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populismo conservador e a crítica ao multiculturalismo

no Brasil

paulo vaz amanda santos nicole sanchotene

Um jantar em Washington

O diagnóstico de que estamos testemunhando a ascensão dos discursos de ódio e das práticas de intolerância parece ter se tornado consenso. Após a censura de Marcelo Crivella a livros da Bienal do Rio porque continham imagens de um beijo entre dois homens, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello afirmou que “um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do re- púdio ao princípio democrático”.1 Há diversas reportagens apresentando dados

1 Celso de Mello, do STF, diz que censura de livros se deve a “trevas que dominam o poder do Estado”. (BERGAMO, 2019)

que apontam a proliferação desse sentimento durante as eleições de 2018. Numa comparação com as eleições de 2014, os números de denúncias de crimes ligados à intolerância na internet mais que dobraram.(MESQUITA, 2018)

É difícil determinar se está efetivamente acontecendo um aumento da intolerância e do ódio. Percebe-se o aumento, mas a percepção não reage apenas ao “real”. Como a percepção é também orientada pelas crenças e valores vigentes, essa sensação de mais intolerância pode ter sido determinada, primeiro, pela mudança no limiar socialmente constituído de sensibilidade a atos intolerantes – mudança de limiar que favorece a ampliação do número de atos considerados intolerantes. Em segundo lugar, essa sensação pode ter sido formada pela ampliação do número de ocasiões sociais em que é apropriado para um indivíduo se pensar e se propor como vítima de preconceito.

Em vez de fato a ser verificado e explicado, a intolerância pode ser concebida como discurso ético e político de nossa cultura. Sob esse ponto de vista, o que explica a sensação de mais intolerância? A mudança de limiar de sensibilidade e o maior número de denúncias estão vinculados à emergência de um novo modo de fazer política, ele próprio derivado da recente dominância de um novo princípio ético definindo o que é a boa vida: a exigência de autenticidade. Essa exigência se concretiza no princípio do dano e faz da vítima uma figura maior de nossa socie- dade, um lugar social disputado por diferentes grupos.

De fato, houve nos últimos anos um avanço dos movimentos conservadores ao redor do mundo. Este artigo propõe pensar como a ascensão política da nova direi- ta não é uma mera reação de oposição ao discurso moral da tolerância, pois ela se coloca no interior desta moralidade e explora a sua retórica a seu favor. Trata-se de pensar como o conservador passou a disputar a posição de vítima de preconceito; como ocorreu esta figura curiosa e paradoxal: o conservador que se pensa como autêntico e questionador das crenças vigentes.

Além de problematizar o nexo direto entre aumento de intolerância e denúncia de preconceito, por realçar a dimensão estratégica desse discurso nos confrontos políticos, este artigo também tem uma razão mais imediata e paroquial: pensar a importação de ideias conservadoras norte-americanas para a política brasileira. Em março de 2019, a visita oficial de Jair Bolsonaro aos Estados Unidos foi marca- da por um jantar que reuniu membros de seu governo e personalidades da direita norte-americana, no que teria sido a “Santa Ceia da direita”, (DIAS, 2019) segundo a Folha de S. Paulo. O que chamou atenção no encontro é que Bolsonaro prefe-

riu ficar ao lado de Olavo de Carvalho e Steve Bannon, mesmo estando presentes aqueles que a mídia considerava os baluartes do seu governo, os ministros Sérgio Moro e Paulo Guedes.

Estiveram ainda no jantar Eduardo Bolsonaro e o então desconhecido assessor da presidência, Filipe G. Martins. Cabe retomar um breve histórico da articulação entre esses personagens. Antes de assumir o cargo aos 30 anos, Filipe G. Martins ocupava um posto de baixo escalão no TSE e se dedicava a difundir ideias de Olavo de Carvalho nas redes sociais. Foi também pela internet que conheceu Eduardo Bolsonaro em 2014 e estabeleceu uma relação próxima com a família. Martins foi ainda responsável pela ponte com Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump e ex-editor do Breitbart News, portal de notícias de extrema-direita que já foi acu- sado de associação à alt-right, movimento centrado em defender o nacionalismo branco, o antifeminismo e a xenofobia.

Em uma tentativa de entender melhor este vínculo entre o conservadorismo bra- sileiro e o norte-americano, escolhemos analisar o canal do YouTube Tradutores de

Direita, indicado pela família Bolsonaro diversas vezes em suas redes sociais. Eduardo

e Carlos Bolsonaro compartilham com frequência os vídeos legendados pela página em suas contas do Twitter; já Heloísa Bolsonaro, casada com Eduardo, recomendou o canal em uma sessão de coaching em reportagem da Época. (SACONI, 2019)

O Tradutores de Direita, mais do que constituir o objeto empírico da pesquisa, serve de janela para compreender a parcela do eleitorado de Bolsonaro que acredi- tamos constituir o núcleo duro de seus apoiadores: presumidamente jovens bran- cos incomodados com o politicamente correto e com um suposto “establishment esquerdista”, aqueles que já o chamavam de “mito” quando poucos davam relevân- cia a ele. Se eleitores evangélicos e antipetistas escolheram apoiar Bolsonaro pelas circunstâncias políticas, os seguidores de Olavo de Carvalho já viam no então de- putado a possibilidade de uma nova frente conservadora no Brasil. Bolsonaro, as- sim, não teria inaugurado um pensamento conservador no país – sua eleição só foi possível porque, para além de um contexto político favorável, houve uma articula- ção de figuras-chaves que trabalharam para importar argumentos já consolidados na direita norte-americana contra o multiculturalismo2 e o politicamente correto.

2 Entendemos o multiculturalismo como o conjunto de crenças e políticas a favor da inclusão social e do reconhecimento de minorias étnicas, raciais, sexuais e de gênero. Essa interpreta-

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