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uma análise da circulação do voto de Jair Bolsonaro no

impeachment de Dilma Rousseff

diosana frigo

aline dalmolin viviane borelli

Introdução

Ao longo das últimas décadas, tornaram-se evidentes mudanças no campo mi- diático relacionadas ao desenvolvimento e uso de tecnologias digitais, sobretudo através da expansão das redes sociais digitais a partir da utilização dos dispositivos móveis. Nesse contexto desafiador para a área e para as pesquisas em comunicação, há que se pensar não só na existência de novos modos de interação que os meios possibilitam, mas, também, nos formatos emergentes na estruturação das práticas sociais. Na perspectiva dos estudos

sobre a midiatização da sociedade, há di-

versos fluxos de circulação em um processo comunicacional e que são construídos por diferentes produtores de sentidos. Os atores sociais, que não são só receptores,

mas também produtores, acionam os sentidos em disputa por meio de embates e negociações, em um processo constantemente reativado pela circulação.

O cenário da midiatização está intrinsecamente ligado à transformação social em curso, levando em consideração que essas processualidades estão impregnadas por muitas práticas sociais. Podemos perceber isso no contexto social brasileiro, diante de um cenário de falência de instituições, retirada de direitos conquistados historicamente, constantes crises políticas e efervescência conservadora na am- biência digital. Além do mais, na conjuntura da sociedade em midiatização, inten- sificaram-se as disputas de sentidos que podem ser observadas especialmente na esfera da circulação. No Brasil, em consonância com a intensificação de um cená- rio político polarizado, discursos odiosos e de intolerância foram acentuados nos últimos anos. Não é incomum encontrarmos nas redes sociais digitais, por exem- plo, discursos de ódio que atacam aspectos biológicos das pessoas que contrariam politicamente determinada opinião. A atuação do ódio biopolítico (DALMOLIN, 2019) é notória na circulação de sentidos na ambiência digital ao reduzir qual- quer debate às questões de gênero, etnia, cor da pele e práticas sexuais, além de encontrarmos casos em que há a própria eliminação do debate por meio do silen- ciamento e do discurso de eliminação do outro que não está dentro dos padrões considerados aceitáveis.

Assim, compreendendo que a midiatização promove a circulação de sentidos e que a ambiência digital é um espaço propício para a produção e disseminação de discursos polarizados, nessa reflexão objetiva-se mostrar um caminho teórico-me- todológico que possa orientar a análise da circulação nas mídias sociais digitais de acontecimentos contemporâneos que envolvam ódio e intolerância. Essas percep- ções tornaram-se visíveis na operacionalização do estudo em questão, que parte dos conceitos de individualização do acontecimento (FRANÇA; LOPES, 2016) e de circulação em fluxo adiante. (BRAGA, 2017) A partir de cinco categorias ana- líticas – descrição, narrativização, pano de fundo, problema público e normaliza- ção –, propõe-se um desenho metodológico que possibilite analisar a circulação de um acontecimento contemporâneo que envolve polarização política e discursos odiosos na ambiência digital. A circulação é posta em cena ao se interrelacionar fluxos envolvendo suas dimensões, como microacontecimento jornalístico, segun- do Charaudeau (2016), ciberacontecimento (HENN, 2013) e macroacontecimento (DALMOLIN, 2014), materializados, por exemplo, em postagens e comentários em sites e redes sociais digitais.

A partir dos conceitos norteadores de circulação e de individuação do acon- tecimento, analisa-se a circulação do acontecimento “o voto de Jair Bolsonaro no

impeachment de Dilma Rousseff”.1 Trata-se de uma leitura da circulação em portais

de notícias e nas redes sociais digitais em torno do voto do então deputado federal Jair Messias Bolsonaro na sessão de autorização do processo de impedimento da presidenta do país. Na ocasião, ele realiza uma espécie de “ode à ditadura mili- tar” na declaração de seu voto,2 favorável ao impeachment da primeira presidenta

mulher da história do país, que possui um passado de militante torturada e presa durante aquele período político. Dentre as alegações, ele dedica seu voto ao coro- nel Carlos Alberto Brilhante Ustra, por sua vez reconhecido pela Justiça brasileira como torturador durante a ditadura.

Entende-se “o voto de Bolsonaro” como um acontecimento que não está so- mente inscrito na ordem do que ocorre, mas, conforme proposto por Quéré (2005), de quando ele acontece e como afeta a sociedade. Parte-se, então, da reflexão de que o voto convoca um passado e abre um horizonte de possibilidades, isto é, o passado e o seu contexto de inserção são compreendidos em função dos novos sentidos possibilitados pelo acontecimento. Essa potencialidade do voto é enfatizada com as inúmeras afetações que traz à sociedade, ao mesmo tempo em que é aflorada por meio da circulação de sentidos que redimensiona o voto como um acontecimento, o qual, por sua vez, relaciona-se a um macroacontecimento.

O episódio comunicacional (BRAGA, 2017) é tomado para análise em função da forma como articula questões essenciais para a compreensão do atual momento

1 O objeto foi analisado na dissertação de mestrado de uma das autoras, (FRIGO, 2018) que tinha como problemática de pesquisa compreender como a circulação do acontecimen- to “o voto de Jair Bolsonaro” mobilizou sentidos sobre a ditadura civil-militar brasileira. Por questões de espaço, a nomeação do acontecimento será sintetizada aqui para “o voto de Bolsonaro”. Cabe sinalizar também que o artigo emerge de discussões posteriores à disserta- ção concluída, ou seja, constitui-se de avanços desta pesquisa de mestrado a partir do tensio- namento com as pesquisas desenvolvidas pelas outras duas autoras no âmbito do grupo de pesquisa do CNPq Circulação Midiática e Estratégias Comunicacionais. Destacam-se, nesse sentido, investigações que visam à operacionalização analítica de objetos em circulação no contexto da sociedade em midiatização, considerando, ainda, a complexidade de discursos de ódio e intolerância.

2 Segue transcrição do voto: “[...] perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve; contra o comunismo; pela nossa liberdade; contra o Foro de São Paulo; pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff; pelo exército de Caxias; pelas nossas Forças Armadas; por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é ‘sim’”. (BOLSONARO, 2016c)

político brasileiro, marcado por uma intensa polarização discursiva entre esquerda e direita, demarcada pelo “nós” e “eles” evidenciado no discurso de Bolsonaro no

impeachment. São questões que ocorrem num cenário comunicacional em que há

crescimento da circulação de discursos conservadores e odiosos, que se dedicam a defender práticas indefensáveis sob o ponto de vista dos direitos humanos, como a tortura e a apologia à restrição das liberdades individuais.

Diante da complexidade da midiatização, da polarização política vivenciada no Brasil e da intensificação dos discursos de ódio e intolerância na ambiência digital, considera-se pertinente realizar discussões que permeiam essa tríade, em especial em análises que tomam por objeto as redes sociais digitais. Ao mesmo tempo, sa- be-se das dificuldades em operacionalizar estudos de circulação – esta, por si só, já faz parte de uma semiose infinita (VERÓN, 2013) –, especialmente os que dizem respeito à ambiência digital, que é mutável e com uma extensão quase imensurável de dados. Torna-se um desafio para os pesquisadores a sistematização da pesquisa com enfoque na circulação, seja pela complexificação da própria sociedade ou pelo caráter não linear da comunicação, já que, como refere Verón, (2008, p. 149) “[...] a circulação comporta bifurcações e que, por consequência, a circulação da comu- nicação é um processo que está afastado do equilíbrio [...]”. Para o semiólogo, a acelerada disseminação de mensagens torna a sociedade mais complexa.

Dessa forma, olhar para a circulação do discurso do voto de Bolsonaro repre- senta um movimento tentativo em termos analíticos, pois é preciso observar para além do que é dito no instante do discurso proferido pelo ex-deputado. Nessa di- reção, o caminho teórico-metodológico propõe articular uma leitura dos fluxos de circulação em um contexto midiatizado a uma apreensão acontecimental em múl- tiplas dimensões, buscando realizar uma leitura do presente, do passado e uma pro- jeção do futuro que considere a complexidade dos discursos de ódio e intolerância.

Discursos de ódio e intolerância

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