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nas mídias sociais digitais

As noções de discurso de ódio e de intolerância são inspiradas especialmente em Foucault (2005) e, portanto, carregam consigo o caráter biopolítico. Nesse sentido, o discurso de ódio de caráter biopolítico está alinhado muito mais à intolerância com determinados aspectos de uma população que não está dentro dos padrões

considerados aceitáveis do que “[...] simples e tradicionalmente, desprezo ou ódio das raças umas pelas outras.” (FOUCAULT, 2005, p. 308) O ódio de caráter bioló- gico diz respeito à eliminação do outro – ou mesmo a discursivização disso – para que se tenha uma raça mais pura, logo, quanto mais pessoas morrerem, mais forte será essa raça que se considera superior. A partir do racismo, Foucault (2005, p. 308) ratifica o seu ponto de vista, já que para ele o racismo asseguraria a função da morte das vidas que não devem ser vividas para que outras vidas tornem-se mais fortes, isto é: “[...] segundo o princípio de que a morte dos outros e o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma po

pulação [...]”.

Mesmo concordando que, em geral, a ambiência digital pode proporcionar um caráter emancipatório ou cidadão, existem muitos limites que cada vez mais são tra- zidos à tona. Não é incomum encontrar nas redes sociais digitais discursos que são intolerantes a características biológicas de pessoas que divergem politicamente, por exemplo. A atuação do ódio biopolítico torna-se notória na circulação de sentidos nas redes (por mais complexas que sejam para serem analisadas) ao reduzirem qual- quer debate às questões de gênero, etnia, cor da pele e práticas sexuais, além das ocasiões em que ocorre a própria eliminação do debate por meio do silenciamento e do discurso de eliminação do outro. Dito isso, a partir de proposições foucaultianas, entende-se que há um poder biopolítico de controle sobre a vida – tanto em âmbito cultural como tecnológico – manifestado pelo discurso de ódio e de intolerância que funciona como um prolongamento da política. (DALMOLIN, 2019)3

Na cena brasileira dos últimos anos, há um crescente conservadorismo in- fluenciado por setores de direita que viram nas redes sociais digitais um espaço de disputa de sentidos. As redes possuem mecanismos que permitem aos interagen- tes selecionar comentários, eliminando a possibilidade de diálogo em vários espa- ços, como a estruturação dos algoritmos, que impedem de ter uma visão ampla ao restringir os acessos a determinadas “bolhas” conforme preferências sinalizadas. Há ainda a disseminação de programas de computador para difundir conteúdos que possuem

3 Sobre isso, consultar também Schirmer e Dalmolin (2017, 2018), que trazem uma operaciona- lização do conceito de ódio biopolítico em análises envolvendo a circulação destes discursos nas redes sociais.

[...] informações distorcidas, distantes da realidade que levam os usuários a pensar e agir em um mundo idealizado, favorecendo os comportamentos emotivos, baseados em crenças e valores pré-esta- belecidos, e não na razão que parte de considerações fáticas do mun- do real. (CERVI, 2018, p. 197)

As atividades realizadas por robôs e perfis falsos são difundidas na comunica- ção política, como na eleição de Donald Trump e de Jair Bolsonaro. Em ambos os casos ocorreu viralização de fake news, grande parte disseminadas por grupos de WhatsApp em apoio aos candidatos.

O próprio processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, pode ser tomado como um exemplo da intervenção das redes sociais digitais no campo po- lítico, (CERVI, 2018) que pode ser considerado como o ápice de um contexto gra- dativo de avanço conservador e crise política iniciada ainda em 2013, no primeiro mandato da presidenta.4 A partir disso, conforme Cervi (2018, p. 200), as redes

sociais digitais desempenharam um papel importante porque “[...] condensaram os interesses de uma elite política contrariada, de uma elite econômica insatisfeita, dos meios de comunicação tradicionais enfrentando um novo concorrente e de uma classe média urbana temendo ser a maior prejudicada pela crise econômica.” De acordo com o autor, as redes poderiam servir de base para discussões demo- cráticas, mas tiveram o seu uso inclinado para uma diminuição da democracia, com discursos baseados em sentimentos ao invés de críticas políticas, além de uma visível aversão ao pobre ou aporofobia, termo cunhado por Cortina (2017).

Com isso, ratifica-se não só que nas redes há certa visibilidade do ódio ao po- bre como também há retrocessos na democracia estimulados pela disseminação de aspectos de caráter negativo. Sendo assim, entende-se que, com a falsa sensação de que tudo pode ser dito em nome da liberdade de expressão e que as redes sociais

4 Cancian e Malini (2017) sustentam que foi justamente a partir de 2013 que o conservadoris- mo teve destaque na política brasileira, sintetizado pelo crescimento constante da bancada evangélica no Congresso Nacional. Paralelo a isso, há a crise social e a forte recessão econô- mica daquele ano, que culminou com milhares de pessoas saindo às ruas em manifestações, inicialmente com um viés considerado popular e, posteriormente, relacionadas a uma elite econômica e classe média que temiam perder privilégios – que também saiu às ruas, embora em movimentos quantitativamente menores, demonstrando ódio ao PT e a tudo que consi- deram à esquerda. Ainda em 2014, após Dilma vencer Aécio Neves, parte de uma elite social não aceita a derrota nas urnas.

estimulam essa liberdade supostamente desregulada, é, então, na circulação de sen- tidos manifestados nessas plataformas que os discursos odiosos são colocados em vigência de forma mais intensa, como se observa no acontecimento a ser analisado.

A circulação em fluxo adiante

Parte-se do pressuposto de que o acontecimento “o voto de Bolsonaro” ocorre num contexto de midiatização da sociedade. Nessa processualidade da midiatização, há a circulação de discursos e novas formas de interação entre os atores sociais.5 Se

no passado era possível falar em uma relação linear entre produtores e receptores, as relações difusas entre os atores sociais, as mídias tradicionais e as mídias sociais digitais complexificam a ambiência midiática e a própria

sociedade. (VERÓN,

2008, 2013)

Fausto Neto (2016) sustenta que há transformações na sociedade, em que não há mais uma centralidade das mídias, pois distintas processualidades redesenham as relações outrora automáticas entre produtores e receptores, em que a circulação era apenas um ponto de passagem. Para o autor, as complexidades constitutivas da sociedade em midiatização remetem à existência de ações comunicativas perpassa- das por dinâmicas de acoplamentos e de interpenetrações. (FAUSTO NETO, 2016) Gomes (2017) também considera que a sociedade está em vias de midiatização e, para ele, o conceito é a chave hermenêutica para compreender e interpretar a sociedade, pois considera que o fenômeno organiza-se em torno do “[...] consumo relacionado com as produções de sentido social”. (GOMES, 2017, p. 94) O autor concebe que se vive numa ambiência na qual emerge um novo modo de ser no mundo, decorrente do crescente desenvolvimento tecnológico e da mutação de so- ciabilidades num processo contínuo de mudança.

Desse modo, compreende-se que a circulação funciona por meio de apropria- ções de sentidos e que o receptor não é um mero espectador, mas parte fundamen- tal da construção dos acontecimentos, um participante dessas processualidades. Logo, há um constante embate ou negociação de sentidos, pois os atores sociais

5 Considera-se que todos participantes da ambiência midiática se constituem em atores sociais, participantes desses processos interacionais e não receptores, como previam as abordagens teóricas funcionalistas e transmissionais.

fazem com que a circulação funcione em um fluxo contínuo e sem linearidades ou predeterminações. (VERÓN, 2013) Percebe-se que na ambiência digital esses fluxos são potencializados, assim como os discursos de ódio e intolerância em um contexto político já polarizado.

Compreende-se que um macroacontecimento faz referência aos acontecimen- tos de longo prazo, que implicam em um constante fluxo de resgate e de atualização discursiva e que ultrapassa os limites de uma temporalidade específica e limitada. (DALMOLIN, 2014) Logo, pode-se afirmar que, pensado em relação à circulação, “o voto de Bolsonaro” é um acontecimento que ressalta outro, o macroaconteci- mento da ditadura civil-militar brasileira, pois atualiza velhos e novos sentidos so- bre a memória daquele período histórico.

Por outro lado, o voto desdobra-se em outros acontecimentos, que podem ser caracterizados como microacontecimentos jornalísticos (CHARAUDEAU, 2006) ou como ciberacontecimento. (HENN, 2013) O primeiro diz respeito a aconteci- mentos jornalísticos esperados ou programados, que se inscrevem em uma ordem “normal” de operacionalização das práticas midiáticas, fazendo parte das rotinas de cobertura dos veículos comunicacionais ao reverberar esses acontecimentos pelo viés dos protocolos e da gramática das chamadas mídias tradicionais. Já o ci- beracontecimento emerge de uma ambiência de convergência digital e que muitas vezes, por sua intensa repercussão, ganha atenção por parte das mídias tradicio- nais, reconfigurando-se em novos acontecimentos jornalísticos.

A circulação aciona essa teia de acontecimentos, interrelacionando mídias tra- dicionais em meio on-line, como portais de notícias e redes sociais digitais, confor- me o caso observado. Esse fluxo contínuo da circulação funciona pela apropriação de resultados de episódios anteriores que, por sua vez, terão sentidos acionados para que então ocorra uma nova interação em novos episódios – e sempre adian- te. De acordo com Braga (2017), o produto midiático não é exatamente o ponto de saída desse fluxo, pelo contrário, está mais para um ponto de chegada, que em decorrência de um conjunto de ações, interesses e processos formam uma espécie de objeto em circulação. Ainda, o autor pontua que esse objeto em movimento alimenta constantemente o fluxo comunicacional, isto é, torna-se um material que passa de um episódio interacional para outro, caracterizando elementos de saída e de entrada.

Desse modo, o que se entende por produto midiático pode consolidar-se e, no contexto da midiatização, multiplicar-se para outros espaços, dando continuidade

até mesmo infinita no processo de circulação e indo além, inclusive, do seu con- teúdo – tornando-se indício de outros elementos dentro de um circuito em que está inserido. “O produt

o, por sua permanência e também porque se molda ao

mesmo tempo em que busca moldar os ambientes em que se põe a circular,

torna-se um especial objeto de observação para inferências sobre os proces-

sos mais gerais em que se inscreve.” (BRAGA, 2017, p. 53-54)

Compreende-se que “o voto de Bolsonaro” é um acontecimento que traz à tona, pela circulação, referências a fatos ocorridos no passado e que produzem sentidos que afetam a sociedade; esse acontecimento ocorre em um cenário político po- larizado, em que os discursos de intolerância são potencializados e a circulação desses discursos é intensificada na ambiência digital. Dito isso, propõe-se, a partir do exemplo do voto, detalhar um caminho teórico-metodológico para a análise da circulação na ambiência digital de acontecimentos contemporâneos que envolvam discursos de intolerância. Para a operacionalização, parte-se do viés analítico da individualização do acontecimento proposto por França e Lopes (2016).

A proposta teórico-metodológica

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