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Identidade para todos

Pode causar estranheza colocar a figura da vítima como forma subjetiva contem- porânea. O termo é comumente usado de forma depreciativa nos conflitos entre movimentos conservadores e movimentos de minorias. Quando ocorre uma vio- lência contra grupos minoritários, aparece a forma típica da disputa: movimentos de esquerda denunciam o preconceito e grupos conservadores minimizam o sofri- mento ou questionam a inocência do sofredor. Mas se essa fosse a única forma de haver disputa política segundo o par vítima-agressor, a vítima não poderia ser uma figura maior, dado que os conservadores não desejariam ocupar este lugar por eles desprezado.

Essa visão do conflito é parcial; ele é melhor conceituado quando se percebe haver um outro movimento, menos evidente: os grupos conservadores não apenas condenam o “vitimismo” da esquerda; também propõem suas vítimas, elas, sim, inocentes e “verdadeiramente” sofredoras. De fato, hoje, a predominância da figura vai além da constatação de que os movimentos conservadores também propõem suas vítimas. Pela hegemonia da exigência de autenticidade, os movimentos con- servadores cada vez mais irão se propor também como vítimas de preconceito.

O lugar que a vítima ocupa na produção da subjetividade é explicado por duas crenças morais contemporâneas: o modo de conceber o sofrimento contingente e a exigência de autenticidade. Segundo o primeiro nexo, temos que a vítima é a figura do sofredor quando a causa do sofrimento evitável é o ato imoral ou ilegal de um terceiro. A discussão social, então, se concentra na definição do que é a imoralidade causadora de sofrimento, pois a definição ordena quem será conside- rado vítima e quem será legitimamente designado como agressor: teria a imora- lidade a forma do ato de um indivíduo que busca seu prazer sem considerar suas consequências danosas para si e para os outros? Ou teria a forma do desejo de intervir na busca de prazer de um indivíduo, mesmo quando essa busca não causa sofrimento a ninguém?

O segundo vínculo entre vítima e cultura contemporânea é formado pela ge- neralização da exigência moral de autenticidade. (TAYLOR, 2007) Essa exigência

ção se ajusta à definição proposta por Charles Taylor em seu conhecido texto sobre multicul- turalismo. (TAYLOR et al, 1994)

surgiu na Modernidade em substituição à sinceridade e a partir da preocupação com a possibilidade de a padronização da sociedade depender da internalização das crenças hegemônicas pelo indivíduo. A exigência de autenticidade impunha a cada um nem tanto superar a distância entre o que pensa e o que diz ao outro pen- sar (distância da sinceridade), mas operar inquietamente na distância entre o que verdadeiramente deseja ser e fazer e o que acredita desejar apenas por imposição dos valores sociais. (TRILLING, 1971)

A autenticidade moderna era uma exigência minoritária e para uma mino- ria, para a vanguarda política e artística, para quem se distanciara da massa. Já a exigência contemporânea de autenticidade tornou-se uma exigência válida para todos. A generalização tem como marco simbólico o movimento de maio de 68 e é a contrapartida moral da ascensão do direito à liberdade individual de ser e agir. (GAUCHET, 2009; TAYLOR, 2007)

Além da distância entre exigência local e global, há outra diferença entre a au- tenticidade moderna e contemporânea. O conflito experimentado pelo indivíduo moderno em sua busca de autenticidade se dava como distância entre o que deseja e o que pensa dever ser; o conflito na atualidade é entre o que o indivíduo quer e o que outros pensam ser a boa vida. Dito de outro modo, a autenticidade moderna era inquietação com o que verdadeiramente se deseja; a autenticidade contemporânea se dá como afirmação do que se deseja e do que se é diante do preconceito alheio.

Para que a pressão social esteja exteriorizada no outro como preconceito, é necessário haver diferença de opinião em todo lugar e a todo momento, pois essa difusão de crenças heterogêneas sobre o que se deve fazer garante haver opinião discordante incorporada para quando um indivíduo qualquer quiser afirmar sua autenticidade. A validade do princípio do dano – a concretização em fórmula moral da exigência contemporânea de autenticidade – é o que permite essa nova geometria moral. Na sua formulação mais conhecida – ninguém tem o direito de interferir na busca individual de prazer a não ser que a busca cause dano ao outro –, o princípio implica que não haja consenso ao nível imediato sobre qual é a boa vida. Dada a hegemonia da liberdade individual, obrigatoriamente haverá pessoas ou grupos de pessoas com opiniões e comportamentos diferentes espraiados pelas diversas camadas e lugares sociais. A transformação dessas diferenças de opinião em preconceito é possível pela aplicação, às diferenças, da ideia de posição de su- jeito, isto é, a divergência de crenças é experimentada e explicada como expressão

de conflito de identidades e, assim, reconduzida à questão do preconceito. (LEYS, 2007; MICHAELS, 2004)

Cabe notar que o princípio do dano, ao nível lógico superior, implica alguns consensos sobre a boa vida: a recusa do paternalismo (ninguém tem o direito de interferir na vida de um indivíduo sob o argumento de que é para seu próprio bem, e ninguém sabe mais do que o indivíduo o que é bom para ele); a tolerância (por reversibilidade, se não quero que ninguém interfira na minha vida, também não posso interferir na vida alheia, mesmo que não goste de suas crenças e compor- tamentos); e a compaixão (a sensibilidade ao sofrimento do outro funciona como limite interno às práticas de prazer de um indivíduo qualquer).

O princípio do dano também gera como consenso a posição moralmente va- lorizada da vítima. O que gera discórdia política ao menos desde a década de 1970 é a causa de seu sofrimento: ou resulta das ações inconsequentes e sem compaixão de outro, ou resulta do preconceito que impede um indivíduo de ser e fazer o que deseja e que não causa dano a ninguém. Durante muito tempo, a tendência foi os movimentos conservadores privilegiarem a vítima da ação inconsequente e cruel do outro e os movimentos de esquerda defenderem a vítima de preconceito.

Assim, tipicamente associados à esquerda, temos os movimentos de luta contra os preconceitos de gênero, sexualidade, raça e etnia, que enfatizam, na violência, a sua dimensão mental: sofrimento e preconceito. Esses movimentos convocam o Estado contra os crimes de ódio cometido por terceiros contra as minorias, mas também denunciam a violência totalitária e preconceituosa dos agentes do aparato estatal, como na violência de ditaduras ou na violência racista de policiais contra negros e moradores de favela. Já os movimentos de vítima defendidos pelos con- servadores privilegiam as vítimas de crime, mesmo que o crime seja do próprio Estado, quando se trata da corrupção; desse modo, os movimentos conservadores tendem a enfatizar a inocência moral do sofredor e a violência física. Para trazer imagens à memória, de um lado, a jovem que não pode estudar devido a algum pre- conceito; de outro, o feto, esse ser senciente e vulnerável às ações inconsequentes de uma grávida só preocupada com seus prazeres.

Recentemente, uma nova figura de vítima da direita passou a ter imensa vi- sibilidade e eficácia política. Os grupos de direita também passaram a se propor como vítimas de preconceito, afirmando que quem realmente faz bullying e limita o questionamento é a esquerda. Talvez o sintoma mais revelador seja o surgimento em diversos países do Atlântico Norte de uma política de identidade para homens

brancos. A emergência dessa nova figura se deve ao sucesso político do multicultu- ralismo e da política de identidade; afinal, emergem como reação ao multicultura- lismo e tomam de empréstimo sua forma política, a identidade.

No sentido contemporâneo, o conceito de identidade significa sentido interno de vínculo a um grupo e tem três características maiores: a identidade é subjetiva, é um valor e é coletiva. O sentido objetivo, próprio da tradição filosófica, conceitua a identidade de um ente apreendida do exterior como o que lhe singulariza e lhe dá uma relativa estabilidade temporal enquanto existe. Assim, se atribuída a um indi- víduo, a identidade se reduz à mesmidade ao longo do tempo. Por esses vínculos com os conceitos de permanência e essência, a identidade no sentido objetivo pôde ser pensada como obrigação de ser imposta pela sociedade ao indivíduo. Foucault a compreendia assim quando, em 1982, questionou numa entrevista a política de identidade apregoada pelo movimento gay norte-americano:

Mas se a identidade se torna o problema maior da existência sexual, se as pessoas pensam que elas devem ‘desvelar’ sua ‘identidade própria’ e que esta identidade deve se tornar a lei, o princípio, o código de sua existência; se a questão que eles se colocam perpetuamente é: ‘Esta coisa está de acordo com minha identidade?’, então eu penso que essas pessoas retornarão a um tipo de ética muito próxima da virilidade he- terossexual tradicional. [...] É muito entediante ser sempre o mesmo. (FOUCAULT, 1994, p. 739, grifo do autor, tradução nossa)3

O sentido subjetivo inverte as relações entre identidade e sociedade: ao invés de ser imposição social operada através da obrigação de permanência, a identida- de torna-se resistência às expectativas sociais. Essa transição foi tornada possível pela invenção do conceito de crise de identidade pelo psicanalista Erik Erikson, em meados da década de 40 do século passado, nos Estados Unidos. (HALE, 2011; LUNBECK, 2014; TAYLOR, 1996) O sentido subjetivo é o que indivíduo descobre ser, afirma e realiza em oposição à pressão social de conformidade ou aos proce-

3 “Mais si l’identité devient le problème majeur de l’existence sexuelle, si les gens pensent qu’ils doivent ‘dévoiler’ leur ‘identité propre’ et que cette identité doit devenir la loi, le principe, le code de leur existence; si la question qu’ils posent perpétuellement est : ‘Cette chose est-elle conforme à mon identité?’, alors je pense qu’ils feront retour à une sorte d’éthique très proche de la virilité hétérosexuelle traditionnelle. [...] C’est très fastidieux d’être toujours le même.”

dimentos de estigmatização. Todo adolescente passaria por uma fase de crise mar- cada pelo questionamento das expectativas sociais em relação ao que ser. Por ser descoberta nesse processo de questionamento, identidade é também um valor, pois é resistência à conformidade e à estigmatização. Essa é a ligação entre o conceito contemporâneo de identidade e a exigência de autenticidade. Esse “conceito vital [...] [de identidade] se provaria ser central para movimentos da década de 60 que expressavam uma nova consciência étnica e racial, bem como para o feminismo e para a reivindicação de direitos por Gays e Lésbicas”. (LUNBECK, 2014, p. 225)

Portanto, na dimensão política, a identidade subjetiva é também coletiva, pois implica a pertinência a um grupo e estabelece um vínculo de solidariedade entre seus membros. Esse tipo de solidariedade estava antes vinculado à identidade na- cional; na contemporaneidade, porém, essa dinâmica de pertencimento a um “nós” tende a ser infranacional. Daí a ligação desse conceito de identidade com o multi- culturalismo e o movimento de minorias. De fato, esse conceito contemporâneo é estreitamente vinculado à ideia de vítima, pois a experiência partilhada de opressão é um potente fator na construção do sentido de pertencimento a um grupo ou comunidade. (JARDINA, 2019) Sob outro ponto de vista, a solidariedade proposta pelo conceito contemporâneo de identidade tem a forma da resistência. Se toda identidade supõe a formação de um “nós” em tensão implícita ou explícita com um “eles”, o próprio do conflito político contemporâneo parece ser a identificação desse par com a polaridade entre vítima e agressor.

Com a formação da política de identidade branca, (BROWN, 2019; JARDINA, 2019) a tensa relação entre multiculturalismo e neoliberalismo entra em uma nova etapa. Muitos acreditaram que havia uma oposição incontornável entre o neolibe- ralismo, com seu indivíduo abstrato, formado em competição e para a competição, e o multiculturalismo, com seu indivíduo concreto, formado pela experiência de opressão e destinado à solidariedade segundo marcadores de gênero, sexualidade, raça e etnia. Ao longo das três últimas décadas, porém, a formação neoliberal aco- modou demandas oriundas dos movimentos de minoria. Tanto acomodou que o multiculturalismo, quando articulado a um ethos de competição, se tornou a crença dinâmica de nossa cultura dada sua articulação com a exigência de autenticidade e com o princípio do dano. Seus preceitos éticos são objetos de difusão na mídia e na escola e orientam cada vez mais a formação de subjetividades.

Há vários pontos de contato entre, de um lado, a liberdade do indivíduo de empreender e consumir, e, de outro lado, a liberdade sexual, a igualdade de opor-

tunidades de competir e a remuneração segundo o mérito. A acomodação do neo- liberalismo ao multiculturalismo por inclusão de algumas demandas pode parecer paradoxal para aqueles que apostaram no potencial de resistência dos movimentos de minoria. Contudo, cabe ver que não há oposição de princípio entre o ideário do direito dos indivíduos, tão relevante para o neoliberalismo, e algumas demandas dos movimentos de minorias, especialmente por poderem ser traduzidas como de- manda pelo reconhecimento de direitos.

A acomodação entre neoliberalismo e multiculturalismo implica tensões. De início, há a tensão entre o neoliberalismo e os movimentos de minorias, dadas as evidentes limitações e parcialidades no reconhecimento de direitos; esses movi- mentos afirmam, então, que as concessões são limitadas e que é preciso aprofundar a igualdade. A novidade não está nessa tensão, pois ela existe desde os anos 1980; a novidade está no surgimento de uma insatisfação oriunda daqueles que, até então, apareciam como parâmetro e ideal para as exigências de reconhecimento dos mo- vimentos de minoria, isto é, a insatisfação vem daqueles (principalmente homens brancos de classe média) que se concebem como estando ameaçados material e simbolicamente pelas concessões sociais obtidas pelo multiculturalismo. A tensão dos movimentos de direita, portanto, não é com o neoliberalismo, como no caso dos movimentos de esquerda; é, sim, com o multiculturalismo.

E é dessa insatisfação que se alimenta o populismo conservador em diversos países.4 Como sua lealdade o impede de criticar o capitalismo, para explicar a série

de dificuldades e agruras geradas pelo funcionamento do neoliberalismo, o popu- lismo conservador encontrará à sua disposição uma forma discursiva que coloca o preconceito do outro como causa e que lhe permite construir uma série de oposi- ções: nação contra entidades supranacionais; nativos contra imigrantes; tolerantes contra islâmicos; homens (e algumas mulheres) contra o feminismo; brancos con- tra negros; heterossexuais contra homossexuais etc. Curioso é que esse discurso possa se apresentar como contradiscurso. Sem jamais questionar o funcionamento do capitalismo financeiro global, afirmam lutar pelo indivíduo comum contra as elites globais insensíveis e prepotentes, que controlam a política, a mídia e a aca-

4 O populismo é um fenômeno hoje estudado e conceituado por diversos autores. Para os argumentos deste texto, o primordial é a articulação do conceito com a separação entre “nós” e “eles”, e, portanto, a construção de uma aliança a partir da determinação de um inimigo comum. (LACLAU, 2005; MOUFFE, 2018; MUDDE; KALTWASSER, 2017)

demia. Se os movimentos populistas de direita nos Estados Unidos e na Europa conquistam apoio com um discurso contrário à imigração, cabe investigar as estra- tégias para a construção de um “eles” a partir do qual emerge o “nós” do populismo conservador no Brasil.

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