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A midiatização da intolerância

Não pretendo atribuir a atual polarização social aos processos da midiatização. Questões diretamente políticas e econômicas têm aí um peso preponderante. Mas tal polarização se desenvolve no ambiente da midiatização em curso – e toma, as- sim, o perfil demarcado por esta circunstância. A midiatização, como processo interacional de referência, (BRAGA, 2007) incide de diversos modos sobre a estru- tura polarizadora. Essa incidência não corresponde a uma pretendida “influência da mídia” (ver BRAGA, 2015) – as mídias afetam o social não por “influência”, mas por uma lógica de affordances.5

Abordaremos aqui apenas três desses modos de incidência – o suficiente para evidenciar sua relevância. Um dos modos é resultante de uma oferta tecnológi- ca que viabiliza o superdimensionamento de tendências sociais que antes eram de curto alcance. O segundo corresponde a uma experimentação midiática generali- zada pela sociedade, que desmonta dispositivos sociais antes de gerar substitutos sedimentados. O terceiro decorre do acionamento de affordances midiáticas dire- tamente motivado pela intolerância em busca de poder.

5 O conceito, de J. J. Gibson, relaciona características do ambiente a perspectivas das espécies que o acionam. Correa Gomes Júnior e demais autores (2018, p. 59) observam que “os agen- tes de um ambiente percebem o que um nicho oferece, interpretam as affordances e agem sobre elas”.

primeiro modo

No século XX, o rádio e a TV nos direcionaram para discursos centralizados. Na virada para o XXI – como parte das estratégias para enfrentar o problema dessa voz centralizada, propondo acesso a vozes diversificadas –, as tecnologias acaba- ram tornando disponível uma “voz centralizada” para cada grupo organizado, com condições interacionais de se tornar o centro de seu próprio mundo. As funciona- lidades tecnológicas favorecem o encontro de participantes em torno de um foco de opiniões e atitudes. Esse foco singular funciona como agregador – definindo o perfil de seus participantes por essa dimensão singularizada.

Quando redes digitais agregam perfis e ideias com base em similaridades de posições e de atitudes, não dependendo de proximidade física, os circuitos organi- zados por zonas de acordo prévio podem manifestar um processo de exclusão dos discordantes. Em corolário, o risco de exclusão alimenta uma tendência ao alinha- mento interno, reduzindo ainda mais as variações. O risco de exclusão por desvio leva o participante a abdicar mesmo de suas pequenas diferenças – gerando uma coesão mais automática.

Nesse espaço, o aparente consenso entre participantes é duplamente artificial. Foi pré-estabelecido no processo de agregar os participantes, e não se elabora por processos de comunicação e ajuste entre estes, e sim pela constante poda de dissi- dentes, caracterizando um âmbito de pensamento único. Tais microambientes são criadouros de tendência polarizadora.

segundo modo

Temos aqui uma incidência mais abrangente e difusa. A oferta de tecnologias in- teracionais e as experimentações sociais que se desenvolvem em todos os níveis e todas as áreas de ação ampliam os espaços de indefinição e reduzem a eficácia de padrões interacionais antes habituais. Os estudos da midiatização mostram uma porosidade crescente nas fronteiras de campos especializados. Patrice Flichy (2016, p. 15) demonstra que “o saber dos amadores, em diversos campos, situa novas re- lações com os especialistas, inclusive criando novas expertises”. Há uma perda de consistência em campos de ação especializada – participantes internos acionam novas experimentações, em relação direta com outros campos e com o sistema ge- ral de entorno, na competição por ampliação de capitais sociais. As experiências

diversificadas de acionamento e de invenção a partir das affordances de novas tec- nologias diluem as linhas de ação mais definidas.

Em consequência, a sociedade se vê a braços com uma insuficiência de refe- rências compartilhadas para organizar processos em comum. A comunicação se torna cacofônica, estimulando ansiedade social. A sensação de insegurança social cultural se amplia. Os que não conseguem articular aí suas expectativas e valores tentam mitigar a ansiedade pela adoção de “verdades” simplificadoras, por uma busca de culpados da situação e pelo alinhamento com lideranças que parecem confortar esse ressentimento.

Aqui, a metáfora de polos eletromagnéticos parece mais eficaz que a metáfora geográfica. Elementos dispersos no ambiente passam a se deslocar de uma distri- buição mais ou menos aleatória, atravessada por dinâmicas diversas, e são atraídos por um ou por outro polo, conforme proximidades de qualquer ordem – que pas- sam a prevalecer sobre estímulos e causalidades outras.

terceiro modo

O âmbito de relações entre midiatização e polarização envolve também a diluição de padrões estabelecidos a partir de possibilidades permitidas pelas tecnologias midiáticas. Se a incidência anterior envolve sobretudo reações decorrentes de inse- gurança emocional, esse terceiro ponto é o espaço de iniciativas mal-intencionadas. O próprio momento histórico da midiatização – oferecendo complexidades ainda não integradas no ambiente da cultura – implica vastos espaços de ano- mia, com dispersão de verdades, normas e valores antes compartilhados; e com porosidade de fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada. Nessa situa- ção, tanto são feitas experimentações voltadas para resolver urgências sociais e aperfeiçoar processos como se desenvolvem tentativas para tirar proveito das indefinições conjunturais. Por isso mesmo, o quadro atual é estimulador de fake

news e de verdades ad-hoc como instrumento de ação e de ocupação de espaços

de poder. Dado que o outro é o adversário a abater, todos os meios parecem adequados.

Fake news não correspondem à simples midiatização de boatos, de imprecisões

factuais e de mentiras. São processos orquestrados em função de estruturas polarizadoras. O objetivo é duplo: atribuir ao adversário uma imagem abaixo da dignidade humana e, no mesmo passo, com base nessa distinção radical, fazer pre-

tendidos aliados esquecerem as diferenças (assumidas como menores) que pode- riam entreter com o polo disseminador de fake news.

Nos espaços de indefinição de padrões e de construção experimental de rela- ções entre a esfera pública e a esfera privada, constatamos a eficácia perversa de per- sonagens que se inscrevem em âmbitos de poder exercendo tais táticas, que só fun- cionam pela enxertia de estruturas polarizadoras em âmbitos de anomia e dispersão.

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A questão da midiatização deve complementar a perspectiva comunicacional (ao lado das perspectivas políticas, éticas e psicológicas) para o enfrentamento das situações polarizadoras. Os processos interacionais, na contemporaneidade, im- plicam uma passagem obrigatória pela referência midiática – por isso mesmo, é preciso buscar modos de trabalhar as diferenças através de interações midiatizadas, promovendo o encontro da diversidade por compartilhamentos múltiplos; inven- tando acionamentos sociais da tecnologia, a serviço da flexibilidade interacional; e cerceando as ações de intolerância nas mídias.

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