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Na análise das matérias sobre os assassinatos cometidos por Marinésio, ressalta- mos o predomínio de um enfoque socialmente problemático: a centralização da narrativa na figura “monstruosa” do criminoso – como vimos, diversos psiquia- tras, criminólogos e representantes da lei foram convidados a sondar o lado mais obscuro da mente do agressor, aventurando-se a propor diagnósticos impactantes. No primeiro tópico do artigo, esmiuçamos o processo de patologização da conduta criminal. Nesta visão preponderante, a explicação dos delitos foi elabora- da a partir da conceituação do criminoso como um assassino em série, movido por graves problemas de saúde mental. O serial killer escolheria suas vítimas aleatoria- mente, matando-as pelo simples prazer de matar. Este ponto de vista não permite apreender, todavia, o papel do ódio neste tipo de crime – mais especificamente, o ódio a mulheres. Outra perspectiva sobre o caso poderia ser alcançada partindo-se

da compreensão das emoções como um modo de atuar sobre o mundo e reforçar dinâmicas sociais. Sob esta perspectiva, o ódio a mulheres consiste em um fenôme- no político, em vez de um sentimento presente no interior de um homem anormal. Parte integrante de sistemas ou ambientes sociais, a misoginia funciona como um mecanismo para imposição de normas e de expectativas sobre as mulheres.

Quando situamos as mortes de Genir e de Letícia nesse contexto, podemos conjecturar que estes assassinatos estão longe de serem arbitrários. Possuiriam, em realidade, um motivo bastante pragmático: a misoginia, entendida como ódio ao gênero feminino. Esta aversão atua sobre as vítimas de feminicídios, mas também atinge mulheres de um modo geral, devido à função comunicativa dos crimes de ódio, capazes de inspirar medo e terror e, assim, colaborar para a continuidade do

status quo.

Na segunda parte da análise, destacamos matérias que reconheceram, de al- guma forma, a importância do gênero como categoria de análise para esclarecer as motivações dos crimes. De um modo geral, a mídia tem avançado no tratamento de temas como machismo, assédio e abuso sexual, abordando-os com mais fre- quência e seriedade. Porém, como demonstram as reportagens examinadas aqui, a reflexão sobre desigualdades e violências de gênero pode ser muito superficial, cedendo lugar, rapidamente, à abordagem de outros problemas que relegam ao es- quecimento a questão do ódio às mulheres. Este ponto de vista está relacionado, em grande medida, com a dificuldade para compreender a misoginia como uma ferramenta de poder.

Formulamos nossas conclusões com base na análise aprofundada de um caso específico e recente. Todavia, o enfoque destacado neste artigo pode ser observa- do em diversas reportagens. Em consonância com o processo de medicalização da vida, outros crimes contra as mulheres foram explicados pela mídia a partir de perspectivas patologizantes (DIAS; RODRIGUES, 2019), que salientaram a frieza e a ausência de remorso como chamariz da notícia. (SERIAL..., 2014) Inclusive nas situações em que o próprio assassino declara sentir ódio (ASSASSINO, 2014)ou em que se veicula a informação de que o suspeito “fica alterado na presença de mulheres” (GOMES; RESENDE, 2014), as dinâmicas de gênero não são exploradas nas matérias.

Mesmo quando existe uma tentativa de abordar os crimes contra as mulheres de maneira respeitosa ou até engajada, os recursos utilizados para realçar a impor- tância do tema se restringem a dados estatísticos e descrições explícitas de violên-

cia, sem a preocupação em conectar esse tema com fatores culturais mais amplos e com a longeva história do patriarcado. Ativistas e acadêmicas que poderiam con- tribuir, de modo considerável, para a elucidação da problemática de gênero rara- mente são ouvidas; quando figuram entre as fontes das matérias, suas opiniões são desvalorizadas ou abafadas por outros enfoques. Na maioria dos casos, permanece irrefutável a autoridade dos diagnósticos médicos e dos pareceres jurídico-poli- ciais, cujo foco costuma ser apenas a mente perturbada do indivíduo misógino. Sem aprofundar outras possibilidades interpretativas, a cobertura midiática da vio- lência de gênero não estimula que a misoginia seja compreendida e criticada como uma questão cultural e social, que se manifesta diariamente na vida das mulheres.

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