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Mapa das moralidades: modos de ver disputas na sociedade contemporânea

A ideia de dignidade humana tem mobilizado os movimentos pelo direito à mo- radia em redes de ativismo político on-line que se apresentam hoje como uma oportunidade de visibilidade. A mobilização nas redes sociais configura um recur- so estratégico adicional de comunicação para essas lutas, mas não há evidências de “aumento” de participação. (BENKLER et al., 2015; THEOCHARISA;LOWE, 2015) Ainda assim, as redes se apresentam como ambiente propício para a cons- trução daquilo que Melucci (1996) chama de “dimensão latente dos movimentos sociais”, responsável pela construção de um “nós” em relação a “outros”, para fazer frente a uma sub-representação nos meios de comunicação de massa, nos quais os atores coletivos buscam aumentar sua visibilidade e sua ação política.

Numa pesquisa com cinco mobilizações nas redes sociais digitais, Prudencio (2014) observou que a adesão às campanhas no Facebook é baixa se forem consi- derados os números de curtidas, compartilhamentos e comentários. A análise do padrão de interação indica que o Facebook é utilizado como amplificador de uma demanda central e como reforço do vínculo entre os ativistas, que se reconhecem como integrantes de uma mesma luta. O processo interacional nas redes sociais, em casos de demandas por justiça social, atua como processo de aprendizagem de participação e de formação de redes. Possuem também, como observaram Prudencio e Silva Junior (2013) em um estudo sobre rappers de Curitiba, função estética e política de angariamento de simpatizantes e de identificação de possíveis aliados da luta contra a exclusão no espaço urbano.

Assim, o ativismo digital por demandas de justiça social se caracteriza por forjar um espaço de preparação para um diálogo mais institucional com o poder público, na medida em que os ativistas se reconhecem, estruturam seus discursos, encontram aliados e com eles se fortalecem como interlocutores políticos. (PRUDENCIO, 2018) Ao perguntarmos aos administradores das páginas quais os objetivos desse canal de comunicação, as respostas foram: “criar vínculos, informações e trocas de experiên- cias de uma comunidade com a outra” (Ocupação Dandara); “divulgar a luta e a ima- gem da organização, se comunicar com o pessoal dos outros estados, fazer redes de contatos e de apoiadores” (Brigadas Populares – Minas Gerais); “de mobilização até denúncias e críticas pontuais” (MLB); “fortalecer as lutas, dar visibilidade, denunciar as injustiças, angariar redes de apoio” (Ocupação Vitória e Resiste Izidora).

Assim, o uso do Facebook por mobilizações aponta para o que argumentamos neste capítulo: as demandas morais elaboradas juntamente com as demandas ma- teriais acabam por resultar em uma utilização da plataforma mais para a construção comunicacional de uma solidariedade interna e visibilidade do que para provocar efeitos externos nas políticas governamentais. São espaços de engendramento de no- vas moralidades, reafirmação de lutas, visibilidade de causas, protagonismo dos afe- tados e revelador desse pano de fundo moral que hierarquiza os sujeitos de modo a estabelecer quem pode ou não ter acesso à moradia. Para captarmos essas demandas morais que circulam acerca do direito à moradia, nos utilizamos de um mapeamento das moralidades, do mesmo modo que Garcêz e Cal (2013) e Cal e demais autores (2018), no sentido de buscar revelar as pretensões para além das demandas materiais.

delimitações e caracterização do corpus

Realizamos buscas no Facebook com os nomes das ocupações identificadas em Belo Horizonte para mapearmos tanto as páginas das próprias ocupações quan- to as de movimentos pelo direito à moradia ligados a elas. Selecionamos as cinco páginas mais expressivas, com maior número de postagens, sendo duas de ocu- pações de Belo Horizonte (Ocupações Dandara e Vitória) e três de movimentos pelo direito à moradia que atuam na cidade (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas de Minas Gerais, Resiste Izidora e Brigadas Populares – Minas Gerais). Trabalhamos com o período compreendido entre 2014 e 2015 em razão desse con- texto ser marcado pelo ápice das mobilizações públicas como também da repressão policial devido à conjuntura político-social (realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas), e pela ausência de políticas públicas para as ocupações urbanas (o plano de habitação e o plano diretor da cidade datam de 2018 e 2019, respectiva- mente). Ao todo, foram coletados 4978 posts, dos quais foram selecionados apenas os que estão diretamente relacionados às pautas e demandas pelo direito à moradia. As páginas selecionadas são:

• Resiste Izidora:9 com 10.508 seguidores, a página é mantida por ativistas,

como o conhecido Frei Gilvander, e por alguns moradores das ocupações Rosa Leão, Vitória e Esperança, localizadas na região do Isidoro (Zona

Norte) de Belo Horizonte. Estima-se que morem 8 mil famílias nas ocupa- ções, um total de cerca de 30 mil pessoas.

• Ocupação Vitória:10 A página, com 2.212 seguidores, foi criada por inte-

grantes da própria ocupação que existe há seis anos, com cerca de 4,5 mil famílias. A página é mantida pelos moradores, pelo Frei Gilvander e é a única que possui moderação nos comentários.

• Dandara Resiste:11 Página com 3.784 seguidores, criada e administrada

por integrantes da própria ocupação, localizada na região Norte de Belo Horizonte, no bairro Céu Azul. Reúne cerca de mil famílias em 40 hectares de ocupação e existe desde abril de 2009.

• MLB – Minas Gerais:12 Página do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e

Favelas de Minas Gerais, com 6.037 seguidores. O MLB é uma iniciativa nacional, presente em 13 estados. Ativistas são responsáveis pela página, que conta com pouca participação dos moradores de ocupações.

• Brigadas Populares – Minas Gerais:13 A página possui 8.487 seguidores.

O movimento surgiu em 2011, como uma iniciativa nacional com núcleos estaduais. Os ativistas são responsáveis pela página, que não conta com par- ticipação de moradores de ocupações.

procedimentos de coleta e análise

A coleta foi realizada a partir do aplicativo Netvizz, do Facebook, que possibilitou gerar tabelas com os textos das postagens, datas, curtidas e compartilhamentos das postagens. A coleta foi feita já excluindo os compartilhamentos (shared) – a partir da filtragem do próprio programa Netvizz – e, durante a análise, caso algum

10 Disponível em: https://www.facebook.com/ocupacaovitoria/?fref=ts. Acesso em: 15 dez. 2016. 11 Disponível em: https://www.facebook.com/comunidadedandara/?ref=ts&fref=ts. Acesso em:

15 dez. 2016.

12 Disponível em: https://www.facebook.com/MLB-Minas-Gerais-543206729121454/timeline. Acesso em: 15 dez. 2016.

13 Disponível em: https://www.facebook.com/brigadaspopularesmg/?fref=ts. Acesso em: 15 dez. 2016.

compartilhamento ainda aparecesse, foram desconsiderados, por isso a diferença entre posts coletados e posts analisados.

Uma vez que o objetivo do trabalho é analisar a construção das demandas dos ativistas on-line, analisamos apenas os textos verbais escritos pelos ativistas, sem considerar os conteúdos audiovisuais ou as respostas e comentários dos visitantes das páginas, bem como as postagens compartilhadas de outras páginas. Partindo de um paradigma relacional da comunicação, entendemos que os materiais au- diovisuais (fotos e vídeos) e as postagens compartilhadas (como as notícias, por exemplo) funcionam como suporte para a construção argumentativa dos ativistas, e que os comentários e respostas às postagens reverberam no resultado do uso da plataforma para a construção comunicacional do ativismo. Como já dito na se- ção teórica, entendemos que o ativismo digital se caracteriza por forjar discursi- vamente um espaço de preparação e de organização para um diálogo institucional com o poder público, para um diálogo ampliado com a sociedade civil e para a formação de redes de solidariedade interna e para visibilidade. Entendemos que nesse processo, as redes sociais on-line, como o Facebook, tornam-se um espaço potente, uma vez que sua natureza aumenta o alcance das mensagens políticas e podem ampliar o engajamento do cidadão. (GIL DE ZUÑIGA; VALENZUELA, 2011; HARDY; SCHEUFELE, 2005; PAPACHARISSI, 2004; VALENZUELA; KIM; GIL DE ZUNIGA, 2011; XENOS; MOY, 2007) Nosso olhar se volta para a ponta final do processo: o discurso construído na e a partir das redes sociais on-line pelos líderes ativistas. Partimos da premissa de que esse discurso é resultado das trocas comunicacionais possibilitadas pela natureza interativa do espaço público das re- des sociais.

Antes de proceder com a codificação,14 foi realizado um teste de confiabili-

dade para verificar o entendimento dos códigos e a aplicabilidade da pesquisa.

14 Tanto o teste de confiabilidade quanto a codificação foram realizados com base em um livro de códigos composto por cinco demandas morais, uma categoria para postagens estratégicas e ou- tra para publicações fora do tópico analisado. Dentro de cada demanda moral, há ainda catego- rias específicas, que buscam promover uma distinção entre as demandas e evitar a sobreposição de códigos. Assim, nosso livro de códigos é composto pelas seguintes variáveis: 1) Dignidade e integridade física (1– Denúncia de violência policial, 2 – Denúncia de despejo, 3 – Denúncia de assassinatos e mortes, 4 – Menção a casos de violência policial, 5 – Menção a casos de despe- jos, 6 – Menção a assassinatos e mortes); 2) Garantias fundamentais de vida (1 – Moradia como sobrevivência e como dignidade humana e 2 – Doação para a ocupação); 3) Direito à cidade (1– Inclusão na cidade, 2 – Direito de ir e vir, 3 – Direito a usufruir de bens públicos e 4 – Reforma

Duas codificadoras analisaram individualmente uma amostra aleatória de 10% (385 posts) do corpus total. Os resultados foram processados a fim de gerar o coe- ficiente alfa de Krippendorf (HAYES; KRIPPENDORF, 2007), que varia de 0 a 1. Para ser aprovado, o alfa de Krippendorf deve ser acima de 0.600. Neste trabalho, a concordância mínima foi de 0,604, encontrada na demanda “b) garantias fun- damentais de vida”. Nas categorias restantes, o alfa de Krippendorf ultrapassou 0,780 de concordância e em uma delas – “c) direito à cidade” – alcançou o índice de 0,813. Além disso, em todas as categorias a porcentagem de acordo foi maior que 90%.15

Para a análise de conteúdo, identificamos em primeiro lugar se todas as pos- tagens apresentavam demandas materiais. Em seguida, identificamos qual tipo de demanda moral estava relacionada a elas, sendo que em muitas das postagens são expressas mais de uma demanda moral. As demandas morais possíveis são:16 A)

preservação da dignidade e integridade física; B) garantias fundamentais de vida; C) direito à cidade; D) direito coletivo em detrimento do direito privado; E) direito a participação nas negociações. As outras postagens foram classificadas como pos- tagens estratégicas.17

urbana); 4) Direito coletivo em detrimento do direito privado (1 – Denúncia de construtora – inte- resse privado ou de empresas; 2 – Sorteio do Minha Casa, Minha Vida e 3 – Mérito e privilégio); 5) Direito à participação nas negociações (1 – Negociação em relação ao despejo); 6) Post estratégi- co (1 – Doação para manifestação, 2 – Convocação para evento, 3 – Compartilhamento de outros coletivos e 4 – Convocação para conhecer outros materiais midiáticos); e 7) Off topic.

15 O alfa de Krippendorf e a porcentagem de concordância observados, respectivamente, no teste de confiabilidade em cada demanda são: A) dignidade e integridade física: 0,781% e 98,5%; B) garantias fundamentais de vida: 0,604% e 96,1%; C) direito à cidade: 0,813% e 98,1%; D) direito coletivo em detrimento do direito privado: 0,796% e 98,4%; E) direito à participação nas negociações: 0,651% e 90,3%.

16 As definições e diferenciações de cada categoria de demanda moral analisada nesta pes- quisa foram construídas com base na literatura sobre moradia e direitos humanos, discutidas na introdução deste texto. A identificação das categorias se deu com base na presença ou ausência de códigos apresentados na nota de rodapé 17. Essas categorias foram objeto do teste de confiabilidade para evitar erros de codificação e interpretações ambíguas.

17 Demandas estratégicas são postagens que compartilhavam ações cotidianas do ativismo, tais como legenda de fotos, chamadas para eventos para aproximar a comunidade das ocupa- ções, chamadas para manifestações ou assembleias de moradores, notícias sobre as ocupa- ções ou convite para participar de hashtags nas redes sociais.

Tabela 1. Mapeamento das postagens e codificação

Página Postagens Off

Coletadas Analisadas Estratégicas

Brigadas 1.513 1.442 295 882 Izidora 728 728 531 49 MLB 389 389 144 78 Dandara 122 122 45 59 Vitória 2.226 1.183 571 384 Total 4.978 3.864 1586 1452

Fonte: elaboração dos autores.

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