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Um refugiado árabe nas telas

Estados Unidos, Hungria, Áustria, Itália, Filipinas, Polônia, Brasil e Reino Unido são alguns dos países que têm puxado a fila dos líderes polêmicos e popula- res. A equação entre essas duas características é a resposta que a ciência política busca nesses anos e que inclui o direito de mobilidade e sobrevivência no cen- tro do debate. Se no Brasil a pauta migratória ainda é secundária frente à agenda

econômica e de segurança pública, nos países do Norte Global (MENESES, 2019) o intenso fluxo de imigrantes e refugiados já se incorporou a essas pautas, atribuindo ao tema das migrações um componente civilizatório que acaba por encontrar no mundo árabe seu principal ponto crítico, como destacado anteriormente.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) tem divulgado números expressivos sobre o refúgio. Ao final de 2018, cerca de 70,8 milhões de pessoas se encontravam fora de seus lugares de origem devido a vio- lações de direitos humanos, seja pela guerra ou perseguição de qualquer tipo. Só no referido ano, 13,6 milhões de pessoas fizeram esse deslocamento forçado. Se há mais de 70 milhões refugiados, apenas 25,9 milhões são considerados refugiados legalmente, o que implica na dificuldade de concretização de auxílio a essas vítimas do mundo moderno.

Enquanto a Venezuela colocou o Brasil como o sexto país a receber mais pedi- dos de refúgio em 2018, a Síria continua liderando a emissão de refugiados. Com confrontos internos que se arrastam há quase uma década, o país da Ásia Ocidental soma 6,7 milhões de deslocados, sendo que a maioria se encontra na Turquia, país vizinho. Estima-se cerca de 1 milhão de sírios na Europa, (CONNOR, 2018) número que cresce com o desembarque de afegãos, segunda maior nacionalidade de refugiados, e de outras nações que buscam um lugar de proteção no continente europeu, especialmente em países como Alemanha, França e Itália.

No Brasil, as solicitações de refúgio cresceram a partir de 2010 com a chegada dos haitianos, posteriormente com os sírios e, mais recentemente, com a ampla chegada dos venezuelanos, caso da típica escala de deslocamentos de vizinhança (como dos sírios na Turquia). Embora os venezuelanos sejam os principais solici- tantes de refúgio atualmente, com os 61.681 pedidos entre as 80 mil solicitações de 2018, segundo a ACNUR, os sírios foram os que mais conseguiram oficializar tal situação. Dos apenas 11 mil refúgios oficializados no país, 36% são sírios, segui- dos de congoleses (15%) e angolanos (9%), (CONARE, 2019) dados que excluem a presença dos haitianos, que conseguiram o status de permanência baseado no visto humanitário proveniente da cooperação Brasil-Haiti estabelecida logo no início do século XXI.

É nesse universo demográfico e geopolítico que retomamos os conflitos mais internalizados da sociedade. Mais propriamente, a notoriedade de um entre os quase 3,5 mil sírios que aqui residem com status de refúgio auxilia-nos a pensar, a partir de um exemplo inédito, a construção de novos atores na esteira social

brasileira transformada por um processo de midiatização (COULDRY; HEPP, 2017; SODRÉ, 2013) que interfere na própria definição das migrações contemporâneas. Sobre esta sociedade, Couldry e Hepp (2017) afirmam que a midiatização atua no social desde os processos de mecanização iniciados no século XVI. Passando pela “onda” da eletrificação, como os autores chamam esses percursos midiáticos, vive- mos atualmente em uma onda de digitalização que vai sendo transferida para a da datificação, na qual a economia baseada em dados e atenção passa a ser a matéria- -prima do capital informacional, cujo lugar da internet adquire valor proeminente nesse ecossistema midiático de aprofundamento inter-relacional entre a tecnologia e o homem. Ou seja, embora processos de midiatização sejam característicos da so- ciedade moderna, o atual momento se distingue pela profunda e crescente inserção da mídia no cotidiano em um cenário de convergência.

E é neste ecossistema midiático iniciado na televisão e ramificado na inter- net e suas redes sociais que se encontra o caso de Kaysar Dadour, um dos muitos sírios que decidiram vir ao Brasil após temer pela vida no país natal. No seu caso, a guerra o atingiu mesmo não sendo um agente político. Foi a expressão de sua crença religiosa no cristianismo que o fez se sentir fisicamente tolhido ao ser espancado por portar um crucifixo no pescoço. E essa é a mesma expressão que indivíduos de origem árabe, mesmo cristãos, relatam sofrer em países oci- dentais ao emigrarem. A etnicidade se mistura à religiosidade e, muitas vezes, o estrangeiro converte-se no eterno estranho, o outsider inferiorizado pelo estig- ma cultural-religioso que, mesmo não sendo sua profissão de fé, carrega como marca identitária.

Seu contexto aproxima-se dos outros refugiados sírios que migram para o Brasil. Proveniente de famílias abastadas, experiência multicultural comprovada pela fluência em diversos idiomas, de cor branca, faltava a ele apenas um curso su- perior para se tornar um tipo ideal no mercado de trabalho. Não fez. Porém, nesse percurso conseguiu a vaga no Big Brother Brasil 18 com um interesse específico: ganhar o prêmio de 1,5 milhão de reais para trazer sua família sem necessitar da caridade de terceiros. O prêmio não veio, mas o desejo afetivo, sim, embora a ajuda de terceiros provavelmente tenha entrado em cena. Em setembro de 2018, quatro anos depois de seu desembarque no Brasil, Kaysar Dadour recebeu sua família no aeroporto em uma chegada reportada pelo Fantástico (TV Globo) e com direito a mais de 600 mil curtidas em sua página pessoal do Instagram.

A solidariedade coletiva não pode ser manifestada apenas na singularidade do reencontro de uma família, mas compõe uma narrativa construída desde seu ngresso no reality show, oito meses antes do acontecimento. Pela primeira vez um refugiado tornou-se figura pública no país. No mesmo programa passaram outros estrangeiros, no entanto, a característica do refugiado distingue-o do imigrante convencional. A caracterização como uma vítima de perseguições evidencia uma hibridização entre o estranhamento proporcionado pelo encontro das diferenças, constitutivo da sociedade, e um humanitarismo, evidenciado pela solidariedade às vítimas das tragédias contemporâneas. Assim, a hipótese aqui defendida parte do pressuposto de que a narrativa de sofrimento transmitida pela vida de Kaysar Dadour, ao circular como informação, gera empatia, mas ainda distanciada da realidade local, como destaca Fassin (2011). É apenas quando seu testemunho se aproxima qualitativamente do grupo aproximado, pelos desafios de trabalho; estudos; obstáculos; vitórias cotidianas, como o encontro com famosos; a vida em família; passeios na praia; e participação em organizações e movimentos hu- manitaristas, que o sentimento de empatia se aprimora para uma fidelização do público, não mais se portando como audiência, mas como fã.

Antes de discutirmos a fama do refugiado nessa sociedade midiatizada, recor- re-se à literatura para a compreensão do papel da vítima e do testemunho na vali- dação do humanitário como forma de governo.

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