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A dimensão moral das lutas por reconhecimento envolvendo demandas materiais

As lutas por reconhecimento de que trata Axel Honneth estão centradas no con- flito social e na busca por autorrealização, por meio de uma relação intersubjetiva na qual sujeitos que sofrem danos buscam empreender novas gramáticas morais e relações ampliadas de reconhecimento. (HONNETH, 2003a, 2003b) Diferentes formas de desrespeito convertidas em um processo comunicacional funcionam como motor propulsor para que experiências individuais sejam conectadas às ex- periências de um grupo, que, por sua vez, promove uma luta social e a busca de transformações normativas também nas instâncias formais.

A crítica endereçada à Teoria do Reconhecimento de Honneth por Nancy Fraser (1997) aparece em um ensaio no qual ela acusa tanto Honneth quanto Charles

Taylor (1997) de negligenciar a dimensão material e econômica das lutas sociais. Ela defende que a justiça e a emancipação dos sujeitos requerem tanto redistribuição quanto reconhecimento. Seriam categorias distintas para a análise das lutas sociais. Para ela, lutas por redistribuição buscam o fim das desigualdades materiais e vislum- bram condições de igualdade, enquanto as lutas por reconhecimento almejam a valo- rização das diferenças e particularidades, objetivos diferentes. Buscar a igualdade no primeiro caso e reafirmar a diferença no segundo caso levariam ao que ela chamou de “esquizofrenia filosófica” dos movimentos sociais. (FRASER, 2003)

Fraser propõe uma noção de reconhecimento baseada na paridade de partici- pação como solução para as injustiças. Em outras palavras, é mais importante reco- nhecer os sujeitos como “parceiros integrais na interação social6” (FRASER, 2000,

p. 113, tradução nossa) do que a sua identidade de grupo. Os padrões instituciona- lizados de desvalorização cultural que impedem a participação seriam superados tanto pela redistribuição material quanto pelo reconhecimento das identidades e subjetividades. Para Fraser, os próprios afetados devem, por meio da participação, construir saídas da condição de subordinação, ideia defendida também por Tully (2000), enfatizando os processos dialógicos.

Honneth, em resposta publicada na mesma obra de 2003, diz não se reconhe- cer nessa crítica, visto que não considera as lutas por reconhecimento restritas nem à dimensão cultural-identitária, nem à dimensão econômica. (HONNETH, 2003b) Honneth defende uma teoria monista da moral, em que as relações culturais, eco- nômicas e outras que porventura existam estão conectadas, não numa perspectiva dualista, como define Fraser, mas como um conjunto amplo de relações com fun- do moral. Para ele, as instituições centrais das sociedades, incluindo aquelas que operam para a reprodução das lógicas capitalistas, se mantêm por meio de uma legitimação racional que depende de uma base de consenso moral.

Levando em conta o estudo em questão, a luta por moradia adequada enquanto luta por reconhecimento passaria por uma dimensão que vai além da concessão de moradias ou de infraestrutura básica. Para alcançar a redistribuição material, seria preciso uma dimensão valorativa na qual essas pessoas passam a ser, a priori, dignas de respeito e consideradas iguais. Conforme Honneth, ao analisar os movi- mentos sociais inseridos no contexto das sociedades capitalistas, o argumento de

Nancy Fraser “cria a impressão de que os grupos sociais lutam basicamente ou por recursos materiais, ou por reconhecimento cultural, enquanto a luta pela igualdade jurídica não encontra expressão sistemática em tudo.”7 (HONNETH, 2003b, p. 136,

tradução nossa) Honneth (2003, p. 271) afirma que sua teoria se interessa “por nor- mas que sejam as mais universais possíveis entendidas como condições para outras possibilidades.” (HONNETH, 2003, p. 271) Ou seja, ao argumentarmos sobre os princípios morais que forjam os movimentos das ocupações da capital mineira, fazemos referência à busca por uma garantia que alcance o maior número de pes- soas possível, a um direito que possa ser o mais universal e que se apresente como condição para que os indivíduos possam lutar por outros.

Para Honneth, os sentimentos de injustiça e de desrespeito social não podem ser encarados apenas como catalisadores das ações práticas, mas imbuídos de um papel moral nas relações de reconhecimento. Partir, portanto, da ideia que toda luta por redistribuição é uma luta por reconhecimento significa compreender a mobi- lização dos coletivos em análise como uma busca não apenas por uma pauta espe- cífica relacionada a bens e serviços para a população, mas como a batalha por uma garantia que é a mais universal possível e que trata do direito à dignidade de morar e das próprias garantias fundamentais para o bem viver, dimensão constituinte dos direitos humanos. Como bem sintetiza Mendonça (2009, p. 80) “valores definem como são distribuídos os recursos, fazendo-se necessário reconstruir o conceito de lutas redistributivas a partir do reavivamento da sua dimensão moral”.

Segundo Honneth (2003a, p. 261), “permanece sempre uma questão empírica saber até que ponto um conflito social segue a lógica da persecução de interesses ou a lógica da formação da reação moral.” Christopher Zurn (2015) explica que essa preocupação é importante para estabelecer que Honneth (2015) não reivin- dica que todos os conflitos sociais devam ser entendidos como conflitos morais, logo, nem todos conflitos sociais são lutas por reconhecimento. Contudo, toda luta por reconhecimento apresenta um conflito moral. Por isso é importante analisar empiricamente a fim de evidenciar o quanto interesses morais e materiais estão presentes no trabalho de reconhecimento. (ZURN, 2015) Segundo Zurn, (2015, p. 65, tradução nossa)

7 “creates the impression that social groups basicallystruggle for material resources or cultural re- cognition, while the struggle for legal equality surprisingly finds no systematic expression at all”.

Portanto, as lutas por reconhecimento são motivadas por sentimen- tos morais negativos gerados por relações sociais específicas, em oposição aos conflitos baseados em interesses que são motivados pela falta de recursos objetivos necessários para a autopreservação.8

Outros autores do reconhecimento comungam dessa perspectiva. Para Taylor (1997), a dimensão moral da desigualdade material é extremamente relevante, pois é a responsável por naturalizar as desigualdades. Construída a partir das relações Estado x mercado, existe uma hierarquia valorativa implícita e opaca à consciência cotidiana que faz com que o valor das coisas pareça dado, como se a desigualdade fosse algo natural. A busca por reconhecimento em Taylor (1992), e consequente- mente pela desnaturalização das desigualdades, estaria associada aos princípios da dignidade, universalizante, e da autenticidade, que busca o reconhecimento das particularidades. Diferente da honra como princípio distintivo, que uns possuem e outros não, a noção de dignidade, ao contrário, implica no valor igualitário e uni- versal. Argumento semelhante é desenvolvido por Tenenwurcel (2017), ao realizar uma genealogia da ideia de moradia e propriedade, apontando para uma perspec- tiva moral das lutas empreendidas pelas ocupações.

No mesmo sentido, Jessé de Souza (2003, 2006) opta por enfatizar a dimensão da dignidade universal como forma de buscar o respeito e, ao menos, uma cidada- nia jurídica, especialmente nas sociedades periféricas como a brasileira. Isso ajuda a explicar como “torna-se possível num contexto formalmente democrático, aberto e pluralista, a constituição de cidadãos de primeira e de segunda classe.” (SOUZA, 2003, p. 38) Ainda que todos tenham direito à moradia adequada como uma forma digna de vida, ainda existe uma hierarquia de valores que classifica quem pode ou merece e quem não pode ou não merece condições dignas de vida, argumento com- partilhado também por Feres Júnior e Pogrebinschi (2010). Souza (2015) atribuiu essa desigualdade social à uma ideologia antipopular, que ele chama de “racismo de classe”, que esconde as razões da injustiça social e que eterniza a precariedade.

8 "Therefore, recognition struggles are motivated by negative moral feelings generated by spe- cific social relations, as opposed to interest-based conflicts which are motivated by a lack of objective resources needed for self-preservation.”

Mapa das moralidades: modos de ver disputas

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