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por reconhecimento: como justificar as demandas na sociedade eticamente pluralista?

A crise da democracia liberal é especialmente uma crise dos princípios liberais, como os direitos humanos, a liberdade de expressão e a aceitação das diferenças. Para além de um revés na democracia, alguns autores entendem que estamos vi- venciando uma crise do liberalismo. (POLYAKOVA; TAUSSIG; REINERT, 2019, p. 2) Temos assistido a uma crescente defesa de valores explicitamente iliberais em discursos de representantes políticos e em conversas cotidianas. (CURATO; HAMMOND; MIN, 2019, p. 154-156; INNES, 2015) Essa onda de iliberalismo pode ser explicada por diversos fatores, como: a globalização da economia e a consequente instabilidade nos padrões de trabalho, de consumo e de satisfação concernentes às necessidades materiais básicas nas últimas décadas; a crise migra- tória, a pluralização de grupos sociais e decorrentes conflitos culturais nacionais e multiculturais; e as rápidas transformações tecnológicas que produziram uma sen- sação de ameaça à estabilidade vivida por uma parte da população. (INNES, 2015; NORRIS; INGLEHART, 2019; LEVITSKY; ZIBLATT, 2018; RUNCIMAN, 2018)

Ao examinar o contexto que levou grupos conservadores e autoritários à ascen- são em diferentes sociedades europeias e nos Estados Unidos, Norris e Inglehart (2019) evidenciam que as mudanças no perfil educacional e as dinâmicas urbanas aprofundaram os contrastes geracionais. Por um lado, uma geração jovem cada vez mais diversa e entusiasta de mudanças culturais relativas à gênero, raça, direitos de pessoas com deficiência e meio ambiente; e, por outro, um grupo minoritário, porém numeroso, de pessoas mais velhas que veem suas crenças e estilos de vida ameaçados por essas mudanças. A diferença no nível de engajamento político des- ses grupos, combinada com um ressentimento e desejo de retorno a um passado seguro da geração mais antiga, explicaria a ascensão de grupos conservadores. No Brasil, entretanto, as inclinações para políticas autoritárias provêm também das ge- rações mais novas, sem recortes de renda e classe, uma vez que o discurso homo-

gêneo desses líderes atinge jovens de grupos distintos. (AVRITZER; STARLING; ZANANDREZ; BRAGA, 2019; PINHEIRO-MACHADO; SCALCO, 2018) Os pro- cessos de reação contra os avanços que o Brasil experimentou nas últimas décadas têm como alvo, em grande parte, as políticas de redistribuição de renda e a progres- siva inclusão de minorias e grupos em desvantagem. (BIROLI, 2018; PENNA, 2018) É difícil generalizar os fatores que levam as lutas emancipatórias e as metas substantivas a transformarem o comportamento individual ou a sociedade em geral. Ao mesmo tempo em que os conflitos sociais sofrem alterações, são também criadas novas contradições e novas formas de dominação. Segundo Honneth, é fundamental diferenciar entre “formas progressistas” e “reacionárias” de luta social nos dias atuais. (HONNETH, 2003a, p. 182-183) A partir da teoria honnethiana (2003b), uma luta por reconhecimento pode ser caracterizada como emancipatória e com efeitos democráticos quando ela contribui para o aumento da autonomia in- dividual e política ou para condições institucionais que expandem a inclusão social. Honneth interpreta o princípio de igualdade universal entre todos os indiví- duos como uma progressão histórico-normativa, isto é, como articulação de uma ordem jurídico-social, advinda da modernidade, que concede a extensão de direi- tos a um número cada vez maior de indivíduos e que permite institucionalizar as condições que garantem autonomia individual e a autorrealização. Neste sentido, a expansão das formas de individualização (autodeterminação e autorrealização) e a inclusão social estão intrinsecamente interligadas. Ambas as condições são im- portantes, isto é, “quanto mais a integração social é institucionalizada [...] mais ela inclui todos os indivíduos em relações de reconhecimento e os ajuda a articular suas personalidades”. (HONNETH, 2003b, p. 262, tradução nossa)3 Contudo, este

processo pode ser revertido, mesmo quando normas já se encontram instituciona- lizadas. Nas palavras de Honneth: “seria ingênuo afirmar que as normas de reco- nhecimento estabelecidas não possam jamais ser revistas. [...] [Em determinadas circunstâncias], mesmo a forma mais elementar de reconhecimento interpessoal pode ser revertida”. (HONNETH, 2011, p. 399, tradução nossa)4

3 “For the more such social integration does justice to the normative expectations […] the more it includes all individuals into the relations of recognition and helps them articulate their per- sonalities.” (HONNETH, 2003b, p. 262)

4 “It would be naïve to claim that established norms of recognition cannot ever be revised. […] even the most elementar form of interpersonal recognition can be undermined.” (HONNETH, 2011, p. 399)

Honneth propõe que as mudanças sociais ligadas às lutas por reconhecimento são geradas por um sentimento de injustiça, que capacita os sujeitos marginali- zados a articular um quadro intersubjetivo de interpretação do desrespeito. O fe- minismo fez avançar uma série de pautas ao criticar normas de gênero imbuídas em muitas tradições sociais, afirmando a igualdade das mulheres nos domínios doméstico, do trabalho e do direito. Movimentos negros trazem, cotidianamente, as discussões acerca da supremacia racial branca, advinda do racismo estrutural enraizado no sistema. Grupos LGBTQI+ buscam a legitimidade de suas identida- des, apontando para diversos tipos de violência sofrida por pessoas que se colocam no mundo de maneira distinta da norma heterossexual. A organização de pessoas indígenas traz agendas como a demarcação de terras, reconhecimento de sua cultu- ra e educação inclusiva. Pessoas com deficiência articulam-se em prol da inclusão e acessibilidade.

Demandas por reconhecimento sempre provocam conflitos e resistências na so- ciedade, porque elas desafiam a hierarquia de valores e as práticas sociais, afetam a legitimidade de distribuição de prestígio e poder entre os grupos sociais e, ainda, ape- lam frequentemente para novas formas de alocação de recursos e formatação de polí- ticas públicas. (DERANTY, 2009; MAIA, 2018a, 2017; ZURN, 2010) Nas palavras de Honneth, “as estruturas normativas institucionalizadas [...] não se desenvolveram por acaso. Elas emergiram de experiências práticas.” (HONNETH, 2012, p. 115, tradução nossa)5 Para nossos propósitos, interessa explorar a natureza da crítica conservadora

no contexto da crise dos princípios liberais. Entendemos aqui como conservadores aqueles que adotam uma abordagem moralista na política, incluindo, tipicamente, o apreço pelas tradições de uma dada sociedade ou de certas comunidades para assegu- rar a coesão social ou a estabilidade política. (DRYZEK; DUNLEAVY, 2009) O con- servadorismo no Brasil reúne diferentes grupos e se propaga entre os mais variados estratos de classe, idade e raça, (AVRITZER; STARLING; ZANANDREZ; BRAGA, 2019; PINHEIRO-MACHADO; SCALCO, 2018;) englobando elementos distintos, sobretudo do fundamentalismo religioso, da reconfiguração do antigo anticomu- nismo e do iliberalismo. (MIGUEL, 2018) No Brasil, assim como em outros países, a insatisfação generalizada da população se transformou numa potência eleitoral. (NORRIS; INGLEHART, 2019; SOLANO, 2019)

5 “The institutionalized normative structures [...] have not developed by accident; they have emerged from practical experiences [...].” (HONNETH, 2012, p. 115)

Em particular, destacamos que as reivindicações de grupos conservadores ou grupos extremistas e autoritários também se fundam na ideia de dano e violação às condições de bem viver. Em discussões sobre pautas morais, grupos conserva- dores contestam, por exemplo, a destruição da família natural em contraposição ao direito da família e aos direitos dos indivíduos; a “ideologia de gênero” e “a guer- ra entre os sexos” contra as demandas por igualdade de gênero; a “erotização das crianças” contra o ensino da educação sexual nas escolas; e a libertinagem progres- sista contra a criação cultural artística. Neste cenário, como é possível distinguir as demandas por reconhecimento válidas daquelas que não são válidas? Honneth aponta claramente que certas reivindicações não podem ser aceitas: “é óbvio que não podemos endossar cada revolta política como tal – que não podemos consi- derar cada demanda por reconhecimento como moralmente legítima ou aceitá- vel”. (HONNETH, 2003a, p. 171; ver também, HONNETH, 2007, p. 77–78) Para verificar se as “demandas” relacionadas aos sentimentos de danos conferem um acurado senso de injustiça, (HONNETH, 1996, p. 168) Honneth propõe os seguin- tes critérios dentro da teoria do reconhecimento: “somente aquelas demandas que potencialmente contribuem para a expansão das relações sociais de reconhecimen- to podem ser consideradas normativamente fundadas, uma vez que elas apontam na direção de um aumento no nível moral da inclusão social”. (2003a, p. 187) Esta colocação tem duas consequências importantes.

Em primeiro lugar, o reconhecimento recíproco requer uma atitude moral de considerar o outro; os sujeitos devem ser definidos como seres autônomos, que buscam realizar os seus próprios anseios. Mais do que uma imposição dos pró- prios valores ou da busca autocrática pela autorrealização, Honneth, ao descrever a segunda esfera de reconhecimento, tem em mente, como diversos teóricos demo- cratas, o princípio normativo igualitário-universalista que fundamenta os direitos modernos, isto é, o respeito mútuo e a igualdade de tratamento para cada ser hu- mano que merece ser reconhecido em sua liberdade fundamental. (HONNETH, 2003a, 2017) Honneth acrescenta outros dois modos interdependentes de reconhe- cimento com base nos princípios do amor e da estima social, que são vistos como tendo funções específicas de preservar a integridade dos seres humanos.6

6 Nas palavras de Honneth (2003, p. 189), “Na sociedade moderna, as condições para a auto- -realização individual só estão socialmente asseguradas quando os sujeitos podem experien-

Para justificar as liberdades civis individuais e a igualdade de oportunidades para a participação política em uma ordem democrática, Honneth compartilha uma premissa básica do pensamento liberal e republicano, segundo a qual a es- fera jurídica do reconhecimento permite que as pessoas sejam percebidas como tendo “igualdade de status”, e não uma “identidade diferente”, como assumido por alguns comentaristas. (DÜTTMANN, 2000; FRASER, 2003) A igualdade de sta-

tus como cidadão permite que as pessoas possam ver a si próprias como sujeitos

moralmente responsáveis e autônomos, iguais a todos os outros no contexto das relações jurídicas.

Assim sendo, as demandas por reconhecimento de grupos racistas, homofó- bicos ou xenófobos são assimétricas e moralmente inadequadas, porque implicam em intolerância para com aqueles que não comungam do mesmo sistema de va- lores e modos de vida. Desta maneira, não faz sentido se pautar pela tolerância para a defesa das reivindicações de tais grupos. Forst (2009) afirma que a pretensão da tolerância pelos racistas pode levar ao equívoco de considerar que seus pre- conceitos sejam juízos éticos legítimos, ou, ao menos, razoavelmente possíveis. Para Habermas (2003), só é possível falarmos em tolerância quando parte-se da premissa da rejeição das crenças e convicções do outro. Os discursos dogmáticos de grupos extremistas e intolerantes, neste sentido, mais do contestar demandas baseadas em crenças ou em valores distintos, buscam inferiorizar, criminalizar e desumanizar grupos oponentes.

Em segundo lugar, Honneth propõe que as demandas legítimas de reconhe- cimento devem contemplar os critérios de reciprocidade e de generalidade. Em outras palavras, as demandas por reconhecimento, legítimas em qualquer esfera, devem resultar na inclusão de mais pessoas no “círculo de membros integrais da sociedade”. (HONNETH, 2003a, p. 185) Cabe destacar aqui a distinção que Van Prooijen e Krouwel (2016) fazem entre o conceito de intolerância dogmática – ten- dência de rejeitar e considerar como inferior qualquer crença ideológica diferente da sua – e o de intolerância política, que se refere ao desejo de proibir formalmente grupos ativistas antagônicos. Ao invés de adotar a máxima liberal “viva e deixe viver”, grupos extremistas autoritários tipicamente buscam restringir, ou mesmo impedir, a participação de outros grupos na vida pública e, quando possível, das

ciar o reconhecimento intersubjetivo não apenas de sua autonomia pessoal, mas também de suas necessidades específicas e capacidades particulares.”

instâncias políticas formais. Os vínculos de pertencimento e identificação se nu- trem do desejo de eliminar os “outsiders”. Neste caso, as noções de “nós” e “eles”, próprias do associativismo em qualquer sociedade pluralista, galvanizam discursos de ódio, ações de perseguição e violência.

Obstáculos do reconhecimento na arena política:

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