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Direito ao esquecimento

O direito ao esquecimento representa, em linhas gerais, o direito de uma pessoa não permitir que um fato desabonador, ainda que verídico, ocorrido em determi- nado momento de sua vida, seja exposto ou relembrado diante do público em ge- ral. Representa, pois, o direito de ser deixado em paz, no sentido de que a pessoa não pode ser lembrada contra sua vontade sobre fatos que, ainda que verídicos, lhe causem transtornos ou sofrimento. Em outras palavras, direito ao esquecimento é “[...] o direito de uma determinada pessoa não ser obrigada a recordar, ou ter re- cordado certos acontecimentos de sua vida”. (CORREIA JÚNIOR; GALVÃO, 2015. p. 22) Para Miragem (2015, p. 707), o direito ao esquecimento consiste no direito que a pessoa tem de “restringir o conhecimento público de informações passadas, cuja divulgação presente pode dar causa a prejuízos ou constrangimentos”.

No Brasil, o direito ao esquecimento não conta com regramento normativo específico, possuindo assento constitucional como consectário hermenêutico do

direito à privacidade, intimidade, honra e imagem assegurados pela Constituição Federal de 1988, sendo assegurado o direito à indenização por eventuais danos cau- sados (art. 5º, X),4 bem como pelos comandos do Código Civil de 2002 (arts. 11 e

21),5 podendo, de igual modo, ser respaldado no princípio constitucional da dig-

nidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88). Por conseguinte, os indivíduos têm assegurados constitucionalmente os direitos relativos à privacidade, à honra e à intimidade, sendo, pois, vedada qualquer conduta ofensiva a tais direitos. Sarlet (2015, p. 2) afirma que o direito ao esquecimento é reconhecidamente constitucio- nal, podendo ser considerado, portanto, como um direito fundamental implícito:

Como direito humano e direito fundamental, o assim chamado direi- to ao esquecimento encontra sua fundamentação na proteção da vida privada, honra, imagem e ao nome, portanto, na própria dignidade da pessoa humana e na cláusula geral de proteção e promoção da personalidade em suas múltiplas dimensões.

O direito ao esquecimento conta com certo respaldo no âmbito da norma pe- nal. Para exemplificar, tem-se que os condenados que já cumpriram suas penas têm direito ao sigilo da folha de antecedentes e à exclusão dos registros da conde- nação no instituto de identificação e, uma vez extinta a punibilidade, a certidão criminal solicitada será negativa, inclusive sem qualquer referência ao crime ou ao cumprimento da pena aplicada. O vetor máximo do processo interpretativo do ordenamento jurídico é a dignidade da pessoa humana, sendo valor fundamental da estrutura constitucional. Desta forma, essa premissa deve nortear as decisões que incidem sobre direitos fundamentais, servindo tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo.

O direito à reabilitação, que seria “o direito de se esquecer o passado criminal de uma pessoa que já cumpriu sua pena perante a Justiça ou que foi absolvida do

4 Art. 5º, CF/88 – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- -se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X – são invio- láveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

5 Art. 11, CC – Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são in- transmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. Art. 21, CC – A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

crime o qual foi imputada” (ACIOLI; EHRHARDT JUNIOR, 2017, p. 394), é o que melhor se adapta à nossa investigação, que analisa as práticas jornalísticas em cotejo com o direito ao esquecimento, notadamente diante de reportagens que rememoram fatos pretéritos com potencial desabonador das pessoas envol- vidas. O direito ao esquecimento passou a ser tema de inegável importância e atualidade em razão da internet. Isso porque a rede praticamente eterniza as no- tícias e informações. É quase impossível ser esquecido diante de uma ferramenta de lembrança de tal magnitude. Quando se aborda o direito ao esquecimento, merece destaque o jurista e filósofo francês François Ost (2005, p. 160), ao di- zer que todos nós, sejamos públicos ou não, quando “lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade [...], temos o direito, depois de de- terminado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído.”

Nesse sentido, há um aparato jurídico, composto de artigos constitucionais que fundamentam o argumento de que uma pessoa, após cumprir a pena, não pode mais ser chamada de assassina ou assassino, visto que já cumpriu a punição recebida pelo crime cometido. Ao jornalismo, diante da obrigação de veicular a verdade dos fatos e informar a sociedade sobre as situações de processos jurídicos, ao mesmo tem- po em que deve preservar a dignidade humana, cabe seguir as normas previstas na Constituição. Não há, nesse momento, como partir de pressupostos ou inferências com base nos antecedentes daquele a quem a pena foi imputada, como justificativa para o uso do termo “assassino” ou “assassina”, após o cumprimento da pena. Não há como prever ações futuras com base em atos pretéritos.

A partir de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferida em 2014 no caso Google Spain, o direito ao esquecimento passou a ser muito deba- tido no mundo. No Brasil a temática já repercute significativamente desde 2013, a partir de dois julgados no Superior Tribunal de Justiça, ambos da relatoria do mi- nistro Luis Felipe Salomão, e envolvendo matérias veiculadas no programa policial

Linha Direta, da Rede Globo: o caso da chacina da Candelária, Resp. nº 1.334.097/

RJ; e o caso Aída Curi, Resp. nº 1.335.153/RJ. É importante ressaltar que o debate, em seu contexto jurídico e comunicacional encontra-se em momento decisivo no Brasil, pois a matéria encontra-se em fase de julgamento, pela primeira vez, no Supremo Tribunal Federal (STF), que está analisando o Recurso Extraordinário nº

1.010.606/RJ, que diz respeito ao caso Aída Curi,6 sendo que a tese firmada repre-

sentará marco histórico sobre a temática, devendo ser respeitada em todo o país. No contexto desse julgamento, no dia 12 de junho de 2017, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública, sob a presidência do ministro Dias Toffoli, tendo como objeto as seguintes questões:

I – a possibilidade de a vítima ou seus familiares invocarem a aplicação do di- reito ao esquecimento na esfera civil; e

II – a definição do conteúdo jurídico desse direito, considerando-se a harmo- nização dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e do direito à in- formação com aqueles que protegem a dignidade da pessoa humana e a inviolabi- lidade da honra e da intimidade.

Na ocasião, conforme aponta Schreiber (2017), que representou o Instituto Brasileiro de Direito Civil, três correntes restaram delineadas:

1ª) posição pró-informação; 2ª) posição pró-esquecimento; e 3ª) posição intermediária.

A primeira corrente, pró-informação, defende a inexistência de um exímio direito ao esquecimento, sob o argumento de que ele não encontra norma específica na legis- lação brasileira. Os que aderem à corrente pró-esquecimento defendem que o direito ao esquecimento não apenas existe, como deve preponderar sempre, como expressão do direito da pessoa humana à reserva, à intimidade e à privacidade. A terceira corren- te é a intermediária, que sustenta que a Constituição brasileira não permite hierarqui- zação prévia e abstrata entre liberdade de informação e privacidade (da qual o direito ao esquecimento seria um desdobramento), sendo que, na hipótese, figurando ambos como direitos fundamentais, não haveria outra solução tecnicamente viável que não a aplicação do método de ponderação, com vistas à obtenção do menor sacrifício possí- vel para cada um dos interesses em colisão. Como ainda se aguarda a decisão da corte suprema brasileira, as contribuições dos três posicionamentos servem como aporte para o enfrentamento da temática e para o fomento de novas reflexões.

6 O Recurso Extraordinário mencionado está pendente de julgamento. Trata-se de ação ajuiza- da por Nelson Curi, Roberto Curi, Waldir Curi e Maurício Curi, irmão de Aída Curi, uma jovem de 18 anos violentada e assassinada em 1958, no Rio de Janeiro. O pedido foi de indenização contra a TV Globo Ltda. pela exibição do programa Linha Direta, em 29 de abril de 2004, abor- dando o caso Aída Curi. Os familiares defendem que a exibição do programa violou o direito ao esquecimento.

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