 2012; DERANTY, 2009; ZURN, 2010) Os sentimentos de injustiça, se articulados com sucesso, constroem uma “semântica coletiva”, i.e., quadros comuns de interpreta- ção coletiva que fornecem motivação para a resistência e para propor remédios para as injustiças ou solução para os problemas detectados, e, assim, buscar trans- formar a sociedade numa dada direção.

Uma das principais características de grupos autoritários ou extremistas é a tentativa de apagar as vozes e os discursos que contestam padrões hegemônicos. No terreno discursivo, a eliminação de diferenças se dá, em grande medida, a par- tir da projeção de uma noção homogênea e polarizada do conflito. Demandas por direitos avançadas pelo feminismo, por movimentos negros, grupos LGBTQI+ e grupos indígenas são percebidas como divisões artificiais na comunidade política. (NORRIS, INGLEHART, 2019) A partir da perspectiva conservadora, a crítica às dominações associadas ao racismo, ao machismo, à homofobia é frequentemente vista como improcedente ou como formas de vitimização. Seriam demandas que corroem os propósitos comuns dos cidadãos e contribuem para desestabilizar a so- ciedade, (DRYZEK; DUNLEAVY, 2009; NORRIS; INGLEHART, 2019) ainda que dados estatísticos atestem a violência cometida contra essas parcelas da população. No ranking de violência contra a mulher, por exemplo, o Brasil está em 7º Lugar, com uma taxa de 4,4 homicídios em 100 mil mulheres, sendo a taxa de homicídio de mulheres negras 71% maior do que a de não negras.7 O Brasil também registra

uma morte por homofobia a cada 23 horas, de acordo com relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2019.

Membros dos grupos conservadores, com caráter autoritário ou extremista, frequentemente se afirmam como “cidadãos de bem”, “humanos direitos”, “patrio-

tas” que se confrontam com grupos sociais externos, inferiores ou perigosos (“ban- didos”, “vagabundos”, “pervertidos”, “inimigos da pátria”). Nesses casos, o autori- tarismo inclui um “moralismo convencional punitivo” (SMITH, 1967; MUDDE, 2007) para que a ordem social seja firmemente (re)estabelecida e que todos saibam o seu lugar nela. Neste sentido, o discurso conservador convoca, em particular, a premissa de proteção da família, da pátria ou da religião como a justificativa para a emergência de uma ideologia antipluralista e anticosmopolita. (BIROLI, 2018; SOLANO, 2019)

O não reconhecimento da legitimidade dos interlocutores carrega consigo uma violência duplamente perversa. Perversa não apenas por denegar o status igualitá- rio daqueles que pensam diferente, mas, também, por desvalorizar e subjugar os oponentes, pessoas pertencentes a minorias nacionais ou grupos marginalizados previamente excluídos (como pessoas pobres, mulheres, gays e lésbicas, índios, negros), ou aqueles com distintas posições político-ideológicas (como segmentos políticos alinhados à esquerda). Segundo Solano (2019), o ataque ao campo pro- gressista propõe que “os movimentos [das denominadas pautas identitárias] se- riam os culpados das opressões que eles buscam combater”. (SOLANO, 2019, p. 319) De tal modo, imputa-se culpa a esses cidadãos por destruírem a forma boa e segura de vida, pelo “roubo dos direitos” e pela degradação dos costumes ou da moralidade social.

A segunda forma de politização (tipo 2), segundo a tipologia de Colin Hay (2007), se caracteriza pela transição de questões do reino privado para a esfera pública, de modo que problemas antes tidos como concernentes ao indivíduo ou ao foro íntimo passem a se constituir como problemas de interesse geral e, assim, a nortear novas concepções na sociedade e balizar as tomadas de decisão coleti- va. Este tipo de politização envolve a disputa pública de significados em torno de conflitos sobre fatos, valores e interesses. A teoria honnethiana, como já discutido, parte da premissa que a luta por reconhecimento é sempre um processo desafia- dor. Os atos de reconhecer e de ser reconhecido não chegam a um final definiti- vo, (DERANTY, 2009; ZURN, 2010) mas requerem o debate público com grupos oponentes, grupos aliados e, ainda, com grupos de potenciais observadores para se conquistar uma definição mais geral das injustiças, se elas são ou não procedentes, e o que pode ser feito para amenizá-las.

Como já discutido, grupos marginalizados, via de regra, buscam expor dife- rentes experiências de dano e desrespeito na esfera pública, com a expectativa de

que suas demandas possam ser reconhecidas pelos demais. Isso porque a agência, a autonomia e a autorrealização pretendida requerem a afirmação e o reconhecimen- to dos outros. No contexto brasileiro, podemos apontar diversos relatos recentes de experiências que mobilizaram grupos em redes sociais, por exemplo, por meio das seguintes hashtags: #ÉCrimeSim, #MeuAmigoSecreto e #BlackLivesMatter. Em qualquer sociedade complexa e pluralista, espera-se que exista conflito entre os anseios e as crenças subjacentes às preferências dos cidadãos e dos grupos sociais. De tal modo, não se pode assumir de antemão que as demandas de determinado grupo estejam necessariamente localizadas no “polo do bem” ou no “polo do mal”. O nosso argumento é o de que o confronto na esfera pública se torna tóxico para a democracia e para as dinâmicas de reconhecimento quando se busca eliminar a legitimidade dos interlocutores e subtrair a própria concepção de esfera pública, como local de discussão democrática sobre as diferenças, com vistas a chegar a entendimentos e acordos que sejam aceitos pelas partes, sem o uso da força.

No âmbito da esfera pública, a despolitização mais evidente envolve a tenta- tiva de negar explicitamente a dimensão coletiva dos problemas e, assim, retirar da pauta política as demandas por direitos, redistribuição de recursos ou valori- zação das contribuições na esfera do trabalho. Esta forma de despolitização (tipo 2), caracterizada por esforços para que questões problemáticas do reino público retrocedam para o reino privado, é tipicamente negacionista. A respeito dos grupos LGBTQI+, dizem que, atualmente, já possuem e desfrutam de direitos suficientes, além de influir na desconstrução da família tradicional. Em relação aos negros, contestam que não há motivos para políticas de ações afirmativas, já que somos todos iguais, e a escravidão se estancou no passado. As mulheres não devem ser tratadas com privilégios em relação aos homens, uma vez que também são capazes. As políticas redistributivas e de inclusão que visam a reduzir as desigualdades são interpretadas como programas que estimulam a preguiça e desencorajam o esforço próprio, além de onerar demasiadamente o Estado. Os direitos humanos tendem a ser vistos como fruto de um sistema excessivamente benevolente e ineficaz, que protege bandidos.

Grupos conservadores ligados ao libertarianismo não abraçam necessaria- mente causas morais, já que pouco se importam com comunidades e tradições, mas apenas com o mercado e os indivíduos. (DRYZEK; DUNLEAVY, 2009; MIGUEL, 2018) A recusa de reconhecer demandas de grupos excluídos ou desfavorecidos combina a negação do aspecto social e estrutural dos problemas com a ideia de me-

ritocracia. A luta coletiva é menosprezada porque os grupos reivindicantes deman- dam direitos, valorização na esfera do trabalho e maior inclusão social sem o devi- do esforço pessoal. Contestam que a pluralização incessante de grupos e demandas

ad infinitum por reconhecimento levam ao caos político: deixam os governos “in-

governáveis”, exercem pressões financeiras que quebram o Estado e bloqueiam a ação dos agentes públicos em áreas prioritárias.

Grupos conservadores de caráter autoritário tipicamente atribuem superiori- dade moral a si mesmos e não têm interesse em trocar argumentos e refletir sobre valores e preferências com quem pensa diferente. (SMITH, 1967; VAN PROOIJEN; KROUWEL, 2016) Diante do desacordo, ao invés de ouvir o que os outros têm a dizer, esses grupos tomam o outro como alvo de ataques e insultos. (HAMELEERS, 2019; PENNA, 2018; SOLANO, 2019) Tipicamente, eles iniciam a comunicação com humilhação pública e recomendação por punição. Esta interpelação obstrui, de maneira prática, a possibilidade de os interlocutores prosseguirem com a comu- nicação para apresentar suas demandas ou para argumentar sobre a propriedade das mesmas. Diante do insulto e do rebaixamento social, pessoas e grupos ofen- didos podem optar por um silêncio penoso ou por defender a própria dignidade e o direito de existência social, ou, ainda, por contra-atacar com insultos. Em qual- quer situação, contudo, os interlocutores dificilmente podem construir um diálogo substantivo sobre questões que os afetam. Esta forma de suprimir o dissenso, ao eliminar o terreno comum para construir o diálogo através das diferenças, contri- bui para a corrosão mesma da esfera pública.

Neste contexto, aqueles que propagam discursos de ódio tipicamente veem a si mesmos como vítimas. (PEREIRA, 2017; SMITH, 1967) No caso do combate à criminalidade, propõe-se o uso extremo da força contra infratores e acusados, devido às dificuldades de punição por meio do sistema penal. Neste sentido, os próprios direitos humanos são constantemente atacados, ainda que endereçados a distintos alvos em diferentes países.8 O presidente Jair Bolsonaro defendeu, em sua

campanha, uma série de argumentos que sintetizam este posicionamento, ao aliar autoridade militar, a não garantia dos direitos humanos para acusados de crimes e leis mais severas. Em seu site na campanha eleitoral, o presidente eleito apre-

8 Nos ataques aos direitos humanos, há variabilidade de alvos: enquanto na Hungria os alvos do primeiro ministro Viktor Orbán são os imigrantes, nas Filipinas, do presidente Rodrigo Duterte, são os acusados de crimes.

sentou-se comprometido com “a redução da maioridade penal, ao armamento do cidadão de bem e ao direito de autodefesa, pela segurança jurídica da ação policial.” (BOLSONARO, 2019) O plano de governo apresentado propôs “alterar o sentido das políticas de direitos humanos, priorizando o direito de legítima defesa das víti- mas.” (BRASIL, 2018) Sobre os direitos fundamentais, o documento declarou que “todo cidadão, para gozar dos seus direitos plenos, deve obedecer às leis e cumprir com suas obrigações.” (BRASIL, 2018)

Este cenário é desafiador para as lutas por reconhecimento, porque a visão uni- versalista dos direitos humanos é desqualificada, na medida que questões particu- lares, valorizadas por segmentos específicos, são tomadas como legalmente e politi- camente mais importantes que os direitos humanos. De acordo com Joas (2012), os direitos humanos estiveram sob constante ameaça desde o início da consolidação jurídica desses nas democracias liberais, toda vez que outras sacralizações – como a sacralização da nação, da religião ou da raça – buscaram se impor sobre o valor e a dignidade fundamental das pessoas. Assim sendo, os direitos humanos não são conceitos autoexplicativos, mas, ao invés disso, historicamente mutáveis. Eles de- pendem de estratégias contingentes para o seu fortalecimento. (BEVIR, 2006) E, mais, os argumentos para a defesa devem ser justificados e submetidos ao escrutí- nio público, (CURATO et al., 2019) e, se bem-sucedidos, devem ser tomados como referencial em agendas políticas na busca do bem comum.

Por fim, as lutas por reconhecimento bem-sucedidas exigem um terceiro tipo de politização relacionado a processos de institucionalização, ao desenca- dear debates legislativos sobre as novas leis ou políticas públicas para assegurar maior inclusão e oportunidades para grupos que sofrem injustiças. Segundo Hay (2007), esta forma de politização (tipo 3) visa a reforçar a responsabilidade dos ór- gãos governamentais para ampliação de direitos, redistribuição de renda, políticas afirmativas e de proteção a grupos oprimidos ou desfavorecidos. Estudos prévios, desenvolvidos à luz da Teoria do Reconhecimento, apontam a dinâmica de luta permanente que engendra distintos graus de institucionalização: os dispositivos legais de proteção e as disputas judiciais em torno dos direitos das comunidades quilombolas; (BARGAS; MAIA, 2019) a inclusão dos serviços domésticos na lista das piores formas de trabalho infantil; (CAL, 2016); a lei que reconhece a língua de sinais como meio legal de comunicação de pessoas surdas; (GARCÊS; MAIA, 2009; MAIA; GARCÊS, 20013) e a institucionalização de direitos e compensações às pes- soas com hanseníase e o impacto em sua estima social. (MENDONÇA, 2011, 2014)

A ascensão de líderes populistas em democracias liberais tem imposto desa- fios a muitos dos pressupostos das lutas por reconhecimento aqui apresentados. Em países de regimes democráticos mais consolidados, as cortes constitucionais, a mídia e a sociedade civil têm demonstrado resiliência ao impor limites às in- vestidas iliberais de líderes autoritários. Há, entretanto, regimes híbridos, em que estruturas políticas liberais, com uma base de direitos e avanços políticos conquis- tados por minorias, (NORRIS; INGLEHART, 2018) convivem com governos po- pulistas, que administram o apoio público com medidas iliberais e antidemocráti- cas. (AVRITZER; STARLING, ZANANDREZ; BRAGA, 2019; ILLING, 2017) No Brasil, questões que antes eram consideradas inquestionáveis – como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição brasileira de 1988 e até o pró- prio regime democrático – agora são alvo de ataque. Grupos de extrema-direita defendem a ruptura da democracia para instauração do regime militar, apoiando- -se em processos institucionais para ferir a própria constituição. O vínculo entre a expansão da sociedade civil conservadora e a ascensão de líderes populistas oferece suporte a práticas iliberais e autorizam violações à liberdade de expressão e à liber- dade de associação. Os casos de censura à arte são exemplos de formas de coerção em que os representantes eleitos utilizam aparatos legais para impedir a livre ex- pressão, como no caso da exposição Queermuseu, que foi vetada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, logo após ter sido encerrada antecipadamente em Porto Alegre, com duras críticas de grupos conservadores que acusaram as obras de apologia à pedofilia, zoofilia e blasfêmia.

Na esfera governamental, a politização reativa, caracterizada pelo sentimento de ameaça e urgência, é também um mecanismo populista para impor uma pauta única e obstruir o debate público genuíno nas casas parlamentares. Temas como a “guerra contra o crime”, a “imigração ilegal”, a “escalada da corrupção” ou a “degra- dação da moralidade pública” provocam intensas reações por parte da população e incitam pânico moral. Ao catalizar a insatisfação popular e o medo de grupos perigosos, alimentados pela necessidade de agir com rapidez, a institucionalização desta política exige medidas imediatas, incompatíveis com a participação dos cida- dãos e com o amplo debate público.

Ademais, a política reativa, frequentemente, rejeita os procedimentos das insti- tuições democráticas, vistas como corruptas, fisiológicas e ineficazes. Este contexto cria condições para a implementação de soluções simples, unidimensionais, para problemas complexos ou a adoção de medidas extraordinárias, como o abuso da

força. Novamente, a visão homogeneizada da sociedade sustenta a busca de solu- ções simplistas para um inimigo comum, tido como causa de todos os problemas. Podemos citar alguns exemplos, como o armamento para solucionar questões de segurança pública e o projeto “Escola Sem Partido” para sanar conflitos na área da educação. De modo mais radical, muitos dos apoiadores do governo populista conservador estão dispostos a abrir mão da democracia para combater o inimigo que ameaça a estabilidade da sociedade das mais variadas maneiras.

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