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testemunho e fama na sociedade midiatizada

mohammed elhajji

otávio cezarini ávila

Introdução

Em janeiro de 2018 apareceu no horário nobre da Rede Globo um refugiado sírio. Ao contrário das vestimentas tradicionais dos países majoritariamente islâmicos, ele trajava um crucifixo no pescoço e falava um bom português, assim como ou- tros cinco idiomas que já dominava. Kaysar Dadour era um sírio comum, que saiu de seu país por um motivo complexo: a guerra que se arrasta por lá desde 2011. O refugiado não estava na televisão para representar a comunidade síria ou de refu- giados para uma reportagem. Ele aparecia na televisão para disputar o prêmio mi- lionário do Big Brother Brasil 18. Não ganhou o prêmio, mas o segundo lugar, fruto de sua personalidade extrovertida. Suas constantes trocas de visuais e algumas pa- queras no reality show deram indícios de como sua vida mudaria dali em diante. Era uma nova migração que Kaysar Dadour iniciava, agora do anonimato à fama. A partir desse exemplo, situamos o contexto da migração no Brasil na atualidade, articulando a teorias sobre o estrangeiro e a noção de vítima, que marca a existên- cia daqueles que precisam se mover para sobreviver como um trauma incurável.

Utilizamos como escopo de análise uma abordagem interpretativa da presença do refugiado no ecossistema midiático que ele se “candidata”, a partir do momento em que aceita participar do reality show. De modo especial, analisamos sua página no Instagram e a consolidação deste refugiado na televisão a partir da vinculação en- tre a personalidade carismática e a representação humanitária compartilhadas que, inclusive, inserem Kaysar Dadour como um dos rostos-propaganda da agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para os refugiados no Brasil.

O conflito com o estrangeiro

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Relações de poder baseadas na diferença entre grupos e indivíduos marcam a his- tória humana. Desde que o homem iniciou sua trajetória de mobilidade, encontrou no Outro aspectos não familiares a si e, com isso, os conflitos passaram a ser com- preendidos como constitutivos das sociedades. Não há sociedade sem conflitos, mas a afirmativa não precisa ser vista como um peso. O sociólogo Georg Simmel (1983) observou que nos conflitos sociais gerados nesses encontros constitutivos há virtude, pois eles podem produzir uma metamorfose nas interações resultantes, de forma que hiatos – ou limites preestabelecidos socialmente – possam ser supe- rados. (ALCÂNTARA JÚNIOR, 2005)

O conflito em Simmel reproduz-se nas interações sociais localizadas no inte- rior da sociedade, no mesmo lugar de onde se estabelece a microfísica do poder. Trata-se não apenas de observar a objetividade do poder e da diferença, na sociolo- gia, mas na subjetividade estabelecida entre indivíduos e grupos.

A etnografia e a fenomenologia trataram do aspecto subjetivo desse lugar ocu- pado pelo “entre” na compreensão do poder e da diferença. Em sua única obra

1 Neste artigo trabalhamos com três conceitos similares: estrangeiro, imigrante e refugiado. O primeiro é de ordem subjetiva. Estrangeiro é todo aquele que não partilha um mesmo pa- drão cultural daqueles ao qual se integra, (SCHUTZ, 2010) podendo ser ele um imigrante ou não. O segundo é referente a todo aquele que se desloca de um país a outro. Sayad (1998) aprofunda a característica subjetiva da alteridade, aproximando definitivamente o imigrante do estrangeiro. Mas a noção aqui de imigrante é também objetiva, ligada ao deslocamento não forçado de indivíduos de um país a outro. Já o terceiro conceito diferencia-se do se- gundo pela ordem da sobrevivência. É o imigrante forçado, aquele que se desloca a fim de preservar sua vida contra fundados temores de perseguição de diferentes ordens, violação de direitos humanos e conflitos armados. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1951)

etnográfica, Norbert Elias, acompanhado de John Scotson (2000), analisou como a pequena comunidade de Winston Parva2 se estruturava entre os estabelecidos

– aqueles mais antigos – e os outsiders – aqueles que chegaram posteriormente –, de modo que os primeiros estigmatizavam os segundos, produzindo nessa relação barreiras físicas e existenciais que, segundo Elias e Scotson (2000), ultrapassariam a lógica de dominação para uma crença na superioridade de um grupo sobre o outro. E é na fenomenologia de Alfred Schutz (2010)3 que vem a consideração so-

bre o estrangeiro como aquele indivíduo sem história perante os nativos, pois seu passado não é reconhecido e nem toma parte do padrão cultural do grupo aproxi- mado, mesmo sendo a ele acessível. O que Schutz busca explorar na compreensão do estrangeiro/estranho é a distância entre o padrão cultural encontrado por ele e seu pensar habitual, marcado por sua cultura de origem.

Exemplos podem ser dados a fim de facilitar a dimensão teórica. No cotidia- no da vida pública, em cidades grandes ou pequenas, o imigrante ou o forastei- ro, como nos acostumamos a assistir em filmes projetados no interior brasileiro, é sempre objeto e sujeito de um estranhamento suscitado a partir de ações do coti- diano e cujos estigmas vão sendo superados na medida em que a comunicação se estabelece na negociação das diferenças produzidas pelo conflito. É o forasteiro que chama atenção pelas suas roupas diferentes e seu sotaque; é o imigrante que precisa habituar-se à refeição, ora muito apimentada, ora aprimorada no café da manhã e despojada no almoço. Diferenças pelas quais só estão habituados aqueles que par- ticipam originalmente do padrão cultural, embora a adaptação completa não seja negada por Schutz e a crença na capacidade do estrangeiro em se unir à vida do grupo aproximado seja reforçada pelo autor.

Se em Schutz a relação entre o estrangeiro e o nativo é observada sob o ponto de vista da psicologia social e da tradução cultural, Elias e Scotson remetem ao poder da relação entre estabelecidos e outsiders. O sociólogo comenta que essa di- ferenciação e um consequente comportamento inferiorizado surpreendem sob um primeiro olhar. Não há diferenças visíveis (cor, etnia, renda, etc.) em um bairro de trabalhadores cuja única diferença se encontra entre moradores antigos (incluindo gerações familiares) e recém-chegados, eliminando, assim, a tradicional forma de

2 Nome fictício dado pelos autores. (ELIAS; SCOTSON, 2000)

3 O referido texto é uma tradução do artigo originalmente publicado no The American Journal

dominação por instrumentos não humanos, como armas e meios de produção, em detrimento do poder exercido pela coesão social que unia estabelecidos e atomi- zava outsiders.

Diferente do exemplo de Elias e Scotson, o histórico das migrações para o Brasil remete à sobreposição da etnia e da racialização no processo de estrangeiridade/ estranhamento, como as políticas migratórias brasileiras comprovaram ao diferen- ciar estrangeiros brancos (europeus) e não brancos (não europeus). Marcado por um estigma racial proveniente da herança escravocrata, entendemos que o Brasil não é notoriamente um país xenófobo, porém, racista. Buscando mais exemplos, Jeffrey Lesser (2015) conta que a panaceia para o problema da força de trabalho agrícola, em meados de 1870, foi encontrada na imigração chinesa, devido à im- pressão de serem servis, experientes em agricultura, livres – diferente dos escravos – e desejosos de morrerem em sua terra natal, o que dificultaria sua permanência. Destacamos: o convite aos chineses não era civilizacional, mas substituto de mão de obra escassa pelo encerramento do tráfico negreiro. Formadores de opinião pú- blica da época, como o Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, contribuíram para a obstacularização da adaptação destes ao Brasil, atribuindo a presença dos chi- neses a uma crise de identidade nacional. Em 1885, o jornal escreveu tratar-se de “homens-animais” pelo “egoísmo, orgulho, uma insensibilidade bárbara alimenta- da pela prática do abandono ou trucidamento dos filhos [...]. A cultura chinesa [...] iria ‘degenerar’ a população brasileira [...]. (LESSER, 2015, p. 85)

Com esse exemplo histórico, Lesser narra adiante ter descoberto chineses que abriram restaurantes de cozinha japonesa para evitar preconceitos históricos sobre sua cultura que pudessem impactar no desempenho do empreendimento. O caso demonstra que mesmo com a adaptação à cultura receptora, que inclui a compreensão do capital cultural “asiático” – não chinês – como trunfo mercado- lógico, o chinês residente no Brasil continua estigmatizado e inferiorizado pelos estabelecidos, próximo ao que Elias e Scotson (2000, p. 25) chamam de “desonra grupal” como um dos aspectos mais significativos da barreira emocional enfrenta- da por estes Outros.

A corporificação étnico-racial que compõe a forma xenófoba brasileira atuou, sobretudo, frente aos negros e asiáticos, como os chineses, já exemplificados, e até mesmo nos japoneses, como demonstra Takeushi (2008). A modificação do status do japonês se deu posteriormente, assim como a consideração sobre os árabes. Ao contrário dos japoneses, o status dos árabes se modificou para pior. Antes vistos

como comerciantes, assim como os judeus, o preconceito sobre os árabes (“turcos”) recaía mais sobre sua ação concorrencial na vida econômica do que em relação a práticas socioculturais e estereótipos físicos.

JUDEU: ‘Homem branco muito sabido e ambicioso em negócios; ne- gociante explorador’.

JUDIA: ‘Mulher muito branca e sem charme’.

TURCO: ‘O mesmo que judeu, com respeito aos negócios’. (SILVA, ([19--]) apud LESSER, 2015, p. 165)

É a partir dos anos 2000, marcados pelos atentados do 11 de setembro, que a imigração árabe, especialmente no Ocidente, passa a ser respaldada pela lógica da securitização das migrações e do estigma religioso vinculado à ação terrorista. Mais recentemente, com o avanço das migrações para a Europa na atual década, teorias conspiratórias extrapolaram o alerta aos atos terroristas pontuais para o “perigo da islamização do Ocidente”, levando à derrocada da civilização judaico-cristã, supos- tamente. A atualidade do discurso tem sido concretizada por candidaturas vence- doras ligadas a um conservadorismo de matriz cultural, incluindo a nomeação do ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, no Governo Bolsonaro, iniciado em 2019. Recorrentemente, o ministro é crítico do chamado “globalismo”, o qual, segundo esta ideologia, tem como um dos pilares a dominação islâmica do mundo. Araújo se coloca em oposição a essa corrente por ela ter como “objetivo úl- timo romper a conexão entre Deus4 e o homem, tornado o homem escravo e Deus

irrelevante”. (ARAÚJO, ([2018]))

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